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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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Uma criança<br />

Há livros que se lê uma vez e depois joga-se fora. Lidos, esgotaram o que tinham<br />

para dizer. Parecem-se com as piadas: as piadas só fazem rir na primeira vez que<br />

são contadas. Outros livros, entretanto, são como fontes. A fonte é a mesma. Mas<br />

a água que dela brota é sempre fresca, sempre nova, sempre outra água.<br />

Retornamos sempre às fontes. Cada retorno é uma felicidade nova. Na minha<br />

infância havia uma fonte, um buraco simples em forma de bacia, que me dava<br />

grande alegria visitar. Não que eu estivesse com sede. Apenas para me encantar.<br />

Daquela fonte nem meu pai nem minha mãe ficaram sabendo. Vocês são os<br />

primeiros a quem estou contando. Que felicidade encontrei na minha infância, solto<br />

por espaços vazios de olhos adultos! Os adultos estragam o mundo das crianças<br />

com os seus olhos. Diante da fonte, minha amiga, eu estava sozinho,<br />

absolutamente sozinho. Guimarães Rosa, falando de sua infância, disse que ela foi<br />

muito gostosa. A única coisa que a atrapalhava eram os olhos dos adultos que se<br />

intrometiam em tudo. Livrou-se disso quando arranjou uma chave para o seu<br />

quarto. Trancado, podia gozar livremente os seus devaneios. Esses livros-fonte não<br />

são de diversão. São livros de encantamento. A sua leitura é como beber água da<br />

fonte, sempre. Por isso sempre voltamos a eles. Um dos livros-fonte que mais me<br />

encantam é A poética do devaneio, de Bachelard. Volto sempre a ele e é sempre<br />

como se fosse pela primeira vez. Um curto texto que me encanta: “Nos grandes<br />

infortúnios da vida, ganhamos coragem quando somos o sustentáculo de uma<br />

criança. A inquietação que temos pela criança sustenta uma coragem invencível”<br />

(São Paulo, Livraria Martins Fontes, p. 127). Esse livro maravilhoso nunca foi e<br />

nunca será best-seller. É uma fonte escondida da qual poucos bebem. Quando<br />

muitos bebem na mesma fonte, a água fica poluída. Lembrei-me desse texto ao<br />

pensar num dos demônios mais potentes a habitar a alma humana: o tédio. Viver<br />

sem razões para viver. Pensei logo: só são atacadas pelo demônio tédio as pessoas<br />

que não são sustentáculo de uma criança, que não se inquietam por uma criança. O<br />

tédio, nenhum exorcista pode com ele. Nenhum terapeuta sabe as palavras que o<br />

afugentam. O tédio se cura com o olhar de uma criança. Há tantas crianças soltas<br />

pelas ruas da cidade, prontas a salvar-nos do tédio...<br />

Perdoar<br />

As crianças são maravilhosas na sua capacidade de perdoar. Lembro-me de que,<br />

quando fazia alguma injustiça com meus filhos pequenos, eu ia à sua cama<br />

confessar o meu erro e pedir perdão. Os abraços apertados que me davam são

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