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A CIDADE E AS SERRAS - Portal Educacional

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E Ç A D E Q U E I R Ó S<br />

Bravo! Quem te cozinha?<br />

–Uma afilhada do Melchior. Mulher sublime! Hás de ver a canja! Hás de ver a cabidela! Ela é<br />

horrenda, quase anã, com os olhos tortos, um verde e outro preto. Mas que paladar! Que gênio!<br />

Com efeito! Horácio dedicara uma ode àquele cabrito assado num espeto de cerejeira. E com as<br />

trutas, e o vinho do Melchior, e a cabidela, em que a sublime anã de olhos tortos pusera inspirações que não<br />

são da terra, e aquela doçura da noite de Junho, que pelas janelas abertas nos envolveu no seu veludo negro,<br />

tão mole e tão consolado fiquei, que, na sala onde nos esperava o café, caí numa cadeira de verga, na mais<br />

larga, e de melhores almofadas, e atirei um berro de pura delícia.<br />

Depois, com uma recordação, limpando o café do pêlo dos bigodes:<br />

–Ó Jacinto, e quando nós andávamos pôr Paris com o Pessimismo às costas, a gemer que tudo era<br />

ilusão e dor?<br />

O meu Príncipe, que o cabrito tornara ainda mais alegre, trilhava a grandes passadas o soalho,<br />

enrolando o cigarro:<br />

–Ó! Que engenhosa besta, esse Schopenhauer! E a maior besta eu, que o sorvia, e que me desolava<br />

com sinceridade! E todavia – continuava ele, remexendo a chávena – o Pessimismo é uma teoria bem<br />

consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga–o até o tornar uma lei<br />

universal, a lei própria da Vida; portanto lhe tira o caráter pungente duma injustiça especial, cometida contra<br />

o sofredor pôr um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal sobretudo nos amarga, quando<br />

contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho: – porque nos sentimos escolhidos e destacados para<br />

a infelicidade, podendo, como ele, Ter nascido para a Fortuna. Quem se queixaria de ser coxo – se toda a<br />

humanidade coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve e friagem e<br />

borrasca dum Inverno especial, organizado nos Céus para o envolver a ele unicamente – enquanto em redor,<br />

toda a Humanidade se movesse na luminosa benignidade duma Primavera?<br />

–Com efeito – murmurei eu – esse sujeito teria imensa razão para urrar...<br />

–E depois – clamava ainda o meu amigo – o Pessimismo é excelente para os Inertes, porque lhes<br />

atenua o desgracioso delito da Inércia. Se toda a meta é um monte de Dor, onde a alma vai esbarrar, para que<br />

marchar para a meta, através dos embaraços do mundo? E de resto todos os Líricos e Teóricos do<br />

Pessimismo, desde Salomão até o maligno Schopenhauer, lançam o seu cântico ou a sua doutrina para<br />

disfarçar a humilhação das suas misérias, subordinando–as todas a uma vasta lei de Vida, uma lei Cósmica, e<br />

ornando assim com a auréola de uma origem quase divina as suas miúdas desgraçazinhas de temperamento<br />

ou Sorte. O bom Schopenhauer formula todo o seu schopenhauerismo, quando é um filósofo sem editor, e<br />

um professor sem discípulos; e sofre horrendamente de terrores e manias; e esconde o seu dinheiro debaixo<br />

do sobrado; e redige as suas contas em grego nos perpétuos lamentos da desconfiança; e vive nas adegas com<br />

o medo de incêndios; e viaja com um copo de lata na algibeira para não beber em vidro que beiços de leproso<br />

tivessem contaminado!... Então Schopenhauer é sombriamente Schopenhauerista. Mas apenas penetra na<br />

celebridade, e os seus miseráveis nervos se acalmam, e o cerca uma paz amável, não há então, em todo<br />

Francoforte, burguês mais otimista, de face mais jucunda, e o gozando mais regradamente os bens da<br />

inteligência e da Vida!... e outro, o Israelita, o muito pedantesco rei de Jerusalém! Quando descobre esse<br />

sublime Retórico que o mundo é Ilusão e Vaidade? Aos setenta e cinco anos, quando o Poder lhe escapa das<br />

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