E Ç A D E Q U E I R Ó S Na taberna do Pedro, à entrada da freguesia, ia um desusado movimento, de pedreiros e carpinteiros contratados para as obras; e o Pedro, com as mangas arregaçadas, pôr trás do balcão, não cessava de encher os decilitros com uma vasta infusa. Jacinto, que tinha agora dois cavalos, todas as manhãs cedo percorria as obras, com amor. Eu, inquieto, sentia outra vez latejar e irromper no meu Príncipe o seu velho, maníaco furor de acumular Civilização! O plano primitivo das obras era incessantemente alargado, aperfeiçoado. Nas janelas, que deviam ter apenas portadas, segundo o secular costume da serra, decidira pôr vidraças, apesar do mestre–de–obras lhe dizer honradamente que depois de habitadas um mês não haveria casa com um só vidro. Para substituir as traves clássicas queria estucar os tetos; e eu via bem claramente que ele se continha, se retesava dentro do bom senso, para não dotar cada casa com campainhas elétricas. nem sequer me espantei, quando ele uma manhã me declarou que a porcaria da gente do campo provinha deles não terem onde comodamente se lavar, pelo que andava pensando em dotar cada casa com uma banheira. Descíamos nesse momento, com os cavalos à rédea, pôr uma azinhaga precipitada e escabrosa, um vento leve ramalhava nas árvores, um regato saltava ruidosamente entre as pedras. Eu não me espantei – mas realmente me pareceu que as pedras, o arroio, as ramagens e o vento, se riam alegremente do meu Príncipe. E além destes confortos a que o João, mestre–de–obras, com os olhos loucamente arregalados chamava “as grandezas”, Jacinto meditava o bem das almas. Já encomendara ao seu arquiteto, naquele campo da Carriça, junto à capelinha que abrigava “os ossos”. Pouco a pouco, aí criaria também uma biblioteca, com livros de estampas, para entreter, aos domingos, os homens a quem já não era possível ensinar a ler. Eu vergava os ombros, pensando: – “Aí vem a terrível acumulação das Nações! Eis o livro invadindo a Serra!” Mas outras idéias de Jacinto eram tocantes – e eu mesmo me entusiasmei, e excitei o entusiasmo da tia Vicência com o seu plano duma Creche, onde ele esperava ter manhãs muito divertidas vendo as criancinhas a gatinhar, a correr tropegamente atrás duma bola. De resto, o nosso boticário de Guiães estava já apalavrado para estabelecer uma pequena farmácia em Tormes, sob a direção do seu praticante, um afilhado da tia Vicência, que tinha publicado um artigo sobre as festas populares do Douro no Almanaque de Lembranças. E já fora oferecido o partido médico de Tormes, com ordenado de 600$000 réis. –Não te falta senão um Teatro! – dizia eu, rindo. –Um teatro, não. Mas tenho a idéia duma sala, com projeções de lanterna mágica, para ensinar a esta pobre gente as cidades desse mundo, e as coisas de África, e um bocado de História. E também me ensoberbeci com esta inovação! – e quando a contei ao tio Adrião, o digno antiquário bateu, apesar do seu reumatismo, uma palmada tremenda na coxa. “Sim, senhor! Bela idéia! Assim se podia ensinar àquela gente iletrada, vivamente, pôr imagens, a História Romana, até a História de Portugal!...” E voltado para a prima Joaninha, o tio Adrião declarou um “homem de coração!” E realmente pela Serra crescia a popularidade do meu Príncipe. Naquele, “guarde–o Deus, meu senhor!” com que as mulheres ao passar o saudavam, se voltavam para o ver ainda, havia uma seriedade de oração, o bem sincero desejo de que Deus o guardasse sempre. As crianças a quem ele distribuía tostões farejavam de longe a sua passagem – e era em torno dele um escuro formigueiro de caritas trigueiras e sujas, com grandes olhos arregalados, que se ainda tinham pasmo, já não tinham medo. Como o cavalo de Jacinto uma tarde se chapara, ao desembocar da alameda, numas grossas pedras que aí deformavam a estrada, logo ao outro dia um bando de homens, sem que Jacinto o ordenasse, veio pôr dedicação ensaibrar e alisar aquele 116
A C I D A D E E A S S E R R A S pedaço perigoso de caminho, aterrados com o risco que correra o bom senhor. Já pela serra se espalhava esse nome de “bom senhor”. Os mais idosos da freguesia não o encontravam sem exclamarem, uns com gravidade, outros com grandes risos desdentados: –Este é o nosso benfeitor! Pôr vezes, alguma velha corria do fundo do eido, ou vinha à porta do casebre, ao avistá–lo no caminho, para gritar, com grandes gestos dos braços magros: “Ai que Deus o cubra de bênçãos! Que Deus o cubra de bênçãos!” Aos domingos, o padre José Maria (bom amigo meu e grande caçador) vinha de Sandofim, na sua égua ruça, a Tormes, para celebrar a missa na Capelinha. Jacinto assistia ao ofício na sua tribuna, como os Jacintos de outras eras, para que aqueles simples o não supusessem estranho a Deus. Quase sempre então ele recebia presentes, que as filhas dos caseiros, ou os pequenos, vinham muito corados, trazer–lhe à varanda, e eram vasos de manjericão, ou um grosso ramalhete de cravos, e pôr vezes um gordo pato. Havia então uma distribuição de cavacas e merengues de Guiães, às raparigas e às crianças – e, no pátio, para os homens circulavam as infusas de vinho branco. O Silvério já sustentava com espanto, e redobrado respeito, que o Sr. D. Jacinto em breve disporia de mais votos nas eleições que o Dr. Alípio. E eu próprio me impressionei, quando o Melchior me contou que o João Torrado, um velho singular daqueles sítios, de grandes barbas brancas, ervanário, vagamente alveitar, um pouco adivinho, morador misterioso duma cova no alto da serra, a todos afirmava que aquele senhor era El–Rei D. Sebastião, que voltara! 117