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Favela global : ambiguidades e tensões na ... - Revista Mutações

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Branca


Copyright© Gerson André Albuquerque Ferreira<br />

5668/1– 100– 172 – 2011<br />

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(s) Autor(es),<br />

proprietário(s) do Direito Autoral.<br />

Dados Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is de Catalogação <strong>na</strong> Publicação (CIP)<br />

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<br />

Ferreira, Gerson André Albuquerque<br />

<strong>Favela</strong> <strong>global</strong> : <strong>ambiguidades</strong> e <strong>tensões</strong> <strong>na</strong> música e<br />

<strong>na</strong> cultura juvenil urba<strong>na</strong> / Gerson André Albuquerque<br />

Ferreira. - - São Paulo : Scortecci, 2011.<br />

ISBN 978-85-366-2225-5<br />

1. Cultura Popular 2.Hip Hop - Brasil 3. Juventude -<br />

Aspectos sociais 4. Movimentos da juventude 5. Música 6. Sociologia<br />

urba<strong>na</strong> I. Título.<br />

11-05050 CDD-303.482<br />

Índices para catálogo sistemático:<br />

1. Cultura musical juvenil urba<strong>na</strong> : Movimentos<br />

culturais da juventude : Sociologia 303.482<br />

GRUPO EDITORIAL SCORTECCI<br />

Scortecci Editora<br />

Caixa Postal 11481 - São Paulo - SP - CEP 05422-970<br />

Telefax: (11) 3032-1179 e (11) 3032-6501<br />

www.scortecci.com.br<br />

editora@scortecci.com.br<br />

Livraria e Loja Virtual Asabeça<br />

www.asabeca.com.br


Para todos os jovens que embora vitimados pela violência,<br />

encontraram <strong>na</strong> arte uma potência para a luta. Em especial para os<br />

amigos do Movimento Hip Hop de Joao Pessoa-PB e de Ma<strong>na</strong>us-AM.<br />

A Gerony, Icaro e Vinicius, minha mãe, Han<strong>na</strong>h e Karoline<br />

minhas filhas do coração<br />

IN MEMORIAM: Para minha avó Joaqui<strong>na</strong> que me ensinou a<br />

inventar mundos.<br />

Para minha mãe e meus amigos Odenei, Max, Neto, Eldo,<br />

Edson Poeta e Cassiano Pedra do movimento Hip Hop da Paraíba.<br />

A Professora Dra. Tereza da Nóbrega Queiroz pela orientação e<br />

paciência em relação a minha inexperiência <strong>na</strong> pesquisa e <strong>na</strong> escrita<br />

acadêmica. Ao Prof. Dr. Paulo de Tarso C. Medeiros, que me ensinou a<br />

destruir e recomeçar um trabalho de pesquisa. Ao amigo Iury Bueno<br />

pela imagem da capa. E a todos que suportarem a leitura do livro e me<br />

concederem o direito de receber criticas como estimulo para o recomeço.


BRANCA


“... O mundo se nomeia, expressa suas lutas e desejos,<br />

reequipa o velho e inventa reinos novos.” (MEDEIROS, 2004; 31)<br />

Como um caleidoscópio enlouquecido, a grande cidade está<br />

sempre povoada pela multidão sem fim, em constante movimento,<br />

disperso e concentrado, em busca de quimeras imaginárias,<br />

sucedâneos de realidade, simulacros de experiência e virtualidades<br />

eletrônicas. (IANNI: 1996; 82)<br />

As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser<br />

eter<strong>na</strong>mente inquieto, eter<strong>na</strong>mente agitado, que, entre os muros<br />

dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto<br />

os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes. (BENJAMIN:<br />

1989; 194)<br />

Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível...<br />

(RIMBAUD)<br />

7


BRANCA


Nota do Autor<br />

Talvez se possa usar este texto como uma cidade, <strong>na</strong> qual<br />

se entra pelo caminho do culto, do popular ou do massivo.<br />

Dentro, tudo se mistura, cada capítulo remete aos outros,<br />

e já não importa saber por qual acesso se entrou.<br />

(CANCLINI: 2000: 20)<br />

Na segunda metade do século XX, aparecem no cenário<br />

mundial, novas formas de sociabilidades juvenis. Os punks, darks,<br />

funkeiros, rappers, entre outros. São formações que exibem suas<br />

marcas e presenças <strong>na</strong>s mais variadas formas e sentidos, estabelecendo<br />

contatos marcados por elementos ambíguos, que chegam<br />

ao limite da indetermi<strong>na</strong>ção. Este fato institui uma crise aguda de<br />

identificação vista como parte de um processo ampliado de mudanças<br />

que deslocam estruturas e processos centrais <strong>na</strong>s sociedades<br />

moder<strong>na</strong>s abalando com isso, os quadros de referencia que<br />

davam sustentação aos indivíduos ou grupos sociais.<br />

O próprio conceito “identidade” tor<strong>na</strong>-se demasiadamente<br />

fluido, pouco desenvolvido e pouco compreendido <strong>na</strong> ciência<br />

social e por isso se situa como objeto de reflexão. A única certeza<br />

é que este processo produz um outro tipo de sujeito (pós-moderno)<br />

concebido não mais como uma identidade fixa, essencial ou<br />

permanente, pois o próprio processo de identificação, através do<br />

qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se<br />

mais provisório variável e problemático. (HALL: 2001:7/8)<br />

É como se caminhássemos – no que diz respeito às formas<br />

de representações juvenis – à beira do indefinível, ou pelo menos<br />

da exigência de um fenômeno que gesta positivamente novas<br />

formas de apreensão dos processos em curso. São acontecimentos<br />

que parecem exigir uma nova dinâmica conceitual, indicando<br />

9


que talvez seja possível, optar pela proposta apresentada por<br />

Bourdieu em ape<strong>na</strong>s compreender uma ideia presente em seu trabalho<br />

A Miséria do Mundo. Neste trabalho sua intenção principal<br />

é construir um projeto teórico-metodológico que tenha como<br />

objetivo fundamental a análise das práticas sociais empreendidas<br />

pelos diferentes agentes sociais, elaborando uma série de<br />

conceitos voltados para a apreensão da dinâmica instituinte das<br />

ações individuais e coletivas.<br />

No que concerne às práticas sociais dos agentes dos espaços<br />

favelados, podemos considerar que elas são exercitadas através<br />

da utilização de diferentes estratégias, produzidas principalmente<br />

a partir da influência do habitus, desenvolvidas em diversos<br />

campos sociais. O habitus é concebido aqui como um conjunto<br />

sistemático de princípios simples e parcialmente substituíveis,<br />

a partir dos quais podem ser inventadas diversas soluções que<br />

não se deduzem diretamente de suas condições de produção. Aqui<br />

se trata da experiência urba<strong>na</strong>, ou a experiência ordinária própria<br />

aos grupos urbanos.<br />

Estamos ante identidades más precárias y flexibles de<br />

temporalidades menos largas y dotadas de u<strong>na</strong> flexibilidade<br />

que les permite amalgamar ingredientes provenientes de<br />

mundos culturales distantes y heterogéneos, y por lo tanto<br />

atravesadas por dis-continuidades en las que gestos atávicos<br />

com reflejos modernos, secretas cumplicidades con<br />

rupturas radicales. (BARBERO: 2002:5)<br />

Nessa direção entendemos juventude como uma das tantas<br />

categorizações que somente pode indicar uma aproximação<br />

dos contornos de relações que espelham o fundo de uma trama<br />

social de grande complexidade. São tipos sociais que desafiam<br />

nossa percepção e nossos quadros de racio<strong>na</strong>lidade: uma forma<br />

de identificação que dá abertura a um movimento descentralizado,<br />

cujo exemplo está dado <strong>na</strong>s <strong>tensões</strong> e contradições que deram<br />

10


forma à cultura Hip-Hop e que podem confundir aqueles que se<br />

esforçam para interpretá-la, até mesmo os mais perspicazes observadores<br />

e críticos.<br />

Alguns a<strong>na</strong>listas veem este acontecimento como uma prática<br />

pós-moder<strong>na</strong> de quintessência, enquanto outros o veem como<br />

um predecessor moderno da tradição oral. Existem ainda uns que<br />

o celebram como crítica ao consumo capitalista, enquanto outros<br />

simplesmente conde<strong>na</strong>m sua cumplicidade com o comércio<br />

dos bens culturais. Para um grupo de críticos entusiastas, essa<br />

expressão combi<strong>na</strong> elementos do discurso, da música, da dança,<br />

da exibição para que, por meio das performances, darem vida à<br />

novas identidades e posições do sujeito. Ora é moda, ora é revolta.<br />

Para outro grupo vociferante, o Hip-Hop exibe ape<strong>na</strong>s uma<br />

forma fantasmagórica da lógica cultural do capitalismo tardio. O<br />

único ponto em acordo é de que estas identidades sejam elas, de<br />

ondulação, de mergulho e de ruptura, elas refletem e contestam<br />

simultaneamente os papéis sociais legados aos jovens suburbanos<br />

no fi<strong>na</strong>l do século XX.<br />

Pela complexidade dessa formação, não se pretende encontrar<br />

identidades estáveis de diferenciação, tais como entre o<br />

normal e patológico, a civilização e a barbárie, a razão e a loucura<br />

– mas fundamentalmente compreender as formas múltiplas de<br />

identificação, relacio<strong>na</strong>das às formas de ação das culturas juvenis.<br />

A identidade tor<strong>na</strong>-se uma “celebração móvel”: formada e<br />

transformada continuamente em relação às formas pelas quais<br />

somos representados e interpelados nos sistemas culturais que<br />

nos nomeiam. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes<br />

momentos, identidades que não são unificadas em um “eu”<br />

coerente. Dentro de nós existem identidades contraditórias, empurrando<br />

em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações<br />

estão sendo continuamente deslocadas. (HALL: 2001:13)<br />

Tendo por fio condutor a ideia de que o processo de identificação<br />

ocorre em um ambiente de complexidade e de inúmeras<br />

11


possibilidades de escolha, onde o “eu” é relacio<strong>na</strong>l e móvel, se<br />

redefine continuamente como resposta a uma dinâmica social<br />

que exige uma “racio<strong>na</strong>lidade aberta” para a compreensão da<br />

multiplicidade das linguagens e relações produtoras das identidades<br />

sociais.<br />

Partirei aqui de problemas lógicos da definição dos movimentos<br />

de juventude, como também da própria juventude enquanto<br />

categoria social; tentando demonstrar alguns impasses da<br />

Sociologia <strong>na</strong> apreensão objetiva das diversas facetas dos movimentos<br />

culturais juvenis no mundo contemporâneo. E a partir<br />

disso apresentarei algumas formulações para análise dos problemas<br />

apontados; primeiramente a partir dos próprios grupos juvenis,<br />

onde se elaboram formas práticas de identificação, tais como,<br />

atitude e quebrada etc., pois existe uma vinculação entre as formas<br />

de identificação e o uso dos espaços da cidade.<br />

Posteriormente a escrita se (des)dobra para discutir formas<br />

usuais de identificação usada pelos grupos juvenis, que permitem<br />

se pensar aqui, as identidades como formações complexas<br />

em constante reelaboração a partir de uma multiplicidade de<br />

experiências e jogos relacio<strong>na</strong>is dos quais os sujeitos participam,<br />

e se colocam <strong>na</strong> condição de vivência simultânea em múltiplos<br />

pertencimentos. A migração do interior do Amazo<strong>na</strong>s pela sedução<br />

da capital industrial, a Zo<strong>na</strong> Franca é aqui pensada como<br />

parte dinâmica desse jogo.<br />

Uso o termo “horror da indetermi<strong>na</strong>ção”, a partir da ideia<br />

de Zygmunt Bauman em sua discussão sobre modernidade e<br />

ambivalência, onde ele mostra a complexidade extrema da<br />

modernidade em que estão em aparecimento formas totalmente<br />

novas e, portanto formas que estão ainda em uma indefinição.<br />

Uma espécie de área cinzenta habitada por pessoas estranhas:<br />

as que ainda não estão classificadas, ou classificadas por<br />

critérios semelhantes aos nossos, portanto ainda desconhecidos<br />

por nós mesmos. Verdadeiros híbridos, os monstros: não ape<strong>na</strong>s<br />

não classificados, mas não-classificáveis. (BAUMAN: 1990:161)<br />

12


Um estranho que entrou no mundo vital sem ser convidado,<br />

trazendo para dentro do círculo interno da proximidade o<br />

tipo de diferença e alteridade previstas e toleradas ape<strong>na</strong>s à distância<br />

– onde elas podem ser rejeitadas como irrelevantes ou<br />

repelidas como inimigas. O estranho representa uma síntese de<br />

aproximação e de distância, incongruente e portanto, ressentida.<br />

(BAUMAN: 1990:162)<br />

Estes são os elementos que pretendo disponibilizar para o<br />

debate e crítica. Sobretudo, estimular novas tentativas de compreensão<br />

dos acontecimentos presentes em nosso século, mesmo<br />

que esta leitura se apague rapidamente como é próprio do existir<br />

contemporâneo.<br />

Que este livro possa oferecer ao leitor alguns problemas e<br />

que eles sigam uma outra rota, um outro tempo, uma nova esperança,<br />

pois este é um evento que acabou de escapar...<br />

13


BRANCA


Apresentação<br />

“Não vos posso dar uma morada, porque ignoro onde<br />

estarei pessoalmente nos próximos tempos (Rimbaud)<br />

Os estilos juvenis aqui abordados são pensados como acontecimentos<br />

que indicam problemas referentes ao campo das trocas<br />

sociais e apresentam aspectos de resistência, bem como de<br />

marcas de uma relação fetichizada e intermediada pelo mercado<br />

de bens culturais. Podem também ser compreendidos como movimentos<br />

culturais que ence<strong>na</strong>m o cotidiano urbano, em seus diversos<br />

processos, articulando códigos particulares e referentes<br />

globais de moda e de revolta.<br />

São as marcas da “favela-mundo”, da “favela-<strong>global</strong>”, que<br />

podem ser apontadas como indicações das modificações em profundidade<br />

<strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza da obra de arte a partir de condições técnicas<br />

de reprodução oferecidas pela sociedade tecnológica. Nesse<br />

sentido, um dos elementos do Hip-Hop, o rap corresponde à<br />

uma primeira expressão musical a utilizar sistematicamente técnicas<br />

de reprodução sonora.<br />

Sua composição é construída essencialmente a partir de<br />

um conjunto de procedimentos manuais e tecnológicos, em que<br />

o beat box está em estreita correspondência, além de representar<br />

um novo tipo de saber-fazer musical, uma estética eletrônica,<br />

considerada aqui como desdobramento de um processo<br />

subjetivante de matriz tecnológica.<br />

O traçado do problema está relacio<strong>na</strong>do com as dimensões<br />

estratégicas e as significações distintas de “arte-poder” que<br />

incluem a construção de um espaço comunicativo sobreposto ao<br />

solo da experiência. Remete ainda a uma multiplicidade de eventos<br />

que escapam aos esquemas construídos com os fundamentos<br />

de uma lógica binária e de apreensões que incluem o outro, o<br />

15


“estranho” ape<strong>na</strong>s como uma configuração acidental e desprovida<br />

de valor, ultrapassando tanto a dualidade de termos como as<br />

correspondências de relações, como se operasse constantemente<br />

em linhas de fuga, escapando assim de qualquer esquema fixo ou<br />

de centralização.<br />

O “estranho” de quem se fala é aquele que deposita seus<br />

traços constitutivos em espaços inusitados da cidade,<br />

(re)territorializando-a com seus si<strong>na</strong>is de identificação, que se<br />

assemelham a textos sociais. São inscrições marcadas inicialmente,<br />

<strong>na</strong>s impressões do artista Jean Michel Baskiat, <strong>na</strong>scido em Nova<br />

