A CIDADE E AS SERRAS - Portal Educacional
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A C I D A D E E A S S E R R A S<br />
estava aquele último Jacinto, um Jacintículo, com a macia pele embebida em aromas, a curta alma enrodilhada<br />
em Filosofias, travado e suspirando baixinho na miúda indecisão de viver.<br />
–Ó Zé Fernandes, quem é essa lavadeirona tão rechonchuda?<br />
Estendi o pescoço para a fotografia que ele erguera de entre a minha galeria, no seu honroso caixilho<br />
de pelúcia escarlate:<br />
–Mais respeito, Sr. D. Jacinto... Um pouco mais de respeito, cavalheiro!... É minha prima Joaninha, de<br />
Sandofim, da Casa da Flor da Malva.<br />
–Flor da Malva – murmurou o meu Príncipe. – É a Casa do Condestável, de Nun’Álvares.<br />
–Flor da Rosa, homem! A Casa do Condestável era na Flor da Rosa, no Alentejo... Essa tua ignorância<br />
trapalhona das coisas de Portugal!<br />
O meu Príncipe deixou escorregar molemente a fotografia da minha prima de entre os dedos moles –<br />
que levou à face, no seu gesto horrendo de palpar através da face a caveira. Depois, de repente, com um<br />
soberbo esforço, em que se endireitou e cresceu:<br />
–Bem! Alea jacta est! Partamos pois para as serras!...E agora nem reflexão, nem descanso!... Á obra! E<br />
a caminho!<br />
Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro loquete que abre os Destinos – e no<br />
corredor gritou pelo Grilo, com uma larga e açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a dum<br />
Chefe ordenando, na alvorada, que se levante o Acampamento, e que a Hoste marche, com pendões e<br />
bagagens...<br />
Logo nessa manhã (com uma atividade em que eu reconheci a pressa enjoada de quem bebe óleo de<br />
rícino) escreveu ao Silvério mandando caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço apareceu na<br />
Biblioteca, chamado violentamente pelo telefone, para combinar a remessa de mobílias e confortos, o diretor<br />
da Companhia Universal de Transportes.<br />
Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado num jaquetão de xadrezinho escuro,<br />
com polainas de jornada sobre botas brancas, uma multicor resumindo as suas condecorações exóticas de<br />
Madagáscar, de Nicarágua, da Pérsia, outras ainda, que provavam a universalidade dos seus serviços. Apenas<br />
Jacinto mencionou “Tormes, no Douro...” – ele logo, através dum sorriso superior, estendeu o braço,<br />
detendo outros esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.<br />
–Tormes... Perfeitamente! Perfeitamente!<br />
Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota – enquanto eu considerava, assombrado, a<br />
vastidão do seu saber Corográfico, assim familiar com os recantos duma serra de Portugal e com todos os<br />
seus velhos solares. Já ele atirara a carteira para o bolso... E “nós, seus caros senhores, não tínhamos senão a<br />
encaixotar as roupas, as mobílias, as preciosidades! Ele mandaria as suas carroças buscar os caixotes, a que<br />
poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço..."<br />
–Tormes, perfeitamente! Linha Norte–Espanha–Medina–Salamanca... Perfeitamente! Tormes... Muito<br />
pitoresco! E antigo, histórico! Perfeitamente, perfeitamente!<br />
Desengonçou a cabeça numa vênia profundíssima – e saiu da Biblioteca, com passos que devoravam<br />
léguas, anunciavam a presteza dos seus Transportes.<br />
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