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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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Tornei a ouvir-te quando te ouvi...”. O que me comoveu, então, não foi a música de<br />

César Franck. Foi a sonata que estava adormecida dentro de mim e que a sonata<br />

de César Franck fez acordar. Ao me comover com a beleza da música, eu me reencontro<br />

com a minha própria beleza. Por isso a música me traz felicidade...<br />

Metáforas<br />

É preciso entender que os poetas nunca falam sobre as coisas acerca das quais<br />

estão a falar. Falam sobre as coisas para falar sobre si mesmos. É isso que são as<br />

metáforas. Retratos da alma. Fernando Pessoa escreveu sobre as estrelas... Tão<br />

distantes. Mas era sobre si mesmo que falava. “Tenho dó das estrelas/ luzindo há<br />

tanto tempo,/ há tanto tempo.../ Tenho dó delas./ Não haverá um cansaço das<br />

coisas,/ de todas as coisas,/ como das pernas ou de um braço?/ Um cansaço de<br />

existir,/ de ser,/ só de ser,/ o ser triste brilhar ou sorrir.../ Não haverá, enfim,/ para<br />

as coisas que são,/ não a morte,/ mas sim uma outra espécie de fim,/ ou uma<br />

grande razão – qualquer coisa assim/ como um perdão?” Sim, ele estava muito<br />

cansado. Seu cansaço deveria ser tão grande como o cansaço das estrelas,<br />

brilhando sem fim, desejando apagar e dormir.<br />

A biblioteca submersa<br />

Debussy musicou um poema de Mallarmé, “La Cathedrale engloutie”, a catedral<br />

submersa. Ouvindo a música, a fantasia nos leva para as funduras do mar, a luz se<br />

filtrando através das águas inquietas, vitrais de corais, anêmonas, peixes coloridos<br />

e os nossos olhos, “dois baços peixes”, à procura, encantados. E se ouve o som dos<br />

sinos misturado ao silêncio das águas... Místico. Pensei em escrever um poema<br />

parecido, “La biblioteque engloutie”, a biblioteca submersa... Essa ideia me veio<br />

quando me lembrei de algo que aconteceu em 1964. Eu acabara de voltar dos<br />

Estados Unidos onde passara um ano, estudando. Logo depois do golpe. Meus<br />

livros haviam ficado em Lavras, Minas, onde eu fora pastor de uma igreja<br />

presbiteriana. Eu havia sido delatado como subversivo embora jamais tenha<br />

pertencido a qualquer organização política. Por todos os lados pululavam os<br />

delatores. Em tempos de violência política, a delação é uma prova de amor e<br />

subserviência aos donos das armas. A delação liga os delatores aos poderosos, o<br />

que lhes dá uma deliciosa sensação de poder impune: “Os outros estão à mercê da<br />

minha palavra!”. Era preciso eliminar as provas da minha subversão. Os livros. Em<br />

tempo de ditadura, pensar é crime. Só se permitem hinos patrióticos. Livros<br />

completamente inocentes. Um deles, Communism and the theologians, um simples<br />

relatório de opiniões de teólogos sobre o comunismo, tinha a capa vermelha com a

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