York em 1960, filho de uma porto-riquenha e de um haitiano.<br />

Ele levou a vitalidade dessa arte de rua para o fechado circuito<br />

das artes plásticas nova-iorqui<strong>na</strong>s. Abaixo estão alguns traços de<br />

Jean Michel Baskiat para ilustrar a nova grafia das ruas si<strong>na</strong>lizando<br />

para uma nova atitude da juventude urba<strong>na</strong>.<br />

Quando me refiro à vida e ao estilo de Jean-Michel Baskiat<br />

penso em seus textos pintados e entendo que suas palavras incorporam<br />

diretivas culturais revelando uma cidade polifônica e<br />

polissêmica. Expressam sobretudo, o que é ser negro <strong>na</strong> cidade<br />

mais glamourosa do mundo, pois seus grafites são, entre outras<br />

coisas, curiosos ensaios de autodefinição cultural, refletem o<br />

Brooklin haitiano da classe média, o museu do Brooklin, as ruas<br />

dos grafiteiros e principalmente sua própria arte.<br />

Criticamente comunicam o sentido da cidade, sua geografia<br />

diversa e seus pontos nevrálgicos, raciais, linguísticos e culturais,<br />

conferindo coerência e visibilidade. É uma demonstração dos traços<br />

da primeira e da segunda geração de citações expressionistas<br />

abstratas combi<strong>na</strong>ndo-as com cartoons, grafites e outros estilos.<br />

Nesse processo, Baskiat deu forma física a si<strong>na</strong>is de seu<br />

tempo fundidos com uma concepção de arte que rompia padrões<br />

e insinuava marcas a partir de seu próprio devir.<br />

A separação que prevaleceu em todos os domínios não pode<br />

mais ser aplicada de maneira estrita. Alma e corpo, espírito e<br />

matéria, o imaginário e a economia, a ideologia e a produção – a<br />

16


lista poderia ser muito longa – não se opõem de maneira radical.<br />

Na verdade, essas entidades e as minúsculas situações concretas<br />

que elas representam, conjugam-se para produzir uma vida quotidia<strong>na</strong><br />

que cada vez mais escapa à taxonomia simplificadora à<br />

qual havíamos sido habituados por certo positivismo reducionista.<br />

(Maffesoli, 2000: 21)<br />

Este processo indica a destituição de mediadores tradicio<strong>na</strong>is<br />

do discurso político, cultural e científico, e dá sequência a um<br />

movimento no qual a realidade emerge em estilhaços de formas,<br />

estilos e significados, afirmando como contraponto uma lógica que<br />

privilegia a diferença, ou a lógica do “mais-que-um”, exigindo uma<br />

interpretação do ponto de vista da micropolítica. Corresponde à<br />

linha de fuga, que metaforicamente para Deleuze e Guatarri (1997)<br />

começa por um minúsculo riacho, sempre correndo entre segmentos,<br />

escapando de sua centralização, furtando-se a totalização. Sempre<br />

vaza ou foge alguma coisa, que escapa as organizações binárias,<br />

ao aparelho de ressonância, e à máqui<strong>na</strong> de sobrecodificação.<br />

Deleuze e Guatarri (1997; 222), dizem que somos feitos<br />

de três linhas e que cada espécie de linhas tem seus perigos. Não<br />

só as linhas de segmentação que nos cortam e nos impõe estrias<br />

de um espaço homogêneo; também as linhas moleculares que já<br />

carreiam seus micro-buracos negros; por último as próprias linhas<br />

de fuga que sempre ameaçam abando<strong>na</strong>r suas potencialidades<br />

criadoras para transformar-se em linha de morte, em linha de<br />

destruição pura e simples.<br />

Maio de 1968 <strong>na</strong> França era molecular suas condições ainda<br />

mais imperceptíveis do ponto de vista da macropolítica. E<br />

todos aqueles que julgavam em termos de macropolítica <strong>na</strong>da<br />

compreenderam do acontecimento, pela existência de algo<br />

i<strong>na</strong>ssi<strong>na</strong>lável. No entanto, o inverso seria também verdadeiro: as<br />

fugas e os movimentos moleculares não seriam <strong>na</strong>da se não repassassem<br />

pelas organizações molares e não remanejassem seus<br />

segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classes, de<br />

partidos. (Deleuze: 2004; 94)<br />

17


A identificação aqui é pensada como um processo que opera,<br />

por meio da diferença, daquilo que é deixado de fora – do<br />

exterior 1 que a constitui, podendo ser concebida como fonte de<br />

diversidade, heterogeneidade e hibridismo. Esta questão está no<br />

centro da teoria social e das práticas políticas contemporâneas –<br />

principalmente daquelas que escapam dos dispositivos tradicio<strong>na</strong>is<br />

ancorados <strong>na</strong> família, trabalho, igreja, entre outras. São grupos<br />

culturais que se tor<strong>na</strong>m visíveis <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> contemporânea e<br />

que demandam iniciativas em pensá-los, como signos de resistência<br />

e ambiguidade presentes no âmbito da sociedade<br />

tecnológica, mas também como ence<strong>na</strong>ção de um estilo inevitavelmente<br />

apropriado e transformado em valor de troca.<br />

As formas de construção das gírias, a sua lógica cultural<br />

restrita, parecem conferir um outro estatuto, uma nova ordem de<br />

acontecimento e ocupação dos espaços, bem como de inserções<br />

<strong>na</strong>s tramas diárias da vida urba<strong>na</strong>. É nesse sentido que se pode<br />

falar da transfiguração do político ou do social, que (se) constrói<br />

(em) uma figura diferente da predomi<strong>na</strong>nte <strong>na</strong> modernidade. Uma<br />

estética e um estilo que não se limitam às belas artes ou às obras<br />

da cultura, afirmando-se contrariamente no conjunto de relações<br />

da vida cotidia<strong>na</strong>, até certo ponto como valor independente e se<br />

tor<strong>na</strong>ndo parte considerável para a compreensão do imaginário<br />

urbano, operando uma desconstrução de hierarquias habituais,<br />

de conceitos básicos e/ou de fundação e relações conceituais de<br />

domi<strong>na</strong>ção.<br />

Nessa sequência o fechamento praticado durante toda a<br />

modernidade, mostra por todos os lados, si<strong>na</strong>is de fraqueza. Pouco<br />

importa, de resto, os que representam seus vetores: os hippies,<br />

1 Afirmar um “pensamento do exterior” significa, afirmar um pensamento em<br />

que desaparece o sujeito, ao menos este tipo de sujeito moderno, autorreferente e<br />

centrado em si mesmo. O exterior é por excelência o lugar do outro. Um pensamento<br />

do exterior é um pensamento do outro. Mas não do outro como um<br />

“outro eu”, e sim do outro enquanto tal, do outro que está inclusive no eu.<br />

Afirmar o pensamento do exterior significa afirmar a diferença como diferença,<br />

sem um retorno ao mesmo.<br />

18


vagabundos, poetas, jovens sem ponto de referência. O certo é<br />

que a “circulação” recomeça. Quebra os grilhões e os limites estabelecidos,<br />

e quaisquer que sejam seus domínios: político, ideológico,<br />

profissio<strong>na</strong>l, cultural, as barreiras desmoro<strong>na</strong>m. Nada pode<br />

represar seu fluxo. O movimento e a efervescência estão em todas<br />

as cabeças. (MAFFESOLI: 2001; 27)<br />

Pode-se dizer que este movimento funcio<strong>na</strong> como uma rachadura<br />

produzida nos sentidos, um corpo sem órgãos, poderosa<br />

vida não orgânica que escapa dos estratos, atravessando<br />

agenciamentos e traçando uma linha abstrata e sem contorno,<br />

linha da arte nômade que escapa, vaza e desliza criando um hiato<br />

de sentido para compreensão sociológica. Um hiato que liga, mas<br />

é passagem.<br />

O scratching equivaleria a uma marca principal dessa rachadura,<br />

sobretudo, por seu ruído tecnológico estridente tal como se<br />

fosse um rasgo que por exemplo corresponderia à própria subversão<br />

do sentido de determi<strong>na</strong>das palavras ordi<strong>na</strong>riamente usadas<br />

para constituir relações de tratamento ou de cordialidade.<br />

“E aí vagabundo! Aí ladrão!”<br />

É como se a inversão se tor<strong>na</strong>sse em um mecanismo de<br />

defesa e (dis)simulação, possibilitando estratégias e lutas simbólicas<br />

com o objetivo de neutralizar determi<strong>na</strong>dos esquemas<br />

classificatórios 2 . Palavras e frases ganham significações diferentes<br />

e inversas. Como propositalmente se entendesse que do “ou-<br />

2 Embora a ideia de Baudrillard sobre o simulacro o impeça de encontrar saídas<br />

para a domi<strong>na</strong>ção sistêmica do código, em alguns pontos ele indica possibilidades<br />

de reversão. Esta possibilidade é dada em sua análise sobre os efeitos da prática do<br />

grafite em Nova Iorque mostrando que a juventude do subúrbio conseguiu<br />

reverter o código, opondo a ele uma tautologia própria que não pode se decriptada<br />

pelo sistema. A solução não se dá no sentido de uma volta à significação nem à<br />

luta pela legitimação de significações huma<strong>na</strong>s, mas à reversão através do código.<br />

Em outras palavras, é preciso sair da lógica imposta pelo código criando outro<br />

código. Cujos sentidos dos signos sejam contrários ao anterior.<br />

19


tro lado” essas significações provocam ambiguidade e dissimulação<br />

em uma relação praticada e atualizada no acontecimento.<br />

Tor<strong>na</strong>-se uma verdadeira disputa e jogo, uma espécie de guerrilha<br />

linguística que possibilita o encobrimento e o disfarce dos<br />

verdadeiros sentimentos, autorizando uma sutil autoafirmação e<br />

reforço da solidariedade do grupo 3 .<br />

Temos em conta esta dimensão do grafite, mediante um<br />

reconhecimento de seus traços inscritos no espaço público, quase<br />

sempre de forma clandesti<strong>na</strong>. É no sentido de uma marca<br />

transgressora, bem como portadora de indicações simbólicas, que<br />

mostram uma riqueza inesgotável de significados e matizes e que<br />

atuam como <strong>na</strong>rrativas do cotidiano da cidade. Este fato escapa<br />

aos olhos de um observador alheio a estas composições, bem<br />

como de seus traços sociológicos.<br />

Na abordagem de Maffesoli (1987), estas expressões podem<br />

ser diversas, mas sua lógica tem algo de constante: o fato de<br />

compartilharem um hábito, uma ideologia, um ideal que determi<strong>na</strong><br />

um “ser conjunto” de valores, que permite que este também<br />

seja uma proteção contra imposições. É a relação arte/experiência<br />

intermediada por uma estética da transgressão e pontuada pela<br />

constituição de um modelo ético-estético, no qual não temos simplesmente<br />

uma relação explicativa da realidade, mas sim um processo<br />

de ence<strong>na</strong>ção ou teatralização de determi<strong>na</strong>dos aspectos<br />

da realidade, processo este que pode ser acompanhado através de<br />

uma “sonoplastização” da experiência representada pelos ruídos,<br />

sons, barulhos, e outras possibilidades sonoras da cidade.<br />

Outro caminho também a seguir nessa discussão, é a questão<br />

da atitude que pode ser aqui compreendida como uma articulação<br />

de códigos não delimitados ou não conceituados diretamente, mas<br />

3 Caberia mencio<strong>na</strong>r a ideia de Habermas (2002), sobre a descentralização dos<br />

esquemas racio<strong>na</strong>is que conduz por um lado, à inserção dos sujeitos socializados<br />

em contextos do mundo da vida, por outro lado, à convergência da cognição com<br />

o falar e o agir.<br />

20


que mesmo através do silêncio de gestos, procedimentos e formas<br />

de ser reconhecido e respeitado em determi<strong>na</strong>do território seja ele<br />

espacial ou simbólico, vai aproximar ou interditar determi<strong>na</strong>das relações<br />

entre grupos. É uma forma de viver, ver, sentir, ouvir, seguir<br />

códigos velados e saber “onde se está pisando”.<br />

O viés da ética aqui esta ligado a uma forma de comunicar e<br />

vivenciar determi<strong>na</strong>das regras pertinentes a um território ou grupo,<br />

passando assim por uma ideia de atitude, que seria uma espécie<br />

de julgamento da realidade vivenciada, códigos morais, normas<br />

estabelecidas. A estética aqui está ligada a uma forma de proximidade<br />

sonora que serviria tanto para dar o sentido de proximidade e<br />

pertencimento ao grupo ou dentro do grupo, quanto para diferenciar<br />

o outro aquele que não é nós.<br />

Dito de outra forma significa a arte em conexão com a<br />

experiência da cidade, conjugada com um elo subjetivo, bem como<br />

de objetivações de marcas de cotidianidade e pertencimento. É a<br />

configuração de um ethos, marca de um lugar ou de uma “quebrada”.<br />

Quero dizer que nessas formas sociais, existem práticas e<br />

articulações de sentido que não são visíveis a certa perspectiva<br />

do olhar, exigindo, com isso, outros pontos de vista sobre a dinâmica<br />

da cidade.<br />

É a cidade polifônica (e polissêmica), que reúne diferentes<br />

formações societárias com seus estilos e formas particulares de<br />

fazer, dizer e sentir. Uma cidade que se comunica com vozes<br />

diversas, <strong>na</strong>rradas em um coro polifônico, no qual vários itinerários<br />

musicais ou materiais sonoros se entrecruzam, se encontram<br />

e se fundem, obtendo harmonias elevadas ou dissonâncias, através<br />

de suas respectivas linhas melódicas. Nessa perspectiva a<br />

cidade se caracteriza pela sobreposição de melodias, harmonias,<br />

ruídos, sons, regras e improvisações, cuja soma total, simultânea<br />

ou fragmentária, comunica o sentido sociológico da pesquisa que<br />

exige um método versátil, e plural. Uma cidade que será lida e<br />

interpretada com os recursos próprios de uma experiência cultu-<br />

21


al da juventude urba<strong>na</strong> com suas regras, seus estilos e improvisações.<br />

