Mrio-Zambujal-Cronica-Dos-Bons-Malandros - Agrupamento de ...
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das coisas, que Flávio começou a andar macambúzio. Aos rogos <strong>de</strong> Zinita,<br />
nenhuma resposta que não fosse um sorriso murcho - “não é nada...” - ou um<br />
“<strong>de</strong>ixa-me! “ agastado e <strong>de</strong>finitivo.<br />
Tinha boas razões para andar preocupado. Entrara para a empresa um<br />
novo chefe <strong>de</strong> contabilida<strong>de</strong>, achara a escrita um caos e andava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há meses<br />
<strong>de</strong> nariz perdigueiro mergulhado nas contas. Foi caçando pequenas<br />
inexactidões que, todas somadas, acabaram por perfazer cento e <strong>de</strong>zoito contos.<br />
Concluídas mais algumas impiedosas aritméticas, veio o jacinto, colega <strong>de</strong><br />
secção e parceiro <strong>de</strong> mesa na hora do almoço, anunciar com o ar sorri<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
quem não sabia o que estava a dizer: “Doutorzinho, chamam-te ao gabinete da<br />
administração. “ O coração <strong>de</strong>u-lhe um pulo, não mais sossegou, feria-lhe o<br />
peito com saltos <strong>de</strong> corça quando encarou os administradores, todos em pé,<br />
hirtos e sombrios. “Estes senhores são da Judiciária”, lembra-se <strong>de</strong> ter ouvido, e<br />
<strong>de</strong>pois foi tudo muito rápido, ou per<strong>de</strong>ra o sentido do tempo, tempo em que<br />
não voltou a ver Zinita - porquê?, porquê?, perguntava-se - até ao dia em que se<br />
encontrou com o seu ódio e <strong>de</strong>sprezo na sala do Tribunal.<br />
“O Doutor passa o domingo cá em casa ou vai ao cinema? “<br />
Lúcio Campeão, assassino encartado, coleccionador <strong>de</strong> crimes,<br />
internacional <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ias, inclusive na Venezuela e no Gabão, tinha um sorriso<br />
<strong>de</strong> mofa na cara ossuda, a um palmo dos olhos assustados <strong>de</strong> Flávio.<br />
“Hoje fico.”<br />
Tentava gracejar, mas as palavras saíram-lhe trémulas. Compreen<strong>de</strong>ra<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia que a sua entrada na roda dos presidiários provocara<br />
curiosida<strong>de</strong> geral mas reacções diversas. Todos lhe chamavam o Doutor, mas<br />
Lúcio Campeão e os da sua corte faziam-no com escárnio, gozavam da sua<br />
tristeza e daquele choro soluçado que não pu<strong>de</strong>ra escon<strong>de</strong>r, das maneiras <strong>de</strong><br />
menino educado e das roupas finas que os pais lhe levavam. Logo que entrou<br />
quiseram saber quem diabo matara ele, ou que formidável assalto fizera, e<br />
dobraram-se <strong>de</strong> riso quando ouviram a pequenez do <strong>de</strong>sfalque.<br />
“Hoje fico.”<br />
Lúcio Campeão cruzou os braços, espetou mais o metal dos olhos como se<br />
fossem facas e disse entre<strong>de</strong>ntes: “Bestial. Hoje está a apetecer-me esmurrar<br />
essa tromba.”<br />
Viu-o afastar-se dando gran<strong>de</strong>s socos, um punho <strong>de</strong> ameaça a bater na<br />
palma da outra mão, e teve medo e frio, e não sabia se era o medo ou o frio que