A CIDADE E AS SERRAS - Portal Educacional
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A C I D A D E E A S S E R R A S<br />
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da<br />
fartura de Tormes, padecia fome e minguava... e o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima<br />
fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos.<br />
Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um<br />
azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou pôr bradar: – “É divino!” Mas nada o entusiasmava como<br />
o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais<br />
alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele<br />
orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:<br />
–Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Quem<br />
dignamente te cantará, vinho amável destas serras?<br />
Eu, que não gosto que me avantajem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio,<br />
louvando as doçuras da vida rural:<br />
–Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rômulo e<br />
Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo!<br />
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro<br />
e religiosa reverência.<br />
Ah! Jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Melchior – que ainda depois, próvido e tutelar, nos<br />
forneceu o tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as janelas<br />
desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o suntuoso céu de Verão. Filosofamos então com a pachorra e<br />
facúndia.<br />
Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros – pôr causa dos candeeiros<br />
de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam. Pôr isso (como eu notei) nunca se entra nessa<br />
comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da vida. Mas na serra, sem prédios<br />
disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo,<br />
puxam a alma para o pó rasteiro – um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais<br />
duma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime<br />
imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma<br />
luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os<br />
nossos...<br />
–Ó Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?<br />
–Não sei... e aquela, Zé Fernandes, além, pôr cima do pinheiral?<br />
–Não sei.<br />
Não sabíamos. Eu pôr causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra,<br />
minha Mãe espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o<br />
Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava<br />
que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebara? Que lhes importava a eles que um de nós<br />
fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos,<br />
Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos dum Ser único, e as nossas<br />
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