(CANEVACCI: 1997)<br />

O estigma produz recortes, alianças, diferenças e afinidades,<br />

além de contor<strong>na</strong>r outra cartografia, instituindo assim outras<br />

formas de estratificação e marcas de pertencimento e não<br />

pertencimento, de territorialidades.<br />

A <strong>na</strong>rrativa sobre a cidade constitui um pano de fundo da<br />

interpretação. A linguagem dura do rap representa as desigualdades<br />

reais e simbólicas que desenham o espaço urbano, marcando<br />

uma resposta pelo poder da palavra, da denúncia, das péssimas<br />

condições de vida como meio de conscientização e de luta por<br />

alter<strong>na</strong>tivas para o povo pobre da periferia.<br />

Sendo assim, a dissemi<strong>na</strong>ção deste movimento indica a não<br />

aceitação das condições opressivas, bem como do desejo de<br />

integração à cidade, desejo que é (com)partilhado principalmente<br />

por sua população mais jovem. É como se esta parcela juvenil<br />

respondesse a este estado de coisas, (re)desenhando o traçado<br />

urbano, ultrapassando limites simbólicos e (re)apropriando-se da<br />

cidade fugidia.<br />

Esta parcela mais pobre encontra <strong>na</strong> música e outras formas<br />

de expressões artísticas, um ca<strong>na</strong>l propicio para a manifestação<br />

do seu descontentamento, além de si<strong>na</strong>lizar para a urgência<br />

de se repensar o sentido e a estratificação espacial da cidade.<br />

Aqui, o interesse é o cotidiano da cidade, as representações<br />

presentes <strong>na</strong>s inscrições e as múltiplas vozes inscritas nos<br />

espaços mais inusitados da cidade, um campo simbólico margi<strong>na</strong>l,<br />

uma área de transgressão, uma experiência transgressora em<br />

que se sobressai uma potência estética e politica, de luta e de<br />

resistência. Essa dinâmica tor<strong>na</strong> possível uma estetização da existência,<br />

si<strong>na</strong>lizada <strong>na</strong> construção de um estilo de vida, paradoxalmente<br />

arregimentada pelo mercado cultural e transformada em<br />

valor de troca. O que era revolta se tor<strong>na</strong> moda, mercadoria,<br />

uma subversão das intenções nucleares do movimento, em não<br />

22


disponibilizar voluntariamente suas <strong>na</strong>rrativas fora de seu contexto<br />

de entendimento e participação.<br />

O que há de constante nesse movimento é sua luta por reconhecimento,<br />

muito embora a luta por vezes esbarre no paradoxo e<br />

<strong>na</strong> ambiguidade como se escapasse, deslizasse para outros usos e<br />

sentidos, o sentido do i<strong>na</strong>cabado, da mutação constante.<br />

Se por um lado, há uma crítica ao consumo enquanto modo<br />

de vida da classe média. Em outra extremidade, ocorre um processo<br />

inverso que afirma o consumo, embora enquanto uma possibilidade<br />

de participação nos benefícios do progresso e da técnica.<br />

Alguns são radicalmente contra esta postura, mas inevitavelmente<br />

o caminho de seu aparecimento e afirmação implica a participação<br />

nos esquemas milionários das gravadoras e grifes esportivas<br />

famosas, uma embalagem de luxo.<br />

O que há em comum entre os grupos é a experiência da<br />

cidade, pois é sobre a cidade que se fala, em especial da rua, do<br />

bairro, da favela, da “quebrada”, dos “de dentro”, dos “de fora”,<br />

dos “considerados”, dos “manos”, se instituindo assim uma verdadeira<br />

(re)significação de formas e categorias sociais. São marcações<br />

simbólicas, meios pelos quais dão sentidos às práticas e<br />

às relações sociais, definindo por exemplo, quem é “de fora” e<br />

quem é “de dentro”, si<strong>na</strong>lizando de um outro lado ao que pode<br />

também vir a se constituir como ação reacionária. Há portanto aí<br />

um risco de fascismo neste nós, os “manos”, os “considerados”<br />

versus os playboys, os burgueses, que vai depender da forma como<br />

reagem a determi<strong>na</strong>dos valores. Tais formas estão implicadas <strong>na</strong>s<br />

suas diferentes configurações, cuja marca empírica está localizada<br />

em acordo com as diferentes regiões geográficas ou culturais.<br />

Para Deleuze e Guattari (2004: 92),<br />

“o fascismo é inseparável dos focos moleculares que pululam<br />

e saltam de um ponto a outro em constante interação.<br />

Fascismo rural e fascismo de cidade ou de bairro, fascismo<br />

jovem, fascismo ex-combatente, fascismo de esquerda, de<br />

direita, de casal, de família, de escola ou de repartição. Cada<br />

23


fascismo se define por um microburaco negro, que vale por<br />

si mesmo e comunica com os outros, antes de ressoar num<br />

grande buraco negro central generalizado.”<br />

Há fascismo quando uma máqui<strong>na</strong> de guerra encontra-se<br />

instalada em cada buraco, em cada nicho. Essas identificações –<br />

marcadas por símbolos – constam de uma associação entre o reconhecimento<br />

de si ou do grupo com um estilo e práticas específicas.<br />

Identidades que adquirem sentidos, por meio da linguagem<br />

ou das marcas pelas quais elas são representadas e que atuam<br />

no sentido de classificação do sistema social a qual pertencem.<br />

O Hip Hop é entendido como parte do fluxo e das <strong>tensões</strong><br />

das relações globais, atualizado <strong>na</strong> experiência local, produzindo<br />

uma multiplicidade de relações e situações específicas de mundo.<br />

Suas representações indicam pistas para se repensar o Brasil<br />

atual, especificamente o Brasil que emerge no imaginário socialurbano<br />

e que tem <strong>na</strong>s formas de comunicação juvenis, principalmente<br />

através da música juvenil, um importante terreno de produção<br />

de estilo, visão crítica, e compreensão, bem como de<br />

explicitação de conflitos e diferenças deste universo.<br />

Aqui evidenciamos formas de sociabilidades e estratégias<br />

que insinuam uma nova apreensão do Brasil, enquanto um cenário<br />

conflituoso, revelado por expressões culturais singulares que<br />

insinuam uma marca significativa pelo desenho de uma realidade<br />

caótica das cidades. São demonstrações de impedimentos <strong>na</strong> forma<br />

de pertencimentos sociais, onde a cor, posição social, gosto<br />

ou o temperamento podem desorde<strong>na</strong>r o fluxo entre uma área e<br />

outra, desencadeando atritos entre grupos articulados frente as<br />

diferentes malhas territoriais. (Alvim: 2000)<br />

Este pressuposto é o fio condutor sobre o qual se pretende<br />

construir uma leitura sobre as <strong>tensões</strong> marcadas pela falência do<br />

modelo cultural mítico de um Brasil cordial, tendo como cenário<br />

a cidade, ou seja, os conflitos específicos di<strong>na</strong>mizados desse espaço<br />

e <strong>na</strong>rrados no período entre 1960 e 1990 do século XX.<br />

24


Sumário<br />

Introdução – O Hip Hop como dimensão da<br />

sociedade tecnológica ................................................................... 27<br />

Capítulo 1 – Música, política e cotidiano.................................. 37<br />

1.1. Modernidade, migração e cidade: As promessas<br />

da cidade tecnológica e a constituição da experiência<br />

urba<strong>na</strong> ................................................................................... 61<br />

1.2. Ma<strong>na</strong>us, anos 1990: O Hip Hop <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> ................ 79<br />

1.3. A <strong>na</strong>rrativa urba<strong>na</strong> como história de si mesmo ou<br />

a simultaneidade do movimento Hip Hop ...................... 83<br />

Capítulo 2 – Da estética da existência à estetização da<br />

vida cotidia<strong>na</strong> ................................................................................. 99<br />

2.1. A tecnologia como modelo subjetivante, ou a base<br />

tecnológica do Hip Hop....................................................107<br />

Capítulo 3 – Da ultrapassagem a estética da<br />

transgressão ..................................................................................115<br />

3.1. O paradoxo do estilo: A marca vira moda............121<br />

Capítulo 4 – As posses: A dimensão política e cultural do<br />

movimento Hip Hop ....................................................................137<br />

4.1. O quinto elemento (consciência e atitude) ou a<br />

dimensão política do Hip Hop ........................................148<br />

Esta “quebrada” é nossa! – leitura sobre a luta por<br />

espaços <strong>na</strong> cidade ........................................................................155<br />

Referências ...................................................................................165


BRANCA


Introdução<br />

O Hip Hop como dimensão<br />

da sociedade tecnológica<br />

O mundo contemporâneo inclui em sua dinâmica, alterações<br />

significativas nos processos políticos, estéticos, econômicos<br />

e <strong>na</strong>s experiências cotidia<strong>na</strong>s de indivíduos e de grupos sociais<br />

diversos. São emergências de traços e peculiaridades que vão<br />

contribuir para a realização de intervenções orientadas por meio<br />

de marcas de pertencimento, e de formas específicas de comunicação<br />

e poder implicadas aqui, <strong>na</strong> compreensão de um projeto<br />

estético denomi<strong>na</strong>do de estética da transgressão 4 , um caminho inverso<br />

que pode ser pensado como signo de resistência, embora<br />

esse modelo estético esteja inevitavelmente sujeito à apropriação<br />

pelo mercado dos bens simbólicos.<br />

Representa contudo, a impossibilidade de uma crítica social,<br />

ou simplesmente um movimento que opera uma ultrapassagem,<br />

mas que imediatamente é mi<strong>na</strong>do, domesticado e seguidamente<br />

atribuído à marca de um valor de troca? Esta questão faz<br />

parte do traçado do problema aqui apresentado, um momento de<br />

permanente tensão. É o campo do limite, subjacente ao traçado<br />

lógico da transgressão.<br />

Até que ponto o movimento Hip Hop (como uma dimensão<br />

da sociedade tecnológica), consegue escapar desses imperativos<br />

da domi<strong>na</strong>ção? Será que o esforço para emancipar o diferente, é<br />

destituído pela razão instrumental e pelos imperativos da cultura<br />

de massa? Em uma outra ordem, os traços do movimento Hip<br />

Hop são pensados como marcas de ambiguidade e tensão, que<br />

põem em xeque a realização de modelos conciliatórios. Apresenta<br />

uma outra ordem de possibilidade em que a sociedade pode despontar<br />

sob a determi<strong>na</strong>ção de marcas de conflitos, obtendo pela,<br />

4 Ver capítulo III<br />

27


e <strong>na</strong> comunicação visual 5 um importante terreno da explicitação<br />

desses conflitos, bem como da produção de estilos e condutas.<br />

Pode também ser pensado como um contradiscurso que de<br />

alguma forma neutraliza a fala incrimi<strong>na</strong>tória dos noticiários em<br />

relação aos integrantes do movimento, estabelecendo as marcas<br />

de uma conduta regulada e intermediada por um ethos específico.<br />

Sobretudo, os caminhos percorridos pelo movimento Hip<br />

Hop estão associados a uma via sinuosa que os obriga a estabelecerem<br />

negociações permanentes, no sentido da afirmação de seus<br />

códigos e referenciais, oferecendo tanto a possibilidade de construção<br />

de uma visão crítica e/ou plural do social, quanto a sua<br />

mediação e administração pelas estruturas que gerenciam os ritmos<br />

do espetáculo de consumo. (BENTES: 2002)<br />

Se por um lado a imagem deles aparece <strong>na</strong> mídia quase<br />

sempre associada a violência ou a facções criminosas, por outro<br />

lado constata-se um grande interesse por sua produção cultural.<br />

Sua imagem provoca um enorme fascínio (principalmente<br />

sobre a juventude urba<strong>na</strong>), constituindo um modelo de sociabilidade<br />

mediado por estilos e formas particulares de expressão e<br />

comunicação. A transgressão se tor<strong>na</strong> um diferencial de mercado,<br />

o Hip Hop vira mercadoria. É como se o simbólico deslizasse<br />

da ordem da própria produção do sentido (político ou outro) para<br />

a ordem da sua reprodução, que é sempre a do poder.<br />

O simbólico tor<strong>na</strong>-se puro e simples coeficiente simbólico,<br />

a transgressão tor<strong>na</strong>-se valor de troca. (BAUDRILLARD:<br />

1970; 233)<br />

Está configurado assim um caminho paradoxal que oscila<br />

entre a conde<strong>na</strong>ção e a aceitação, possibilitando a emergência de<br />

novos sujeitos portadores de discurso que aparecem <strong>na</strong> ce<strong>na</strong>, como<br />

os “margi<strong>na</strong>is midiáticos”. É ainda um movimento cultural juvenil<br />

articulado em torno de um estilo que vem ocupando o espaço<br />

das instituições clássicas de produção de identidades, de orientação<br />

de condutas bem como de reelaboração de projetos coletivos e<br />

5 Ver CANEVACCI. In: Culturas Extremas.<br />

28


individuais. Traduz-se sobretudo, pela forma política que aponta<br />

para um projeto ético-estético, cuja realização está posta <strong>na</strong>s trocas<br />

diárias da vida social. Dimensão contemplada no Capítulo I:<br />

Música, Política e Cotidiano.<br />

Este capítulo (re)monta um quadro histórico-teórico que se<br />

convencionou chamar “virada cultural”, momento em que as questões<br />

relacio<strong>na</strong>das à política aparecem em uma outra configuração,<br />

uma outra ordem discursiva, seja em relação a suas reivindicações,<br />

seja em relação as suas estratégias de luta. Nesse sentido, os movimentos<br />

sociais passam a gravitar em torno de questões culturais,<br />

bem como de formas de identificação. O sujeito que emerge é um<br />

sujeito coletivo difuso, não-hierarquizado e em luta contra as discrimi<strong>na</strong>ções<br />

de acesso aos bens da modernidade. E ao mesmo tempo,<br />

critica seus efeitos nocivos. Constitui uma articulação, não mais<br />

em torno de problemas específicos de distribuição, mas em torno<br />

de questões relativas ao “mundo vivido” ou à gramática das formas<br />

de vida, como também, à mudanças relativas a transformações<br />

recentes da sociedade industrial.<br />

Optamos por qualificar provisoriamente esta dimensão como<br />

uma forma de “política vida”, por estar articulada a um modelo distinto<br />

da política emancipatória (ideal iluminista), que embora apresente<br />

alguns elementos deste modelo político, no que diz respeito à<br />

emancipação da rigidez da tradição e das condições da domi<strong>na</strong>ção<br />

hierárquica. Tem como aspecto fundamental o de ser uma política<br />

do estilo de vida. As decisões políticas desse modelo derivam da<br />

liberdade de escolha e do poder gerador (poder como capacidade<br />

transformadora). Representa a criação de formas moralmente justificáveis<br />

de vida que promovam a autorrealização no contexto da<br />

interdependência <strong>global</strong>, além de desenvolver uma ética relativa à<br />

pergunta: Como devemos viver?<br />

Em outra ordem política em que o controle incide sobre o<br />

corpo e que não oferece tanta liberdade de escolha e de poder gerador.<br />

(GIDDENS: 2001)<br />

29


Para Ulrik Beck, assistimos ao aparecimento de um campo<br />

denomi<strong>na</strong>do de “subpolítica”, ao qual se refere as atividades de grupos<br />

e organismos que operam fora dos mecanismos formais da política<br />

democrática.<br />

É um caminho inverso, onde redes de sociabilidades e políticas<br />

forjadas dentro dos guetos – mas conectadas aos fluxos<br />

globais –, instituem práticas diferenciadas de ação que ultrapassam<br />

os mecanismos políticos tradicio<strong>na</strong>is (partidos políticos ou<br />

discursos relativos à diferença de classes sociais), operando com<br />

questões e realidades específicas e com linguagem de outra ordem<br />

que aqui é entendida como uma forma de simbólica de transgressão<br />

e poder. (BENTES: 2002)<br />

Para Laclau e Mouflle (1992), houve um deslocamento dos<br />

centros e um desses centros deslocados, foi o da classe social.<br />

Não a classe como uma simples função da organização econômica<br />

e dos processos de produção, mas a classe como um<br />

determi<strong>na</strong>nte de todas as outras relações sociais: a classe como<br />

categoria mestra tal como descrita <strong>na</strong>s análises marxistas da estrutura<br />

social. Estes autores consideram que não existe mais uma<br />

única força totalizante que molde todas as relações sociais e sim<br />

uma multiplicidade de centros. Eles reconhecem uma positividade<br />

nesse deslocamento, pois indica que há muitos e diferentes lugares<br />

a partir dos quais novas e diferentes identidades podem emergir<br />

e a partir das quais novos sujeitos podem se expressar. Um processo<br />

que corresponde ao que Deleuze denomi<strong>na</strong> de rizomático<br />

por estarem constantemente sujeitos a oscilação nos movimentos<br />

de subjetivação e de identificação.<br />

As vantagens desses deslocamentos da classe social como<br />

categoria de análise podem ser ilustradas pela relativa diminuição<br />

da importância das afiliações baseadas <strong>na</strong> classe, tais como<br />

os sindicatos operários e o surgimento de outras are<strong>na</strong>s de conflito<br />

social, como as baseadas no gênero, <strong>na</strong> raça, etnia e sexualidade.<br />

