E Ç A D E Q U E I R Ó S –Duzentos mil–réis, Ex mo Senhor! E é para mais que não para menos! Eu ria da trágica ameaça do excelente homem. E Jacinto, muito docemente, para conciliar o Silvério: –Bem, meu amigo... eram uns seis contos de réis! Digamos dez, porque eu queria dar a todos alguma mobília e alguma roupa. Então o Silvério teve um brado de terror: –Mas então, Ex mo Senhor, é uma revolução! E como nós, irresistivelmente, ríamos dos seus olhos esgazeados de horror, dos seus imensos braços abertos para trás, como se visse o mundo desabar – o bom Silvério encavacou: –Ah! V. Ex as riem? Casas para todos, mobílias, pratas bragal, dez contos de réis! Então também eu rio! Ah! ah! ah! Ora viva a bela chalaça!... Está boa a risota! E subitamente, numa profunda mesura, como declinando toda a responsabilidade naquele disparate magnífico: –Enfim, V. Exª é quem manda! –Está mandado, Silvério. E também quero saber as rendas que paga essa gente, os contratos que existem, para os melhorar. Há muito que melhorar. Venha você almoçar conosco. E conversamos, Tão saturado de espanto estava o Silvério, que nem recebeu mais espanto com essa “melhoria de rendas”. Agradeceu o convite, penhorado. Mas pedia licença a S. Exª para passar primeiramente pelo lagar, para ver os carpinteiros que andavam a consertar a trave do rio. Era um instante, e estava em seguida às ordens de S. Exª. Meteu a corta–mato, saltando um cancelo. E nós seguimos, com passos que eram ligeiros, pela hora do almoço que se retardara, pelo azul alegre que reaparecia, e pôr toda aquela justiça feita à pobreza da serra. –Não perdeste hoje o teu dia, Jacinto – disse eu, batendo, com uma ternura que não disfarcei, no ombro do meu amigo. –Que miséria, Zé Fernandes! eu nem sonhava... Haver pôr aí, à vista da minha casa, outras casas, onde crianças têm fome! É horrível.... Estávamos entrando na alameda. Um raio de sol, saindo de entre duas grossas, algodoadas nuvens, passou sobre uma esquina do casarão, ao fundo, uma viva tira de ouro. O clarim dos galos soava claro e alto. E um doce vento, que se erguera, punha nas folhas lavadas e luzidias um frêmito alegre e doce. –Sabes o que eu estava pensando, Jacinto?... Que te aconteceu aquela lenda de Santo Ambrósio... Não, não era Santo Ambrósio... Nem me lembro o santo... Nem era ainda santo... apenas um cavaleiro pecador, que se enamorara duma mulher, pusera toda a sua alma nessa mulher, só pôr a avistar a distância na rua. Depois, uma tarde que a seguia, enlevado, ela entrou num portal de igreja, e aí, de repente, ergueu o véu, entreabriu o vestido, e mostrou ao pobre cavaleiro o seio roído pôr uma chaga! Tu também andavas namorado da serra, sem a conhecer, só pela sua beleza de Verão. E a serra, hoje, zás! De repente, descobre a sua grande úlcera... É talvez a tua preparação para S. Jacinto. 112 Ele parou, pensativo, com os dedos nas cavas do colete:
A C I D A D E E A S S E R R A S –É verdade! Vi a chaga! Mas enfim, esta, louvado seja Deus,é das que eu posso curar! Não desiludi o meu Príncipe. E ambos subimos alegremente a escadaria do casarão. 113