A CIDADE E AS SERRAS - Portal Educacional
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E Ç A D E Q U E I R Ó S<br />
e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num<br />
forno rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueira onde flamejava, estalava e se consumia um<br />
molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão duma alcova forrada de<br />
cretones sujos, duma bata de lã cor de lilás com sotaches negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore<br />
dum lavatório, e dum corpo tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação de<br />
incessantemente e com arroubado deleite me despojar, arremessar para um regaço, que se cavava entre um<br />
ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de<br />
safira, e as cento e noventa e sete libras de ouro que eu trouxera de Guiães numa cinta de camurça. Do<br />
sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando através dum sonho, com<br />
gâmbias moles e a barba a escorrer.<br />
Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da rua do Hélder, encontrei a porta<br />
fechada – e arrancado da ombreira aquele cartão de Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e<br />
que era a sua tabuleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era a porta do<br />
Mundo que ante mim se fechara! Para além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara<br />
sozinho, naquele patamar do Não–ser, fora da porta que se fechara, único ser fora do Mundo! Rolei pelos<br />
degraus, com o fragor e a incoerência duma pedra, até ao cubículo da porteira e do seu homem que jogavam<br />
as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!<br />
–Madame Colombe?<br />
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:<br />
–Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra com outra porca!<br />
Para outra terra! Com outra porca!... Vazio, negramente vazio de todo o pensar, de todo o sentir, de<br />
todo o querer – botei aos tombos, como um tonel vazio, na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei<br />
num banco da Praça da Madalena, onde tapei com as mãos, a que não sentia a febre, os olhos a que não<br />
sentia o pranto! Tarde, muito tarde, quando já se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu,<br />
de entre todas estas confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente de todas as ruínas – a idéia de jantar.<br />
Penetrei no Durand, com os passos entorpecidos dum ressuscitado. E, numa recordação que me escaldava a<br />
alma, encomendei a lagosta, o pato, o Borgonha! Mas ao alargar o colarinho, ensopado pelo ardor daquela<br />
tarde de Julho, entre a poeira da Madalena, pensei com desconforto: – “Santíssimo Nome de Deus! Que<br />
imensa sede me fez esta desgraça!...” De manso acenei ao moço: – “Antes do Borgonha, uma garrafa de<br />
Champanhe, com muito gelo, e um grande copo!...” Creio que aquele Champanhe se engarrafara no Céu<br />
onde corre perenemente a fresca fonte da Consolação, e que na garrafa bendita que me coube penetrara,<br />
antes de arrolhada, um jorro largo dessa fonte inefável. Jesus! que transcendente regalo, o daquele nobre<br />
copo, embaciado, nevado, a espumar, a picar, num brilho de ouro! E depois, garrafa de Borgonha! E depois,<br />
garrafa de Conhaque! E depois Hortelã–Pimenta granitada em gelo! E depois um desejo arquejante de<br />
espancar, com o meu rijo marmeleiro de Guiães, a porca que fugira com outra porca! Dentro da tipóia<br />
fechada, que me transportou num galope ao 202, não sufoquei este santo impulso, e com os meus punhos<br />
serranos atirei murros retumbantes contra as almofadas, onde via, furiosamente via a mata imensa de pêlo<br />
amarelo, em que a minha alma uma tarde se perdera, e três meses se debatera, e para sempre se emporcalhara!<br />
Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava tão desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do<br />
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