Esta noção que pode ser articulada com a noção de “campos<br />

sociais” desenvolvida por Bourdieu, haja vista participarmos<br />

30


desses campos sociais, exercendo graus variados de autonomia e<br />

escolhas, mas cada um deles tem um contexto material e <strong>na</strong> verdade,<br />

um espaço ou lugar, bem como um conjunto de recursos<br />

simbólicos. Sendo assim, diferentes contextos sociais fazem com<br />

que nos envolvamos em diferentes significados sociais. Em certo<br />

sentido, somos posicio<strong>na</strong>dos de acordo com os campos sociais<br />

em que estamos atuando.<br />

A grande identidade <strong>global</strong> ou os grandes questio<strong>na</strong>mentos<br />

totalizantes da ciência, passam agora a não serem visto mais<br />

como primordiais para se entender a sociedade, havendo assim<br />

um processo de “fragmentação” tanto da sociedade, quanto das<br />

metodologias e ciências utilizadas, havendo assim uma redefinição<br />

de projetos e objetos.<br />

Conceitos baseados <strong>na</strong> economia e <strong>na</strong> política que tentavam<br />

abarcar todas as espécies de manifestações huma<strong>na</strong>s são<br />

agora redefinidos por novos parâmetros ou paradigmas que vão<br />

privilegiar outros aspectos e novas vertentes do pensamento humano.<br />

Aquele homem total, ou totalizado, composto de uma substância<br />

comum em qualquer parte ou situação, cede agora o lugar<br />

a um processo de segmentação em que ao invés da unidade, temos<br />

agora como fio condutor à multiplicidade.<br />

A multiplicidade está ligada não mais somente a uma diversidade<br />

de interpretações acerca da realidade huma<strong>na</strong>, nem de<br />

suas diferenciações mais marcantes tais como: político, linguística,<br />

étnica e econômica, mas sim redefinida a partir da noção de<br />

“multiplicidade do eu” e de “ambiência comunitária”, ou seja,<br />

haveria o que Maffesoli (2000) denominou de “paradigma estético”<br />

no sentido da diferença estabelecida entre lógica individualista<br />

(apoiada em uma identidade separada e fechada sobre si<br />

mesma), e pessoa que só existiria, ao contrário da lógica individualista<br />

<strong>na</strong> relação deste com o outro. Tal diferenciação vai trabalhar<br />

e superar a dicotomia clássica entre sujeito e objeto, <strong>na</strong><br />

medida em que haveria uma mudança de ênfase apontando agora<br />

mais sobre o que une do que sobre o que separa.<br />

31


Todo contexto ou campo cultural tem seus controles e suas<br />

expectativas, bem como seu “imaginário”, suas promessas e realizações,<br />

o que ilustra a relação entre o social e o simbólico. É a<br />

marca de uma forma política que se desdobra <strong>na</strong> experiência de<br />

jovens negros e/ou favelados, seja <strong>na</strong> delimitação do espaço, seja<br />

<strong>na</strong>s suas inserções <strong>na</strong>s tramas oficiais e/ou acontecimentos urbanos,<br />

onde são criadas e recriadas formas de sociabilidade que<br />

ultrapassam o campo da experiência normativa, criando um campo<br />

visual e comunicativo através de escolhas que podem incluir o<br />

consumo de grifes (principalmente marcas esportivas) e a ampliação<br />

e resignificação do espaço familiar pela inclusão dos “manos”<br />

como pares constitutivos, atribuindo assim importância às<br />

experiências peculiares dos moradores de espaços segregados,<br />

incluindo a possibilidade de dar forma artística a esta experiência,<br />

como se operasse uma estetização da vida cotidia<strong>na</strong>.<br />

Por outro lado, a estetização da vida cotidia<strong>na</strong> consta de um<br />

projeto que tem como fundamento a superação da fronteira entre<br />

a vida e a arte, indicando uma procura constante por novas sensações,<br />

modas, experiências, estilos e as formações culturais juvenis<br />

são indicadores dessa conduta. São skatistas, funkeiros, surfistas,<br />

rappers, punks, darks, pagodeiros, carecas, etc., que criam uma profusão<br />

de estilos culmi<strong>na</strong>ndo em uma espetacularização do ambiente<br />

urbano, o que implica um uso irrestrito dos espaços, marcas<br />

inscritas <strong>na</strong>s fachadas de prédios, metrôs, painéis, etc. Uma apropriação<br />

que envolve luta e estratégias distintas de poder.<br />

O capítulo II intitulado Moda e Revolta procura dar conta<br />

de uma abordagem sobre o campo extremo do estilo que acaba<br />

sendo ‘fetichizado’ e se configurando de forma ambígua em um<br />

outro sistema, o sistema da moda, um modelo de estruturação<br />

capitalista que é negado, mas que possibilita o reconhecimento<br />

simbólico dessa configuração no campo do objeto-signo como<br />

também do campo da economia política. Nesse percurso,<br />

Lipovetsky disponibiliza uma interessante interpretação da moda<br />

no espaço das sociedades moder<strong>na</strong>s, em uma perspectiva que<br />

32


ecompõe alguns autores da sociologia clássica atualizando um<br />

debate atualizado da dimensão estrutural e estruturante da moda.<br />

O corte se dá no sentido de mostrar historicamente os valores<br />

e as significações presentes <strong>na</strong> leitura do fenômeno. No sentido<br />

aqui apontado, a moda deixa de ser percebida como um simples<br />

acessório ou enfeite estético, mas um elemento estruturante<br />

<strong>na</strong> sociedade moder<strong>na</strong>, o que invalida ou põe em xeque as análises<br />

que postulam a moda ape<strong>na</strong>s como um resultado negativo<br />

em relação à cultura e ao pensamento, ou simplesmente um aspecto<br />

de distinção hierárquica.<br />

O capítulo III discutirá a outra extremidade do Hip Hop<br />

que indica um movimento de ultrapassagem configurada no que<br />

chamaremos de estética da transgressão. Neste capítulo o Hip<br />

Hop é pensado como um indicador de uma nova conduta 6 uma<br />

ultrapassagem de limites espaciais e de significados culturais,<br />

embora como discutido no capítulo anterior ele legítime uma conduta<br />

no campo de uma estética juvenil <strong>global</strong>izada, que adquire<br />

visibilidade empírica <strong>na</strong> profusão de estilos que atuam no espetáculo<br />

urbano como indicadores de uma dinâmica cultural peculiar,<br />

instituída pelos conflitos e <strong>tensões</strong> próprias a experiência<br />

urba<strong>na</strong>. O Hip Hop é considerado parte de um modelo<br />

transgressor, em que a própria desig<strong>na</strong>ção de artistas às vezes é<br />

vista com indiferença.<br />

No capítulo IV apresentamos um breve debate sobre o modelo<br />

societário do Hip Hop (as tribos) a ideia de tribos ou tribalização<br />

passa por uma perspectiva de análise que ultrapassa o campo de<br />

estudo sobre os jovens se constituindo ainda como uma reflexão<br />

mais ampla a respeito dos efeitos e dos processos de <strong>global</strong>ização.<br />

É em relação a um contexto de troca sócio-cultural, marcado pela<br />

6 Um antropólogo diria que esse grupo disperso, afi<strong>na</strong>do entre si e desafi<strong>na</strong>do em<br />

relação ao resto, soube construir seu ethos e produzir suas forças simbólicas alter<strong>na</strong>tivas,<br />

como um modo de assegurar munda<strong>na</strong>mente sua alteridade e efetivar-se<br />

como uma diferença no meio do burburinho cosmopolita ávido pelo homogêneo.<br />

(MEDEIROS 37/38, 2004)<br />

33


tensão entre a massificação e o desenvolvimento de pequenos<br />

grupos que se pode compreender o processo de formação das<br />

tribos urba<strong>na</strong>s como novas formas de sociabilidade juvenil.<br />

De acordo com Maffesoli, há uma alteração significativa<br />

no tecido social relacio<strong>na</strong>da estritamente a produção e substituição<br />

de princípios e mecanismos tradicio<strong>na</strong>is que antes eram marcas<br />

definidas de relações entre sujeitos. Este processo significa<br />

uma passagem de determi<strong>na</strong>dos tipos de relações para outros.<br />

Da passagem da organização político-econômica, passamos<br />

à importância das massas; dos grupos contratuais passamos<br />

às tribos urba<strong>na</strong>s. São a estas transformações <strong>na</strong>s relações sociais<br />

que Maffesoli chama de neotribalismo, que induz o sujeito a sair<br />

de seu enclausuramento no que diz respeito a sua individualidade<br />

e dilua sua experiência cotidia<strong>na</strong> no pertencimento a grupos<br />

ou tribos, cujas características seriam a sua constituição em comunidades<br />

emocio<strong>na</strong>is intensas, às vezes efêmeras e ligadas diretamente<br />

à moda.<br />

Se o pensamento clássico queria e pretendeu montar uma<br />

“história huma<strong>na</strong>” procurando buscar os elementos que os tor<strong>na</strong>va<br />

comuns de forma totalizante, agora cabe operar uma inversão<br />

metodológica nessa premissa, buscando trabalhar os elementos<br />

que tor<strong>na</strong>m os homens comuns entre si, apesar das diferenças.<br />

A retomada de valores grupais, baseados no rearranjo de<br />

conceitos como: comunidade, proxemia e ambiência, nos parecem<br />

como uma “volta modificada” a um passado-presente comum que<br />

nunca foram totalmente abando<strong>na</strong>dos, uma vez que mesmo através<br />

das discussões entre conceitos como comunidade e sociedade<br />

que procuravam distinguir-se através de elementos binários: proximidade/distanciamento;<br />

relações face a face/relações impessoais;<br />

racio<strong>na</strong>lidade/tradição, não há um abandono total da comunidade<br />

mesmo nos grandes centros urbanos, uma vez que elementos<br />

como procissão, quermesse, terreiros de umbanda, conversas <strong>na</strong><br />

porta de casa, ainda permanecem nos dias de hoje.<br />

São grupos constituídos por indivíduos que se reúnem regularmente<br />

e adotam para si um visual específico, um estilo, uma<br />

34


forma estética. Compartilham uma atividade, uma atitude que<br />

ocasio<strong>na</strong>m sensações fortes, conferindo sentido a uma existência<br />

portadora de contatos e contágios emocio<strong>na</strong>is.<br />

Na sua dimensão política as posses representam uma forma<br />

de organização característica do movimento Hip Hop, fundadas<br />

pela conjugação da arte com a realidade, a experiência urba<strong>na</strong><br />

configurada em uma linguagem repleta de símbolos particulares<br />

e globais. Pela linguagem da arte, a realidade é reelaborada<br />

como possibilidade de indicar caminhos pertinentes para o reconhecimento<br />

de valores de cidadania. É a partir delas que se estabelece<br />

uma rede de relações a fim de instituir ações <strong>na</strong> rua e nos<br />

espaços diversos de sociabilidade. Elas aparecem de maneira inventiva<br />

e como resposta política ao fracasso das ações educativas<br />

gover<strong>na</strong>mentais.<br />

Que este impulso da escrita possa sugerir problemas e que<br />

eles sigam outra rota, outro tempo, outro abandono. Pois se trata<br />

de um acontecimento, um evento que logo reclama seu abandono.<br />

Sendo assim, aceno com a juventude de Rimbaud.<br />

35


BRANCA


Capítulo 1<br />

Música, política e cotidiano<br />

A intenção é reconstituir (embora com lacu<strong>na</strong>s), o momento<br />

em que os estilos musicais passaram a incluir em suas composições,<br />

representações políticas do cotidiano, fato que possibilita<br />

uma interpretação dos aspectos e tendências culturais de juventude,<br />

em especial as ligadas ao Hip Hop, especialmente da sua forma<br />

artística articulada com a experiência da cidade (aqui denomi<strong>na</strong>da<br />

de experiência urba<strong>na</strong>), que será desenvolvida mais a frente.<br />

É importante dizer que não se tem a pretensão de fazer<br />

uma leitura minuciosa desse quadro, embora reconheçamos a sua<br />

necessidade. O interesse aqui é sobretudo localizar e compreender<br />

os arranjos da cultura musical juvenil e da experiência artística<br />

que incluem o cotidiano e a revolta <strong>na</strong>s expressões musicais,<br />

bem como das construções sociais a respeito da cidade operando<br />

uma estetização do cotidiano.<br />

O foco central é a experiência urba<strong>na</strong> contida <strong>na</strong>s expressões<br />

culturais e artísticas do Hip Hop, concebida aqui como um<br />

complexo campo de trocas realizadas em diferentes contextos<br />

– seja no campo dos valores culturais ou da posição social, organizadas<br />

em torno de uma <strong>na</strong>rrativa, um elo fundamental para<br />

a compreensão dos limites e ultrapassagens, bem como das<br />

<strong>ambiguidades</strong> presentes <strong>na</strong>s trocas sociais do Hip Hop confirmando<br />

assim o fundo político presente <strong>na</strong>s tramas diárias da<br />

vida social. É no cotidiano que os múltiplos aspectos da vida<br />

social se revelam. O cotidiano é entendido como rota de conhecimento,<br />

ou:<br />

Aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),<br />

nos pressio<strong>na</strong> dia após dia, nos oprime, pois existe uma<br />

opressão do presente. Todo dia pela manhã, aquilo que<br />

assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de<br />

viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga,<br />

com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende<br />

intimamente, a partir do interior. (CERTEAU: 1997; 31)<br />

37


O cotidiano vai assumir então um papel de substrato que<br />

servirá de matriz à redefinição de relações sociais, sobretudo <strong>na</strong><br />

formação de uma “comunidade emocio<strong>na</strong>l” ou empática, pois é<br />

através de situações ordinárias vivenciadas no dia a dia que se vão<br />

definir e redefinir códigos de conduta e comportamento, relação<br />

de proximidade e de distanciamento, bem como de pertencimento<br />

ou não a um grupo, imprimindo marcas de uma existência minúscula,<br />

mas real, baseada em acordos e procedimentos tácitos que<br />

tor<strong>na</strong>m possíveis relações em diversos níveis, seja no campo da<br />

(micro)política, no campo da ética ou da estética, uma exigência<br />

constante da temática Hip Hop, quase sempre no sentido de possibilitar<br />

uma existência reconhecida <strong>na</strong> sua condição e diferença.<br />

Pode ser encontrado no que se convencionou chamar de<br />

“quinto elemento” (a consciência), que implica uma inserção no<br />

quadro dos benefícios simbólicos e articulados em torno de uma<br />

ética ou prestígio social, situação em que o indivíduo passa a ser<br />

reconhecido como participante de um modelo conjugado (éticoestético),<br />

uma forma de solidariedade. É um “considerado”, um<br />

“mano” para seus pares, aquele que não viola os pactos ou as<br />

regras instituídas pelo grupo, pela tribo, e que por isso adquire<br />

respeito ou proteção em relação às forças opositoras.<br />

Institui-se assim um processo de sociabilidade fundado <strong>na</strong>quilo<br />

que os tor<strong>na</strong> comum ao grupo, no seu aspecto temporal curto,<br />

