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A CIDADE E AS SERRAS - Portal Educacional

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E Ç A D E Q U E I R Ó S<br />

e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam<br />

de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com<br />

um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu<br />

gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada<br />

ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do<br />

ondeante facho da Paixão a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos<br />

assoalhados em que os Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de<br />

Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha<br />

arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de<br />

Idéias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só<br />

pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas: – ou então, para se<br />

destacar na pardacenta e chata Rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço,<br />

inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo<br />

numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com<br />

o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; – e alguns são macacos, saltando no<br />

topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão<br />

antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios<br />

como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o<br />

homem aparece como uma criatura anti–humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem<br />

sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um Histrião...<br />

E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade!<br />

E ante estas encanecidas e veneráveis invectivas, retumbadas pontualmente pôr todos os Moralistas<br />

bucólicos, desde Hesíodo, através dos séculos – o meu Príncipe vergou a nuca dócil, como se elas brotassem,<br />

inesperadas e frescas, duma Revelação superior, naqueles cimos de Montmartre:<br />

–Sim, com efeito, a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!<br />

Insisti logo, com abundância, puxando os punhos, saboreando o meu fácil filosofar. E se ao menos<br />

essa ilusão da Cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantém... Mas não ! Só uma estreita e<br />

reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e<br />

com sofrimentos especiais que só nela existem! Deste terraço, junto a esta rica Basílica consagrada ao Coração<br />

que amou o Pobre e pôr ele sangrou, bem avistamos nós o lôbrego casario onde a plebe se curva sob esse<br />

antigo opróbrio de que nem Religiões, nem Filosofias, nem Morais, nem a sua própria força brutal a poderão<br />

jamais libertar! Aí jaz, espalhada pela Cidade, como esterco vil que fecunda a cidade. Os séculos rolam; e<br />

sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através do longo dia, os homens<br />

labutarão e as mulheres chorarão. E com este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a<br />

abundância da Cidade! Ei–la agora coberta de moradas em que eles se não abrigam; armazenada de estofos,<br />

com que eles se não agasalham; abarrotada de alimentos, com que eles se não saciam! Para eles só a neve,<br />

quando a neve cai, e entorpece e sepulta as criancinhas aninhadas pelos bancos das praças ou sob os arcos das<br />

pontes de Paris... A neve cai, muda e branca na treva; as criancinhas gelam nos seus trapos; e a polícia, em<br />

torno, ronda atenta para que não seja perturbado o tépido sono daqueles que amam a neve, para patinar nos<br />

lagos do Bosque de Bolonha com peliças de três mil francos. Mas quê, meu Jacinto! a tua Civilização reclama<br />

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