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Quem não é discípulo da morte fica sempre achando que ainda há muito tempo e,<br />
com isso, não se dá conta dos morangos que há à beira do abismo. Ele pensa que<br />
há um lugar onde se chegar. Não há. Todos os caminhos levam ao mesmo fim. Na<br />
vida só há o caminho...<br />
Meu velório<br />
Vou ser cremado por não gostar de lugares fechados. As cinzas podem ser soltas ao<br />
vento ou colocadas como adubo na raiz de uma árvore. Assim posso virar nuvem ou<br />
flor. Um jantar para os amigos com sopa, vinho e Jack Daniels. Será que no outro<br />
mundo há Jack Daniels? Ofício religioso, Deus me livre. Não quero que se digam<br />
palavras dizendo que fui para o céu. O céu me dá calafrios. Mas gostaria que meus<br />
amigos ouvissem algumas das músicas que amo. São muitas. Separei algumas.<br />
Gluck: Melodia, da ópera Orfeu e Eurídice, Nelson Freire ao piano. Está no seu DVD.<br />
De Bach: o Minueto, do Livro de Ana Madalena. É a coisa mais singela... O CD<br />
Bach, do grupo O Corpo, com o Uakti. A primeira suíte para violoncelo, sobre a qual<br />
escrevi o livro O Barbazul. O CD Lambarena, em homenagem a Albert Schweitzer,<br />
com ritmos africanos. Bach ficaria assombrado! A ária para a quarta corda. Carl<br />
Orff, a canção “In trutina”, da Carmina Burana. De Mozart, a Sonata em lá maior<br />
KV. 331 ( Marcha turca); Uma pequena serenata (Eine kleine Nacht Music). Eu fazia<br />
meu filho Sérgio dormir ouvindo essa delicadeza... De Liszt: a Consolação no 3, de<br />
uma pungência infinita. De Dvorjak, Sinfonia do Novo Mundo, segundo movimento.<br />
De Ravel, o segundo movimento do Concerto para piano e orquestra em sol maior.<br />
E de Astor Piazzola, Oblivion, Arthur Moreira Lima ao piano.<br />
Morte repentina<br />
Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo.<br />
Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina.<br />
Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haicai.<br />
O direito de morrer<br />
A vida humana, diferente da vida dos bichos e plantas, que se mede por sinais<br />
biológicos e elétricos, se mede pela possibilidade de alegria que ela contém.<br />
Quando essa possibilidade não mais existe, uma pessoa tem o direito de exigir que<br />
sua vida biológica não seja mantida por meios heroicos, porque cada pessoa é<br />
senhora de sua vida. Há uma hora em que o corpo e a alma desejam partir. Não se<br />
deve impedi-los se assim desejarem, por meio da força. Ainda que seja a força