<strong>na</strong> sua composição variável e cambiante baseada em um sentimento<br />

de pertencimento ao local, ou seja, a um território delimitado<br />

não simplesmente por suas bases físicas 7 , mas também em bases<br />

simbólicas e linguísticas (gestos e códigos da fala), sem uma<br />

organização hierárquica estruturada de forma vertical, e tendo por<br />

base o cotidiano vivido. Essa diferenciação feita por Maffesoli<br />

confirma a necessidade de “mudarmos as nossas maneiras de<br />

avaliar os agrupamentos sociais”, uma vez que não teríamos mais<br />

7 Ver As Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino.<br />

38


uma categorização fixa em termos de gênero (homem/mulher),<br />

classe social (burguesia/proletariado) e modos de vida opostos<br />

tais como cultura versus contracultura.<br />

Para se compreender o cotidiano em sua dinâmica política é<br />

importante que se faça esta recorrência procurando pistas significativas<br />

das diversas sociabilidades urba<strong>na</strong>s. Tal fato confirma a<br />

<strong>na</strong>rrativa como um elemento metodológico chave para se processar<br />

a interpretação pretendida, principalmente o que diz respeito à<br />

experiência local, feita a partir dos próprios sujeitos envolvidos no<br />

processo como também de sua constante (re)elaboração dos códigos<br />

e referenciais globais. Esta <strong>na</strong>rrativa está presente nos elementos<br />

artísticos do Hip Hop, em especial no rap e no grafite, composições<br />

que instituem as formas empíricas dos conflitos e <strong>ambiguidades</strong><br />

presentes no movimento e que será desenvolvida <strong>na</strong> parte intitulada<br />

de A Invenção de Si Mesmo, uma tradução feita <strong>na</strong> forma de acontecimento,<br />

caracterizado pelo momento em que a música passou a<br />

inserir em suas composições e temáticas referentes ao cotidiano<br />

ou ao mundo vivido, bem como da denúncia.<br />

Para Medeiros (2004), a ce<strong>na</strong> musical da década de 1960<br />

indica o momento em que se produz tal passagem, sobretudo,<br />

pela sua grande vitalidade tanto <strong>na</strong> política como <strong>na</strong> cultura, articulada<br />

com uma polêmica entre correntes <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>listas e ritmos<br />

estrangeiros. Neste contexto talvez valha reinstalar-se num<br />

tempo em que a música popular brasileira tinha a força de um<br />

recado. Este conjunto de lutas, da qual a canção que agluti<strong>na</strong> os<br />

motes da contracultura participa, obteve impulso criador suficiente<br />

para motivar o homem urbano ocidental a reinventar novas<br />

viagens, reavaliar formas de luta e inventar um jeito novo e mais<br />

contemporâneo de tratar as questões urgentes, incorporando o<br />

desliza-mento do solo contemporâneo – que assim deixa de<br />

estarrecer e petrificar-se numa tradição. (MEDEIROS, 44, 2004)<br />

Posicio<strong>na</strong>ndo-nos a partir de um outro interesse e em outro<br />

solo, refazemos a pergunta de Medeiros em <strong>Mutações</strong> do Sensível da<br />

seguinte forma: – De que modo (re)visitar essas produções?<br />

39


Já estamos armaze<strong>na</strong>dos de um material informativo e<br />

especulativo que pode indicar sobre certa proveniência dessas<br />

ema<strong>na</strong>ções. Porém qual o lugar que eles habitam no conjunto das<br />

relações sociais? Se não é dado ao conhecimento penetrar no<br />

instante mesmo que origi<strong>na</strong> a criação, resta-nos procurar pelo<br />

entrelaçamento da atividade poético-musical no reino abrangente<br />

da cultura industrializada. (MEDEIROS, 2004, 47).<br />

O referencial histórico-sociológico e metodológico, dessa<br />

digressão encontra fundamentos <strong>na</strong> interpretação de Marcelo<br />

Ridenti sobre a política, a arte (cinema, teatro e música), o pensamento<br />

social, a literatura e a revolta. Todos esses recortes presentes<br />

<strong>na</strong>s ence<strong>na</strong>ções do cotidiano nos períodos correspondentes<br />

às décadas de 1960, 1670 e 1980, respectivamente.<br />

Embora se deva enfatizar que a nossa intenção é simplesmente<br />

auxiliar uma interpretação da <strong>na</strong>rrativa atualizada no Hip<br />

Hop, através da experiência cotidia<strong>na</strong> <strong>na</strong> cidade. Ou seja, compreender<br />

a constituição de uma experiência urba<strong>na</strong> manifesta <strong>na</strong> arte.<br />

Com esta perspectiva o filme de Nelson Pereira Rodrigues<br />

Rio 40 Graus, produzido entre 1955/56, representa uma marca<br />

emblemática para a constituição de uma <strong>na</strong>rrativa da experiência<br />

urba<strong>na</strong>. É o momento em que a <strong>na</strong>rrativa cinematográfica expõe<br />

uma leitura do cotidiano da favela, seus dilemas e sua arte, mesmo<br />

que sob uma perspectiva exterior ou “de fora”, e portanto, uma<br />

realidade (re)estratificada, (re)composta, (re)traduzida de acordo<br />

com um determi<strong>na</strong>do posicio<strong>na</strong>mento. Podemos apontar outras<br />

marcas estetizadas para se pensar as imagens e os dilemas contemporâneos<br />

das favelas brasileiras, embora algumas delas estejam<br />

sujeitas as mais diversas criticas.<br />

Iva<strong>na</strong> Bentes (2003), critica algumas versões contemporâneas,<br />

tais como Cidade de Deus, classificando-o como uma simplificação,<br />

uma cosmética da fome, por não incluir os desdobramentos<br />

políticos superpostos a este fenômeno.<br />

40


Já as primeiras imagens feitas do cotidiano das favelas imprimem<br />

o sombreamento de uma marca política do governo autoritário<br />

e os si<strong>na</strong>is da modernização conservadora. O samba e<br />

outras formas artísticas também podem representar um referencial<br />

principalmente <strong>na</strong>s obras de artistas como João do Vale, ou o<br />

teatro de Are<strong>na</strong> e dos oprimidos de Augusto Boal.<br />

Ridenti mostra pistas importantes para compreendermos a<br />

ascensão da realidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e popular, bem como o florescimento<br />

cultural no início dos anos 60, no sentido de verificarmos<br />

as inúmeras publicações e atividades quase sempre ligadas a tendências<br />

marxistas. Um traço dessa ligação é apresentado no teor<br />

das publicações da <strong>Revista</strong> Brasiliense, editada entre meados dos<br />

anos 50, até o ano de 1964, como também da <strong>Revista</strong> de Ciências<br />

Sociais ligada ao PCB, entre outras tendências editoriais em sua<br />

maior parte relacio<strong>na</strong>das (principalmente a <strong>Revista</strong> Brasiliense), com<br />

a construção de uma estética da realidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, tendência que<br />

pode ser si<strong>na</strong>lizada também pelo artigo de Gianfrancesco Guarnieri<br />

(1959): O Teatro como Expressão da Realidade Nacio<strong>na</strong>l, um teatro de<br />

textura política, embora com ressonâncias de posições comunistas<br />

autoritárias dos anos de 1950. O viés de autoritarismo se manifestava,<br />

sobretudo, no imperativo político de transmissão de mensagens<br />

conscientes sobre as lutas e os dilemas das camadas populares,<br />

idealizada <strong>na</strong> categoria “povo brasileiro”, uma categoria abstrata<br />

construída sobre uma tipologia frágil e oscilante.<br />

Ridenti, por sua vez, indica a ascensão dessa realidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />

pontuada <strong>na</strong>s apresentações do teatro de Are<strong>na</strong> e <strong>na</strong>s atividades<br />

culturais do CPC, estendendo-se ainda para o cinema<br />

através do que se convencionou chamar de Cinema Novo, como<br />

também da tentativa de politização das massas <strong>na</strong> sua grande<br />

maioria com a marca característica de Walter Benjamin e sua teoria<br />

da História, subsidiada <strong>na</strong> metáfora do anjo e da melancolia.<br />

O teor dos artigos e das peças, insinuava a marca de um<br />

romantismo revolucionário pautado <strong>na</strong> idealização da sabedoria<br />

41


popular pré-capitalista para ilumi<strong>na</strong>r o futuro socialista como se<br />

a sabedoria do homem simples do campo se constituísse em objeto<br />

de uma pedagogia 8 revolucio<strong>na</strong>ria que transparece, sobretudo, no<br />

artigo Mutirão em Novo Sol no I Congresso Nacio<strong>na</strong>l de Camponeses<br />

de José Oliveira Santos de 1962 que comentava a ence<strong>na</strong>ção da<br />

peça Mutirão em Novo Sol do CPC paulista <strong>na</strong> I Conferência de Lavradores<br />

do Estado de São Paulo realizado no dia 11 de novembro de<br />

1961, como também no primeiro congresso de Camponeses em Belo<br />

Horizonte, no dia 14 de novembro. O que estava em jogo <strong>na</strong> peça<br />

era o levante dos camponeses em Santa Fé do Sul, liderado por Jofre<br />

Correa Neto e que segundo seus autores parecia possuir a medida<br />

exata do grau de miséria e desamparo do homem do campo. Esta<br />

idealização muitas vezes caricaturada, principalmente as contida <strong>na</strong>s<br />

críticas teatrais da <strong>Revista</strong> Brasiliense. A ideia que subsidiavam estas<br />

ações era a de uma comunidade inspirada no passado que deveria<br />

moldar um futuro alter<strong>na</strong>tivo à modernidade capitalista, representando<br />

uma característica essencial do romantismo revolucionário,<br />

embora se deva dizer que este romantismo adquiriu to<strong>na</strong>lidades diferentes<br />

reveladas pelo Cinema Novo.<br />

O Cinema Novo era integrado por um grupo de artistas e<br />

poetas, escritores intelectuais como Glauber Rocha, Nelson Pereira<br />

dos Santos, Cacá Diegues, Leon Hirsmam, Joaquim Pedro<br />

de Andrade, Ruy Guerra, Zelito Via<strong>na</strong>, Valter Lima Jr., Gustavo<br />

Dahl, Luiz Carlos Barreto, David Neves, Eduardo Coutinho,<br />

Ar<strong>na</strong>ldo Jabor, Paulo César Saraceni, entre outros. Todos eles<br />

preocupados com os conflitos políticos superpostos no cotidiano<br />

da cidade e do campo e além disso procuravam traços de uma<br />

8 No sentido dado pelo romantismo de Schiller em sua “Educação Estética do<br />

Homem”, como se a arte tivesse um sentido estritamente moral. Sentido que será<br />

discutido no desdobramento de uma ideia aproximada, ou seja, a ideia dos adeptos<br />

ao movimento Hip Hop de que o este movimento deverá produzir um outro<br />

arranjo pedagógico, estruturado em uma disposição desig<strong>na</strong>da como quinto elemento,<br />

uma relação entre a ética e a estética que pode ainda ser pensada no debate<br />

sobre a estetização da política.<br />

42


identidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l tanto das expressões artísticas e intelectuais<br />

quanto do próprio homem brasileiro.<br />

Esta linha reflexiva sustenta a tese de que <strong>na</strong> contemporaneidade<br />

o Hip Hop empreende também uma busca afirmativa.<br />

Com questões diferenciadas, específicas ao grupo, à tribo, e principalmente<br />

à vida urba<strong>na</strong>, o cotidiano <strong>na</strong> cidade. É outro momento<br />

de inserção do cotidiano da periferia e do pobre. Ele habita<br />

uma temporalidade, que possibilita se pensar os arranjos da<br />

cultura eletrônica que também experimentou e experimentam os<br />

diversos percalços e impedimentos sociais e culturais, se não os<br />

da repressão política dos militares, mas de um processo constante<br />

de interpretações arbitrarias e de uso comercial indiscrimi<strong>na</strong>do<br />

de suas expressões musicais.<br />

Retor<strong>na</strong>ndo ao filme Cinco Vezes <strong>Favela</strong>, patroci<strong>na</strong>do pelo<br />

CPC e UNE, reconhecemos que este pode ser considerado marca<br />

histórica da publicização dessas imagens, quase sempre ligadas<br />

à perspectiva de defesa de uma arte <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l popular, como<br />

instrumento de uma conscientização das massas. Ao que tudo<br />

indica esse meio (o cinema), parecia ser a forma mais acessível<br />

de compreensão das massas, através da ence<strong>na</strong>ção de sua própria<br />

realidade, do cotidiano vivido <strong>na</strong>s favelas. Leitura claramente<br />

ingênua aos olhos de Adorno e Horkheimer, embora se deva<br />

dizer que este pessimismo frankfurtiano parecia não ter alcançado<br />

o contexto da crítica ao autoritarismo brasileiro e da perseguição<br />

dos negros, pobres, desempregados e toda sorte de moradores<br />

de favelas, morros ou cortiços. Para Adorno, todo esforço da<br />

arte colide com o empenho destrutivo da indústria cultural – ávida<br />

pela sujeição do ouvinte ao produto padronizado. Nesse sentido<br />

o homem moderno desaprendeu a ouvir.<br />

De resto porque ele, amante da musica clássica, tinha como<br />

material de reflexão a música popular europeia – incomparável<br />

em sua rarefeita qualidade a pungência inventiva e encantada<br />

das canções daqui do lado de baixo do Equador. (MEDEIROS,<br />

50, 2004)<br />

43


Vale dizer que após 1964 se produziram algumas modificações<br />

<strong>na</strong> concepção do Cinema Novo, relacio<strong>na</strong>das sobretudo,<br />

ao teor do romantismo que pouco a pouco abrandava os impulsos<br />

revolucionários para se resguardar da violência do Estado<br />

Militar. Esta mutação estabelecia que a crítica ao Estado Militar<br />

não fora produzida somente por intelectuais ou pelas camadas<br />

de classe média urba<strong>na</strong>s, mas também encontrou as mais diversas<br />

formas de resistência nos segmentos populares, <strong>na</strong>s suas expressões<br />

artísticas, lutas, conflitos e <strong>na</strong>rrativas sobre a resistência<br />

dos negros e dos pobres, o que fragiliza a tese de base tradicio<strong>na</strong>l<br />

daqueles que atribuíam a esses segmentos a necessidade de mediações<br />

de um intelectual qualificado ou de um partido político.<br />

Este acontecimento indica pistas para problematizarmos a<br />

ideia de uma conjugação da estética e da política, a partir das<br />

<strong>na</strong>rrativas da experiência urba<strong>na</strong>, fundamentada <strong>na</strong> estetização<br />

do cotidiano, ideia que encontra indicações e fundamentos em<br />

Mike Featherstone, <strong>na</strong>s suas teses sobre cultura e <strong>global</strong>ização.<br />

De acordo com Ridenti, a ligação com a literatura social de<br />

resgate, e a afirmação de um autêntico homem brasileiro idealizado<br />

romanticamente da revolução identificada com o sertanejo<br />

ou o migrante nordestino ultrapassa as intenções do Cinema Novo<br />

e outros que não seguem essa linha, tal como Roberto Santos e A<br />

hora e a vez de Augusto Matraga.<br />

O certo é que essa disposição estendia-se a vários estados<br />

brasileiros, e sua disposição era a de encontrar as raízes populares<br />

do homem brasileiro representado em inúmeros curta<br />

metragens tais como os de Sérgio Muniz.<br />

Outro exemplo é o documentário Viramundo baseado em<br />

trabalhos acadêmicos de Octávio Ianni e Juarez Brandão Lopes,<br />

(cuja temática referia-se ao destino do migrante de origem nordesti<strong>na</strong><br />

em São Paulo) em que se podiam ouvir diversas situações os<br />

depoimentos de operários e pessoas simples que povoava o cotidiano<br />

das cidades. Jean-Claude Ber<strong>na</strong>det em Cineastas e Imagens<br />

44


do Povo tenta revelar como as lentes desses documentários apresentavam<br />

essa realidade cotidia<strong>na</strong>. 9<br />

Falar do povo, dar palavra ao próprio povo, as variantes e<br />

debates eram muitos, mas o centro continuava sendo a busca<br />

das raízes do autêntico homem do povo, cuja identidade<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l seria completada verdadeiramente no futuro no<br />

processo da revolução brasileira.(RIDENTI; 2002; 102).<br />

Toda essa preocupação da busca do <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e do popular<br />

esteve presente <strong>na</strong>s diversas manifestações artísticas e políticas<br />

desse período 10 .<br />

Na ce<strong>na</strong> teatral também se experimentava largamente a mesma<br />

abordagem, o que possibilitava um aparecimento cada vez maior<br />

do pobre favelado, bem como de sua realidade cotidia<strong>na</strong> que seria<br />

escondida posteriormente no período mais pesado da ditadura<br />

militar e colocada no rol de imagens que “ninguém quer ver”.<br />

Esse aparecimento teve mais repercussão devido à ação<br />

do CPC do projeto UNE, volante que percorreu os principais<br />

centros universitários do país no início dos anos 1960 e cuja proposta<br />

era levar adiante as propostas de intervenção dos estudantes<br />

<strong>na</strong> política universitária e <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> tentativa de consolidar<br />

reformas de base no processo da revolução brasileira que trazia<br />

intenções políticas de romper com o subdesenvolvimento, bem<br />

como da afirmação de uma identidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

As diversas críticas eram dirigidas ao CPC, inclusive as que<br />

postulavam que a qualidade literária tinha um papel secundário.<br />

9 Este crítico entende que <strong>na</strong> década de 1960 os cineastas requeriam para si a<br />

autoridade de porta-vozes do povo, expressão de uma consciência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

Viramundo pode ser entendido como uma tentativa de incluir no plano imagético<br />

uma leitura sociológica sobre o povo brasileiro e de sua formação social.<br />

10 Uma demonstração cabal desse interesse pode ser encontrada nos trabalhos<br />

cinematográficos de Nelson Pereira dos Santos, pela inclusão <strong>na</strong>s telas da vida<br />

cotidia<strong>na</strong> do homem simples da favela, especialmente em Rio 40 Graus, realizado<br />

entre 1954-55 bem como de Rio Zo<strong>na</strong> Norte.<br />

45


Vale dizer que mesmo entre a linha de fogo cruzado de várias<br />

críticas deve-se ter em conta que todo o seu direcio<strong>na</strong>mento é<br />

indissociável da conjuntura político-<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l do pré-64 o que nos<br />

leva a decidir que as críticas também se faziam no interior do CPC.<br />

Os poetas engajados quase sempre pertenciam à classe media<br />

urba<strong>na</strong> e em sua maioria tematizavam os deserdados da terra<br />

ou migrantes nordestinos que iam para as cidades grandes inserindo<br />

ainda a crítica às condições adversas no campo e <strong>na</strong>s favelas.<br />

Os poemas, quase sempre enfatizavam a recusa de uma<br />

ordem social autoritária no campo e <strong>na</strong> cidade, seja pelos latifundiários<br />

ou pelo capitalismo que se inseria mediante marcas e peculiaridades<br />

da sociedade brasileira.<br />

Pairava uma experiência traumática da perda da humanidade,<br />

uma nostalgia da comunidade mítica inexistente <strong>na</strong> realidade,<br />

como se pretendessem encontrar algo perdido.<br />

Esta procura se esgotaria com o evento de uma revolução<br />

brasileira e nesse sentido o florescimento cultural até 1964 estava<br />

ligado a uma serie de movimentos sociais amplos, seja relacio<strong>na</strong>dos<br />

à questão do trabalho urbano e rural, ou à questões especificas<br />

levantada por estudantes e intelectuais desarticulados<br />

durante o golpe, prosseguindo assim de forma relativa <strong>na</strong>s camadas<br />

médias da sociedade e setores ocupados reduzidamente a uma<br />

oposição crítica à ditadura, marca de que a palavra e as imagens<br />

devem ser consideradas armas vigorosas contra qualquer imposição<br />

ou sistema.<br />

Do outro lado houve tendências que escaparam da ligação<br />

com partidos políticos, principalmente o PCB.<br />

O Show Ofici<strong>na</strong> em meados de 65 que se constituiu como<br />

marco do teatro brasileiro e que participavam João do Vale, Nara<br />

Leão e Zé Kéti 11 e que intimamente já imprimiam as marcas de<br />

11 Nenhum deles com compromisso político acentuado em um marco partidário,<br />

embora o conteúdo de suas músicas e ence<strong>na</strong>ções fossem dirigidas contra a ditadura<br />

instituindo assim uma crítica sofisticada que atraía um enorme contingente de pessoas<br />

o que impossibilitava a repressão de adotar medidas eficazes para conter o contágio.<br />

46


uma estetização do cotidiano. Com o enorme sucesso esses artistas<br />

se esquivavam da violência do governo militar, embora se<br />

possa questio<strong>na</strong>r o seu alcance político em relação às massas.<br />

Diferentemente o Show Opinião proporcio<strong>na</strong>va uma grande identificação<br />

com a plateia.<br />

Neste momento já se fazia ver as marcas de uma estetização<br />

da existência ou por um outro ângulo, uma politização da estética.<br />

O Show Opinião proporcio<strong>na</strong>va uma grande identificação com<br />

a plateia, chegando a levar 29 artistas em 1965, todos eles influenciados<br />

pelo pop art americano e pelo novo realismo europeu<br />

indicando um corte com a arte tradicio<strong>na</strong>l além de instituir uma<br />

nova preocupação estética, no sentido de uma intenção mais<br />

apurada que no período do CPC, intenção que desaparece nos<br />

anos 1970 mediante a crise política e econômica 12 .<br />

Um enfraquecimento seguido pelo avanço da indústria cultural<br />

que já vinha se processando com nitidez desde o início do<br />

processo de modernização da sociedade brasileira. Aqui já se consegue<br />

visualizar uma nova postura por parte dos artistas principalmente<br />

àqueles relacio<strong>na</strong>dos à música popular que foram obrigados<br />

a compor uma nova marca, no sentido do desligamento das ideias<br />

que historicamente acompanharam a esquerda brasileira, ou seja,<br />

da resistência heróica ao processo de modernização presentes de<br />

forma aguda <strong>na</strong> industrialização e no mercado, fato que desencadeou<br />

várias dissidências, principalmente dentro do PCB.<br />

Uma dissidência importante está <strong>na</strong> constituição do PCBR<br />

no fi<strong>na</strong>l de 1961, cuja linha política articulava-se em torno de<br />

uma noção de povo intermediada pela influência do modelo de<br />

resistência cuba<strong>na</strong> e da guerrilha como meio tático de alcançar a<br />

revolução. Todas as tendências dissidentes possuíam, marcas de<br />

um ideal romântico e revolucionário, constituindo-se no primado<br />

da ação sobre a teoria, como ainda do reencontro com as raízes<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e populares para a constituição da sociedade do futuro.<br />

12 Conjugação do inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l popular.<br />

47


Esta tendência que estava claramente situada <strong>na</strong> linha política<br />

da ALN que rompia definitivamente com a concepção de partido<br />

do marxismo-leninismo elimi<strong>na</strong>ndo a organização e seu sistema<br />

complexo de direção que abrangia desde escalões intermediários<br />

a uma cúpula numerosa e uma pesada burocracia, embora a<br />

ênfase ainda estivesse dada no antiimperialismo pautando suas<br />

tentativas <strong>na</strong> busca de alter<strong>na</strong>tivas de modernização <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista<br />

inspirada em uma condição pré-capitalista do interior do país.<br />

Nas artes plásticas dos anos 1960, a ideia de povo e o diálogo<br />

com artistas populares foram pouco utilizados em relação às<br />

outras expressões artísticas, pois eram influenciados, sobretudo<br />

por artistas de gerações anteriores como Porti<strong>na</strong>ri e Di Cavalcanti.<br />

Dentre as tendências que enfatizavam o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-popular<br />

abria-se uma nova janela que se constitui no sentido estrito de<br />

uma ruptura com a cultura política vigente, <strong>na</strong>s décadas de 1960<br />

e 70 respectivamente.<br />

A janela mencio<strong>na</strong>da é o tropicalismo, fruto diferenciado,<br />

modernizador e crítico do romantismo racio<strong>na</strong>lista e realista <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />

popular dentro da cultura romântica da época centrada <strong>na</strong><br />

ruptura com o subdesenvolvimento <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e <strong>na</strong> constituição<br />

de uma identidade do povo brasileiro, com a qual artistas e intelectuais<br />

deveriam estar ligados. (RIDENTI; 2002)<br />

O Tropicalismo experimentava os vários desdobramentos 13<br />

da indústria cultural que subvertia toda e qualquer expressão<br />

cultural, bem como da transformação das promessas de sociali-<br />

13 Simultaneamente à sofisticação tecnológica que invade a musicalidade contemporânea<br />

e a experimentação maciça dos objetos culturais dessa época (drogas), a revolta<br />

social da juventude urba<strong>na</strong> insatisfeita prepara e possibilita, no entrelaçamento dessa<br />

tríplice conjunção, um rasgo destemperado, imprevisível, desconhecido, que não mais<br />

detém um esquema de significações moldadas e estabelecidas pela cultura herdada,<br />

mas expande-se em sucessivos deslocamentos a penetrar por regiões até então não<br />

formulada pelo pensamento e corporificar afirmativamente a possibilidade ilimitada<br />

de novas dimensões para a existência – em oposição à estabilidade dos registros<br />

perceptivos estratificados pela racio<strong>na</strong>lidade hegemônica. (MEDEIROS, 42, 2004)<br />

48


zação em massificação o que diluía e desfigurava as intenções e<br />

os aspectos culturais presentes nos movimentos em um esquema<br />

moderno que combi<strong>na</strong>va elementos diferenciados dos anos 20 e<br />

que ainda subsistiam nos anos 1950 e 60.<br />

Havia luta contra o poder remanescente das oligarquias<br />

rurais e suas manifestações políticas e culturais; um<br />

otimismo modernizador com o salto <strong>na</strong> industrialização a<br />

partir do governo Kubitscheck e também um impulso<br />

revolucionário alimentado os movimentos sociais e<br />

portador de ambigüidades <strong>na</strong>s propostas de revolução<br />

brasileira, democrático-burguesa (de libertação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l) ou<br />

socialista, com diversas gradações intermediárias.<br />

(RIDENTI; 2002; 270)<br />

Paralelamente encaminharam-se algumas expressões estéticas<br />

e políticas, tor<strong>na</strong>ndo possível a emergência de alguns elementos<br />

tropicalistas já presentes nos filmes de Glauber Rocha 14 ,<br />

principalmente Terra em Transe. Sobretudo, como tendências <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>listas<br />

combi<strong>na</strong>das com a ideia de um país caótico.<br />

Entre todas as críticas feitas ao tropicalismo o que é comum<br />

entre elas é a de sua articulação com elementos modernos e<br />

arcaicos, embora variem as interpretações sobre o significado estético<br />

e político dessa articulação. Para alguns autores como<br />

Ridenti, o tropicalismo abria suas portas e janelas para o mundo<br />

no sentido de arejar o ambiente impreg<strong>na</strong>do por um caldo de<br />

cultura chamado <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-popular.<br />

O tropicalismo no que teve de mais inventivo, avançou<br />

para além dessa dicotomia. Eles (os tropicalistas), procuravam<br />

experimentações 15 diversas que iam desde o contato com os<br />

concretistas sintonizados com as vanguardas da cultura mundial,<br />

14 Com todas as polêmicas a respeito da adesão ou não de Glauber Rocha ao<br />

Tropicalismo, deve-se dizer que ele valorizava o tropicalismo pelo que este tinha<br />

de inventivo, sua brasilidade e autoafirmação cultural do terceiro mundo.<br />

15 Consta a ideia da invenção de si mesmo que será disposta no capítulo com o<br />

mesmo nome.<br />

49


influenciando-se pelo cinema de Godard a grupos de rock como<br />

Beatles e pela contracultura.<br />

As ideias antropofágicas de Oswald de Andrade caíram<br />

como luva <strong>na</strong>s ideias tropicalistas, pois permitiam conjugar a amplitude<br />

cultural da época em escala inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. A identificação<br />

com este manifesto se deu no sentido de uma redescoberta<br />

do Brasil, trabalhando a intuição de um estilo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l novo. Pretendia-se,<br />

sobretudo, participar de uma linguagem mundial reafirmando<br />

nossa suposta origi<strong>na</strong>lidade.<br />

Sendo assim, o tropicalismo não intuía a imagem de um Brasil<br />

fracassado, mas em forças capazes de se regenerar e que estavam<br />

dispostas <strong>na</strong> música e em toda forma de expressão de horror à ditadura<br />

o que aproximava os tropicalistas de lideranças como Marighela<br />

pelo seu tom de desafio, seja à ditadura ou ao partido comunista<br />

com sua excessiva burocracia, explodindo assim a noção tradicio<strong>na</strong>l<br />

de partido e abrindo para tendências a<strong>na</strong>rquistas dissemi<strong>na</strong>das pelas<br />

ideias do maio de 68. Isto possibilita entendermos a tradução do<br />

movimento tropicalista no campo cultural. Esta tradução pode ser<br />

localizada em vários caminhos visto que esta relação não se constitui<br />

de forma mecânica, embora cultura e política estejam ligadas.<br />

As traduções políticas para o tropicalismo percorrem linhas<br />

diferentes 16 . Algumas traduções apontam para a dimensão<br />

política de esquerda do tropicalismo, inclusive de supostas colaborações<br />

com o dinheiro para certas organizações de esquerda.<br />

Outras como as de Roberto Schwartz sugerem o acontecimento<br />

de uma relação entre o moderno e o arcaico, uma expressão ambígua<br />

entre crítica e integração, leitura que poderia até mesmo<br />

significar politicamente a instauração da ditadura militar também<br />

articuladora do moderno e do arcaico. Embora se deva dizer<br />

que as eventuais ajudas fi<strong>na</strong>nceiras e simpatia mencio<strong>na</strong>da não<br />

16 Roberto Schwartz sugere a relação entre o moderno e o arcaico, uma expressão<br />

ambígua entre crítica e integração, leitura que poderia até mesmo significar politicamente<br />

a instauração da ditadura militar também articuladora do moderno e do<br />

arcaico.<br />

50


querem dizer que houvesse ple<strong>na</strong> identidade política entre os<br />

tropicalistas e os guerrilheiros. Indica sim que eram companheiros<br />

de viagem. (RIDENTI: 2002; 282)<br />

O próprio Caetano em seu livro Verdade Tropical admite<br />

que o estilo musical denomi<strong>na</strong>do tropicália tenha escapado de<br />

sua potencialidade criadora ou seu primeiro sentido passando a<br />

significar um movimento cultural. Sobretudo criava-se um fluxo<br />

entre uma comunidade de ouvintes, armados de seus próprios<br />

códigos, seus recados e anseios. Tratava-se de articular um campo<br />

de pensamento propício a um enlace problemático entre uma<br />

formação social dada e uma produção cultural ambígua e<br />

polissêmica. É o caso específico da música onde numa das pontas,<br />

encontra-se uma intencio<strong>na</strong>lidade criadora presente <strong>na</strong> biografia<br />

e no testemunho dos próprios criadores a outra ponta do<br />

enlace situa-se os símbolos que circulam no espaço da cultura de<br />

massas e correspondem a uma demanda efetiva, por parte de<br />

consumidores definidos. (MEDEIROS, 2004)<br />

Para Caetano, “A ideia de que se tratava de um movimento<br />

ganhou corpo, e a imprensa <strong>na</strong>turalmente necessitava de um rótulo.<br />

O poder de pregnância da palavra colocou-a <strong>na</strong>s manchetes<br />

e <strong>na</strong>s conversas. O inevitável ismo se lhe ajuntou quase ineditamente”.<br />

(VELOSO: 1997; 191/192)<br />

Dessa maneira, o abandono das potencialidades circunscritas<br />

à ideia primeira foi realizado já no momento em que as imagens<br />

tradicio<strong>na</strong>is e folcloristas contrariavam as intenções de Caetano.<br />

Soavam-lhes conhecidos e gastos demais, além de excluírem elementos<br />

indicativos de questões importantes do contexto cultural<br />

ou as interfaces do <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l/popular com o inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l/pop. Com<br />

tom de irreverência diz ele: “Era um consolo que os populares e<br />

os jor<strong>na</strong>is mais vagabundos nos chamassem de hippies, de pop ou<br />

de novos roqueiros; e que alguns intelectuais mais refi<strong>na</strong>dos nos<br />

identificassem como a vanguarda, de John Cage e Godard”.<br />

(VELOSO: 1997: 192)<br />

51


Vale dizer que o posicio<strong>na</strong>mento político da maioria dos<br />

tropicalistas se articulava em uma crítica à ditadura, como também<br />

aos grupos de esquerda, fazendo opção por posicio<strong>na</strong>mentos<br />

alter<strong>na</strong>tivos 17 e operando em linhas de fuga, escapando assim um<br />

misto de contracultura, a<strong>na</strong>rquia e deboche, mas sobretudo se instituía<br />

enquanto recusa dos princípios da sociedade autoritária.<br />

Ora, diz Caetano em um trecho do debate promovido pela<br />

<strong>Revista</strong> Civilização Brasileira em 1966: “A música brasileira se moderniza<br />

e continua brasileira, à medida que toda informação é aproveitada<br />

(e entendida) da vivência e da compreensão da realidade brasileira<br />

(...). Para isso nós da música popular devemos partir, creio, da<br />

compreensão emotiva e racio<strong>na</strong>l do que foi a música popular brasileira<br />

até agora; devemos criar uma possibilidade seletiva como base<br />

<strong>na</strong> criação. Se tivermos uma tradição e queremos fazer algo de novo<br />

dentro dela, não só temos que sentí-la, mas conhecê-la.”<br />

O devir revolucionário fora muito mais significativo e presente<br />

do que uma situação revolucionária propriamente dita, pois<br />

17 Em A Moder<strong>na</strong> Tradição Brasileira, Re<strong>na</strong>to Ortiz apresenta uma leitura interessante<br />

de Luciano Martins sobre esse conjunto de valores, comportamentos e práticas<br />

que foram vividos como uma espécie de libertação pessoal no quadro <strong>global</strong> de<br />

repressão e da contracultura. Segundo Luciano Martins, essa noção é interpretada<br />

diferentemente quando inserida no contexto de uma sociedade periférica. No<br />

conjunto dessas práticas são considerados três elementos característico: o uso da<br />

droga, a desarticula; ao do discurso e o modismo da psicanálise. A droga é vista<br />

como um instrumento de evasão do mundo, um escapismo. O processo de<br />

desarticulação do discurso pode ser percebido, segundo este autor, no uso que a<br />

geração AI-5 faz das palavras, em particular a<strong>na</strong>lisando os novos termos da gíria<br />

juvenil, que em princípio implicariam uma falta de precisão, uma indetermi<strong>na</strong>ção<br />

que se opõe a qualquer tipo de conhecimento mais conceitual. Por fim, o modismo<br />

da Psicanálise diz respeito a expansão deste tipo de terapia junto a setores<br />

cultivados da classe media, expansão que não corresponderia tanto a existência de<br />

uma neurose de origem estritamente individual, mas expressaria uma ansiedade<br />

autêntica, não neurótica, induzida por toda uma conjuntura social específica. Esses<br />

elementos formariam um conjunto de valores para a orientação da vida, mas<br />

devido a sua despolitização, comporiam um antiprojeto de liberação <strong>na</strong> medida<br />

em que seria uma expressão da alie<strong>na</strong>ção produzida pelo próprio autoritarismo.<br />

52


seu sentido não estava dado pela possibilidade da transformação,<br />

mas pela ordem da imagi<strong>na</strong>ção, não estava <strong>na</strong> ordem da organização,<br />

mas da expressão e da comunicabilidade. Utilizava-se<br />

de linguagens cênicas e musicais nunca vistas, agregando teatro,<br />

musica brasileira, rock, folclore português, poesia e androginia.<br />

Rebolando afrontosamente e cantando coisas como “vira homem,<br />

vira, vira, vira lobisomem”. A revolução artística e comportamental<br />

se completou como fenômeno mercadológico. O Brasil<br />

viveu uma febre musical sem igual.<br />

Devir e algo da ordem do imperceptível, i<strong>na</strong>preensível,<br />

impalpável, porém visceral movimento. O devir e um acontecimento.<br />

Se formos múltiplos viveremos devires, mutações. Já revolução<br />

implica em mudança <strong>na</strong>s instituições, um processo macro, ampliado,<br />

processo histórico que implica em sua efetuação em estado de<br />

coisas. Nesse sentido maio de 68 e um exemplo incontestável de<br />

acontecimento. Irrupção de um devir em estado puro. Triunfo<br />

intempestivo nietzscheano. A dimensão do gesto político doravante<br />

ampliado, aberto a inúmeras possibilidades, intermitentes, lutas diárias<br />

reabrindo novas solidões e sociabilidades. (MEDEIROS, 2004)<br />

Para Marcuse, a classe operária por estar ligada exclusivamente<br />

à esfera da produção e consumo deixava de lado seu papel histórico<br />

revolucionário. Esta compreensão indica que a mudança só poderia<br />

advir das minorias, dos margi<strong>na</strong>lizados pela sociedade industrial e<br />

jovens estudantes, pois o operariado segundo este autor, subsumia<br />

<strong>na</strong>s táticas sutis do capitalismo, e passava a ter como projeto os<br />

benefícios dessa sociedade. Seguidamente a esses desdobramentos<br />

do maio de 1968, se constrói uma geração que opta pela vida simples<br />

às margens da sociedade de consumo, correndo por trás o pensamento<br />

existencialista que afirmava a liberdade como projeto.<br />

Ainda em relação aos tropicalistas, em alguns casos as leituras<br />

sobre a postura destes não dissociavam suas obras de suas convicções,<br />

constituindo assim uma espécie de cobrança de uma postura<br />

coerente com a imagem política. Isso explica para Ridenti<br />

porque muitos fãs petistas de Chico Buarque tenham protestado<br />

quando ele apoiou FHC <strong>na</strong>s eleições da prefeitura paulista em 1985<br />

53


<strong>na</strong> ocasião que cedeu o refrão “vai passar” confundindo estética<br />

com a postura política do compositor que <strong>na</strong> verdade queria evitar<br />

a vitória de Jânio Quadros o que acabou acontecendo. Esta situação<br />

se repetiu <strong>na</strong> adesão de Caetano à campanha de FHC em 1994.<br />

A tradução da relação estética e política apresentada por<br />

Ridenti caminham em outro sentido, mas não invalida as outras.<br />

O que ele propõe fazer é uma leitura que aproxime sociologicamente<br />

a obra e a atuação política dos tropicalistas.<br />

É plausível interpretar a imbricação indissolúvel entre<br />

moderno e arcaico, urbano e rural, inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />

<strong>na</strong>s obras do movimento e, depois, no desdobramento<br />

da carreira individual dos diversos artistas que o integraram<br />

como um pêndulo que oscila contraditoriamente no plano<br />

cultural e no político. (RIDENTI: 2002; 283)<br />

Uma “oscilação pendular” que se refere às propostas do<br />

autor de buscar as raízes dos problemas culturais brasileiros, aproximando-se<br />

do limite da ruptura revolucionária, tanto em termos<br />

estéticos quanto existenciais e políticos, ainda que não pela via<br />

da esquerda organizada. A oscilação pendular funcio<strong>na</strong> como um<br />

suporte metodológico que fica entre uma posição de incorporação<br />

crítica moder<strong>na</strong> das influências estéticas e políticas inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />

como também de resgate crítico da cultura brasileira em<br />

seus aspectos específicos desprezado pelas elites. Era como se<br />

estivessem reinventando a antropofagia oswaldia<strong>na</strong> em seu sentido<br />

revolucionário da cultura brasileira, o que provocou um di<strong>na</strong>mismo<br />

em suas raízes tradicio<strong>na</strong>is, seguindo um ideal da poesia<br />

russa quando considera que não há revolução <strong>na</strong> arte sem<br />

revolução <strong>na</strong> forma.<br />

Uma nova dinâmica da cultura mundial, que representa uma<br />

marca de rompimento com o compasso das interpretações do<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-popular e seu correspondente no plano político, o PCB,<br />

bem como de sua dissidência. Tratava-se de superar o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo<br />

o que implicava há um tempo em negá-lo e incorporá-la e<br />

54


nesse sentido continuava central o problema da identidade brasileira<br />

e do subdesenvolvimento <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l como nunca deixaria de<br />

ser para os tropicalistas, mesmo depois do fim do movimento<br />

como expressa inequivocamente o livro verdade tropical.<br />

Nos idos de 1970, surgem as discotecas que privilegiam a<br />

dança, uma febre que se desencadeia principalmente após o enorme<br />

sucesso de Embalos de Sábado à Noite. Esse estilo não tinha<br />

pre<strong>tensões</strong> artísticas nem políticas, tal como a tendência dos anos<br />

1960 e suas letras oscilavam em torno do sexo e do balanço constante<br />

dos corpos. O cenário (diferentemente do cenário punk),<br />

era um cenário de brilho, de globos espelhados e ritmos de festa,<br />

paralelamente a um clima tenso de revoltas estudantis, representadas<br />

<strong>na</strong>s passeatas e em movimentos grevistas.<br />

Fi<strong>na</strong>lmente acontece a tão esperada abertura política acompanhada<br />

por um enfraquecimento do conteúdo de denúncias sociais,<br />

fruto de um longo período de repressão e censura. Mesmo<br />

assim o rock <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l aparecia como uma nova possibilidade,<br />

um novo vigor, para nos anos 1990 novamente sucumbir ao esquecimento<br />

por outras tendências privilegiadas pela mídia.<br />

Nos anos 1980 o rock <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l parece emergir revigorado,<br />

como se depois da abertura política, tivesse a necessidade de<br />

falar mais claramente dos problemas sociais e sem necessidade<br />

de uso de metáforas, subterfúgios. Expressava-se em grande parte<br />

por artistas jovens da classe média que se aproximavam das<br />

classes populares pelo crescimento da sociedade de consumo fruto<br />

das promessas do Plano Cruzado que ligeiramente demonstrou<br />

<strong>na</strong> prática seu fracasso.<br />

A geração de 1980 se construiu em um cenário de promessas<br />

e frustrações expressas <strong>na</strong>s músicas e no desencanto de<br />

cantores como Cazuza que se referia a esta geração como “geração<br />

perdida”, sem referenciais ideológicos, como se carregasse<br />

consigo uma revolta fatal e sem remédios tal como sua doença<br />

a AIDS, uma outra marca que metaforiza esta geração por<br />

seu enorme desencanto.<br />

55


Nos anos 1990 uma grande parcela de brasileiros volta a<br />

acreditar <strong>na</strong> renovação da política com a eleição direta do novo<br />

presidente. Paralelamente a isso ruía o muro de Berlim o que<br />

estimulava a se pensar <strong>na</strong> vitória da democracia sobre todas as<br />

ordens de fascismo. Mas essas expectativas não se consolidaram<br />

<strong>na</strong> prática, pois a chaci<strong>na</strong> da candelária aparece como a revelação<br />

do que há de arbitrário <strong>na</strong> lei e <strong>na</strong> ordem social, outra marca<br />

de violência da qual este país esteve acostumado a sentir. Na<br />

ce<strong>na</strong> musical o rock <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l sucumbe a uma tendência massificada<br />

do pagode e a música “sertaneja”.<br />

O governo Collor não tarda a exibir seu verdadeiro intento<br />

conexo a escândalos e corrupção e o que parecia ser novo revelou-<br />

-se como um velho esquema político das oligarquias oriundas do<br />

governo militar. Prometera combater os marajás e acabara por combater<br />

o povo. Mais uma vez o povo sujeitou-se ao engano, e somente<br />

demonstrou-se capaz de reagir quando a classe média sentiu<br />

economicamente o golpe. O sentimento de revolta foi reativado,<br />

bem como o retorno dos estudantes à ce<strong>na</strong> política, embora esse<br />

retorno estivesse sujeito a uma série de questio<strong>na</strong>mentos por alguns<br />

setores que classificavam essa geração unicamente como “geração<br />

do consumo”, cuja preocupação essencial era o prazer.<br />

Em uma outra composição e do outro lado se destaca um<br />

outro segmento da juventude que não é bem vista, principalmente<br />

depois do relato da mídia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l sobre o acontecimento de<br />

outubro de 1992 (o arrastão <strong>na</strong>s praias do Arpoador, frequentada<br />

pela classe média), um acontecimento associado diretamente a<br />

funkeiros iniciando assim um processo de culpabilização por parte<br />

da mídia. Este processo assi<strong>na</strong>lou a existência de uma outra juventude<br />

tomada pela mídia e pela polícia como signo de violência.<br />

Por outro lado desperta <strong>na</strong>s universidades a necessidade de<br />

estudos sobre este acontecimento desta tendência que reúne uma<br />

série de elementos da música eletrônica feita a partir de computadores<br />

e mixadores, funcio<strong>na</strong>ndo como apropriações recicladas<br />

de efeitos e ruídos sonoros.<br />

56


Ao lado dessa tendência eletrônica emerge outros estilos<br />

como o mangue beat, tendência da música per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong> que<br />

ganhou projeção <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. É o momento em que se insinuam<br />

marcas de revolta como <strong>na</strong>rrativa de espaços proscritos, através<br />

de resíduos eletrônicos da sociedade tecnológica. Chico Science<br />

e Nação Zumbi correspondem a uma representação inteligente<br />

dessa tendência que funde o popular com a vibração eletrônica.<br />

Começa a soar no espaço auditivo do Brasil, o ritmo dos<br />

excluídos. Assim como nos primórdios do samba, que se<br />

originou de uma cultura margi<strong>na</strong>l ligada aos setores<br />

populares, ocorre <strong>na</strong> atualidade o surgimento de um novo<br />

gênero musical que busca retratar com fidelidade,<br />

dificuldades que a maioria da juventude pobre da periferia<br />

sofre no seu dia a dia. (CARMO: 2003:175)<br />

O Hip Hop emerge neste cenário apresentando através de<br />

seus elementos toda a realidade a que estão sujeitos os jovens<br />

moradores dos espaços segregados, oferecendo um fiel retrato<br />

do Brasil contemporâneo. O cotidiano, e a revolta contida <strong>na</strong>s<br />

expressões desses grupos juvenis que se tor<strong>na</strong>m um acontecimento<br />

para ser explicado pelas Ciências Sociais, acontecimento<br />

que já se fazia presente já <strong>na</strong> década de 60, frente a uma<br />

multiplicidade de outras tendências culturais de juventude.<br />

O movimento funk também se fazia representar por uma<br />

grande parcela da juventude que frequentava os chamados ‘bailes’<br />

nos subúrbios cariocas, encontros que forma se ampliando<br />

até não mais poderem ser ignorados. Estavam dados si<strong>na</strong>is de<br />

um resgate da cultura negra, ação demonstrada no estilo e <strong>na</strong><br />

composição. O estilo combi<strong>na</strong>va-se com a exibição de cabeleiras<br />

altas, do visual e das danças de James Brown. Começava então<br />

um grande movimento de afirmação da identidade como também<br />

da beleza negra através de ícones mundiais da cultura negra<br />

que havia se destacado em várias esferas.<br />

Diferentemente da tropicália, os artistas negros tor<strong>na</strong>ram-se<br />

subversivos aos olhos da mídia por exibir orgulho da cor. Com<br />

57


isso, surgiram vários movimentos afirmativos da cultura negra e<br />

a musicalidade era seu ponto de convergência, e que seria até<br />

certo ponto o embrião do Hip Hop em que Gerson King Combo,<br />

pode ser tomado como um dos expoentes desses movimentos.<br />

A afirmação desse movimento conviveu, entretanto, com<br />

um forte movimento de repressão, pela alegação de que alguns<br />

integrantes tinham envolvimento com políticos de esquerda ou<br />

subversiva. O certo é que a juventude, principalmente a juventude<br />

suburba<strong>na</strong> caminhava em direção de novas experiências,<br />

entrecruzadas por formas culturais trans<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, confundindo<br />

a cultura do consenso instalando <strong>na</strong> classe média uma sensação de<br />

medo e desconhecimento.<br />

A ênfase é dada para o conflito, relegando as ideias de cordialidade<br />

e democracia racial para o fundo da ce<strong>na</strong>. Estes modelos<br />

de solidariedade juvenil estão amalgamados por uma identificação<br />

que os tor<strong>na</strong> comum, que pode variar desde um marca sonora, a<br />

uma delimitação espacial, no sentido de uma cartografia que ultrapassa<br />

modelos interpretativos tradicio<strong>na</strong>is.<br />

São modelos de solidariedade que podem se revelar <strong>na</strong><br />

forma de pertencimentos sociais, onde “a cor, posição social,<br />

gosto e temperamento pode desorde<strong>na</strong>r o fluxo entre uma<br />

área e outra, e precipitar atritos entre grupos articulados a<br />

diferentes malhas territoriais. (Alvim: 2000)<br />

A perspectiva mítica de um Brasil cordial se esvazia, portanto<br />

partir dos anos 90 do século passado, precisamente no<br />

momento em que o movimento Hip Hop se encontra em ple<strong>na</strong><br />

ação exigindo, assim espaços de representação e exposição de<br />

seus traços essenciais, ou sua identidade, a partir de complexas<br />

trocas culturais e da inconsistência de determi<strong>na</strong>das formas políticas<br />

de representação. Si<strong>na</strong>is que estão expressos <strong>na</strong> sua linguagem,<br />

no movimento corporal, <strong>na</strong> música, no grafite e, em toda<br />

sorte de experiências cotidia<strong>na</strong>s <strong>na</strong> cidade.<br />

58


Em especial, a forma como se processa a construção daquilo<br />

que chamarei de ‘novos espaços de representação’, que figurativamente<br />

estão situados aqui, <strong>na</strong> expressão quebrada, que<br />

se mostra como um indício de redefinição e resignificação dos<br />

espaços da cidade, e de certa forma implicam em uma tomada<br />

simbólica da cidade. Espaços que são conquistados, <strong>na</strong>s trocas,<br />

<strong>na</strong>s negociações, ou mesmo <strong>na</strong> luta física.<br />

A quebrada se apresenta, como uma territorialidade vaga,<br />

mas presente <strong>na</strong>s passagens da cidade, nos muros, nos prédios,<br />

nos túneis. Representa especialmente um território especifico: a<br />

favela-bairro. Local onde habitam, em número representativo, os<br />

integrantes de grupos juvenis que de certa forma compartilham<br />

as mesmas experiências e <strong>tensões</strong> do cotidiano, e se encontram<br />

relativamente protegidos neste lugar. Possuem marcas de pertença<br />

simbólica e social: são os considerados, os manos, os chegados,<br />

aqueles que compartilham entre si um modelo ético forjado<br />

<strong>na</strong>s suas experiências ordinárias.<br />

Eles reconhecem sintomaticamente quem é da quebrada,<br />

ou ainda do pedaço, da (minha) área. Fato este que às vezes se<br />

encaminha para uma postura violenta como no caso das galeras.<br />

Sobretudo, estes grupos fundam uma espécie de territorialidade<br />

que pode ultrapassar os limites do bairro e imprimir-se <strong>na</strong>s passagens<br />

da cidade o que aponta para uma extrapolação de um espaço<br />

antes restrito à visão polar favela/bairro o que remete a uma hipótese<br />

de que não existe ape<strong>na</strong>s um processo de desterritorialização,<br />

mas sobretudo uma superposição de novas experiências no espaço<br />

da cidade, o que provoca <strong>tensões</strong> e conflitos.<br />

De agora em diante em vez de reforçarem a imagem de um<br />

país libertário e malandro, as representações promovidas pelos<br />

funkeiros e rappers sugerem um Brasil violentamente hierarquizado<br />

e autoritário, revelando os conflitos diários enfrentados pelas<br />

camadas pobres bem com a dura realidade das favelas e subúrbios,<br />

a precariedade e ineficiência dos meios de transporte coletivos,<br />

racismo e assim por diante. Esta nova tendência conquistou simpatizante<br />

inicialmente pela aproximação de estilos e marcas cultu-<br />

59


ais e depois de seu caráter afirmativo, embora em um primeiro<br />

momento fosse ofuscada pela febre das discotecas.<br />

Acabado o acontecimento das discotecas, o funk reaparece<br />

<strong>na</strong> ce<strong>na</strong> mesmo coexistindo par a par com o rock <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, embora<br />

já demonstrasse certa diminuição da consciência negra nos<br />

seus momentos anteriores. Seu aparecimento demonstrava a enorme<br />

capacidade inventiva 18 dessa parcela da população que se<br />

sobressaia às investidas e demarcações da mídia, acabando por<br />

alastrar-se em várias capitais do Brasil e sendo incluída como<br />

evento da mídia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l envolvendo-se no paradoxo da<br />

domesticação e do controle da mesma forma que posteriormente<br />

o Hip Hop e outras subculturas juvenis.<br />

O Hip Hop teve o mesmo percurso margi<strong>na</strong>l que teve o<br />

funk, justamente pelas suas temáticas que retratavam os dilemas<br />

da juventude pobre e dos moradores negros dos guetos das grandes<br />

cidades. Os temas desenvolvidos e cantados a partir de uma<br />

linguagem partilhada pelas experiências ordinárias da rua, do<br />

bairro, da cidade.<br />

Códigos próprios, gírias, palavrões e incitamento à revolta<br />

paralelamente a um apelo de fundo para uma tomada de consciência.<br />

A ce<strong>na</strong> e o espaço da rua onde se improvisa uma espécie<br />

de ritual em que pela oralidade se destacavam <strong>na</strong>rrativas da história<br />

negra, aliada a habilidade do DJ que parecia atingir o êxtase<br />

ao arranhar discos, o scratch. Transformava-se o espaço da rua em<br />

um espaço comunitário livre e artístico.<br />

18 Um antropólogo diria que esse grupo disperso, afi<strong>na</strong>do entre si e desafi<strong>na</strong>do<br />

em relação ao resto, soube construir seu ethos e produzir suas forças simbólicas<br />

alter<strong>na</strong>tivas, como um modo de assegurar munda<strong>na</strong>mente sua alteridade e efetivar-se<br />

como uma diferença no meio do burburinho cosmopolita ávido pelo<br />

homogêneo. (MEDEIROS 37/37. 2004)<br />

60


1.1. Modernidade, migração e cidade: As promessas da<br />

cidade tecnológica e a constituição da experiência urba<strong>na</strong><br />

“Os migrantes atravessam a cidade em muitas direções e instalam,<br />

precisamente nos cruzamentos, suas barracas barrocas de doces<br />

regio<strong>na</strong>is e rádios de contrabando, ervas medici<strong>na</strong>is e videocassetes.”<br />

(CANCLINI: 2000:20)<br />

Aqui se faz referência aos processos que contribuíram para<br />

a formação daquilo que denomi<strong>na</strong>mos “experiência urba<strong>na</strong>”, que<br />

– em seu sentido provisório – representa um conhecimento<br />

construído nos espaços da cidade, bem como do reconhecimento<br />

de suas conexões que fundam relações e modelos comunicativos.<br />

Podemos encontrar tal experiência no processo de consolidação<br />

das metrópoles <strong>na</strong> sociedade capitalista, um processo que<br />

imprimiu um novo estatuto de relações e percepções do espaço e<br />

tempo social. Nesse universo da experiência urba<strong>na</strong>, Charles<br />

Baudelaire é considerado um exemplar da experimentação, pois<br />

mostra em seus textos e poemas as novas sinuosidades da<br />

modernidade ocidental impressas, sobretudo em suas passagens<br />

e nos seus deslocamentos pela cidade.<br />

A cidade para ele, assemelha-se a um palco de experiências<br />

diversas, promessas e realizações, o lugar da aventura e do<br />

anonimato, do efêmero como parte do essencial. Tal experiência<br />

põe em evidencia as diversas conexões e desconexões entre a<br />

cidade e os corpos pela mediação chamada cultura. Mediação<br />

entendida não como a superação inevitável, mas sim como o<br />

exequível diante das possibilidades.<br />

É decisivo realizar uma (ainda que panorâmica), digressão<br />

sobre a ocorrência de meados do Século 19 que se inferiu chamá-<br />

-la de Revolução Industrial. Um período em que os corpos viviam<br />

muito mais nos arranjos das fábricas do que <strong>na</strong> cidade, propriamente<br />

dita. A cidade se constituía, muito mais como um grande<br />

desarranjo entre a emergente fumaça exalada pelas <strong>na</strong>ri<strong>na</strong>s<br />

das chaminés, ruas e bairros inteiros compostos de casebres e<br />

61


lamas, sem a menor infra-estrutura, mas que servia de abrigo ao<br />

protótipo operário. Mesmo assim, haviam ruas, avenidas, praças<br />

e teatros com o perfil do modelo de cidade que a Modernidade<br />

burguesa aspirava, locais com assepsia e planejamento, onde os<br />

corpos, que preferencialmente circulariam por ali, estariam trajados<br />

de algum linho europeu, cartolas, espartilhos e luvas que configuravam<br />

as fantasias desses atores sociais.<br />

Uma das novelas de Gogol, por exemplo, a Avenida Nevsk<br />

bem representou a contradição da ilusão da Modernidade como<br />

parte de uma experiência constituída em um solo subdesenvolvido<br />

(a Rússia) dando substrato a paixão ensandecida de um poeta que<br />

transborda confusões entre o simbolismo romântico que perdurava<br />

e as novas sensações da paixão urba<strong>na</strong> por uma prostituta.<br />

Esta novela apresenta também não somente a divisão do espaço<br />

urbano entre pedestres e veículos, evidencia ainda a relevância<br />

do funcionário público da época, ou seja, a relevância da vida burocratizada<br />

como elemento próprio de uma nova cultura emergente,<br />

muito oscilante, pois ainda respirava ares do glamour romântico.<br />

Baudelaire é marca de uma cultura da modernidade, de uma<br />

experiência moder<strong>na</strong> como aquela experiência transitória, aquela<br />

que sobrevive sem os grandes sistemas, como aquela que descobre<br />

um novo simbolismo, uma nova experiência, onde tanto a<br />

sua poesia quanto sua prosa tinham um lugar comum entre si,<br />

que eram as maneiras de sensibilidade do homem moderno e sua<br />

irredutibilidade, apesar de inebriada pelos torpores artificiais,<br />

estes não eram elementos exteriores ao novo mundo pictórico,<br />

mas faziam parte da interioridade como afirma Bataille (1995),<br />

“a experiência da literatura animal”.<br />

Baudelaire dedica sua apresentação do Salon de 1846 ao<br />

burguês, a seu espírito empreendedor que promove o progresso da<br />

economia e das artes. Burguês que é visto como incentivador e<br />

promotor de uma cultura que se democratiza. Desta forma, riqueza<br />

material e riqueza cultural são consideradas concomitantemente<br />

a uma sociedade que expande e se transforma. No entanto existe<br />

62


uma outra face da moeda. As mesmas forças que libertam, aprisio<strong>na</strong>m.<br />

O mundo burguês traz consigo novas formas de poder e de<br />

domi<strong>na</strong>ção, ele encerra sua própria barbárie (ORTIZ; 1991). Para<br />

Ortiz, tal passagem comparada com sua posição anterior poderia<br />

ser entendida como uma ambiguidade do poeta.<br />

Creio, no entanto, que ela exprime uma contradição social<br />

mais ampla. Baudelaire assume radicalmente a postura de viver<br />

o seu tempo, e neste sentido de prezar as conquistas trazidas pela<br />

sociedade industrial. Mas, ao fazê-lo, ele percebe <strong>na</strong> própria sociedade<br />

que gera esta nova ordem à presença do caos. Por isso seu<br />

Modernismo, por ser herdeiro da modernidade, adquire uma dimensão<br />

critica. (ORTIZ: 1991; 34)<br />

O que Baudelaire imprimiu, de modo algum cabia <strong>na</strong>s engre<strong>na</strong>gens<br />

exteriores do “intestino” da Modernidade, mas inscrevia-se<br />

inter<strong>na</strong>mente. Tor<strong>na</strong>-se vago desenvolver qualquer trajetória<br />

sobre a Modernidade ocidental, sem que necessariamente o<br />

autor de Flores do Mal esteja incluso, principalmente quando nos<br />

referimos ao exercício da experiência urba<strong>na</strong>. Nessa tensão produzida<br />

pelas forças inerentes à Modernidade, visualizamos uma possibilidade<br />

de uma a<strong>na</strong>logia com a ambiguidade destacada por<br />

Berman sobre São Petesburgo, cidade conhecida pela literatura<br />

russa como pólo moderno que se opõe a tradicio<strong>na</strong>l Moscou, e que<br />

sofre no fi<strong>na</strong>l do século XIX uma modernização relativa. Progresso<br />

construído pelas forças conservadoras e ávidas pela última moda<br />

ocidental, e que tentam dar brilho a dura realidade local configurando<br />

uma espécie de modernismo do subdesenvolvimento.<br />

No caso específico de Ma<strong>na</strong>us, entendemos que o solo da<br />

constituição que desig<strong>na</strong>mos como experiência urba<strong>na</strong>, é o período<br />

em que esta cidade experimenta uma série de transformações<br />

econômicas e culturais e elementos tecnológicos são incluídos<br />

dentro de uma ordem de vida anteriormente apartada desses<br />

signos de modernização.<br />

São índios, caboclos, ribeirinhos e uma série de tipos sociais<br />

que se “descolam” de suas temporalidades e se aventuraram <strong>na</strong>s<br />

promessas da civilização tecnológica incorporando a ferro e fogo<br />

63


suas marcas e sentidos, ou como dizem Deleuze e Guatarri<br />

(1997:188-189): “Em ritmo aluci<strong>na</strong>nte se erguem rapidamente imensas<br />

favelas móveis, temporárias, nômades e trogloditas, restos de metal e de<br />

tecido, “patchwork”, que já nem sequer são afetados pelas estiagens do<br />

dinheiro, do trabalho ou da habitação. Uma miséria explosiva que a cidade<br />

secreta ...”<br />

A roti<strong>na</strong> imposta pela cidade se eleva bem acima de suas<br />

possibilidades, impondo uma roti<strong>na</strong> dura e claramente percebida<br />

no espaço que lhes é desig<strong>na</strong>do (ao mesmo tempo negado), para a<br />

vida e para o trabalho. São problemas de diversas ordens, conflitos<br />

com a polícia, doenças, anonimato, discrimi<strong>na</strong>ção, etc. É o solo de<br />

organização e consolidação da sociedade industrial, peça fundamental<br />

do capitalismo e da cultura ocidental moder<strong>na</strong>, bem como<br />

a construção de uma experiência ence<strong>na</strong>da pelo Hip Hop.<br />

Os dilemas desse encontro são si<strong>na</strong>lizados pelo segmento<br />

juvenil, mediante um corte radical que diz respeito as suas experiências<br />

anteriores permeadas por elementos simbólicos e materiais<br />

específicos de mundos culturais distintos. Eles são os principais<br />

“convidados” do aparato industrial da Zo<strong>na</strong> Franca de<br />

Ma<strong>na</strong>us, mão de obra abundante, aventureira, e por isso disposta<br />

a enfrentar o desafio da nova condição.<br />

Nessa cidade há um misto de fascínio e medo que se mistura<br />

com as decepções e o fracasso posterior frente às crises desse<br />

modelo de sociedade em que os espaços da produção e do<br />

consumo são peças referenciais. Nessa configuração, o lazer é<br />

adaptado sobre os arranjos espaciais combi<strong>na</strong>do com diferentes<br />

estratégias de sobrevivência, estimulando uma procura por espaços<br />

e abrigos de toda a sorte, que salvaguardassem, sobretudo os<br />

sentimentos e aproximações de uma realidade deixada para trás.<br />

Os filhos e herdeiros desse processo reconstruíram seu imaginário<br />

cultural mediante as promessas civilizatórias se tor<strong>na</strong>ndo<br />

sensíveis às novas tecnologias e experiências, e embora não participem<br />

de seus benefícios, eles produzem sua existência <strong>na</strong> cida-<br />

64


de industrial, um ambiente propício para capturar e expressar o<br />

encontro do <strong>global</strong> e do local dentro de uma conjuntura complexa<br />

de processos e articulações.<br />

Ocupam igarapés, propriedades privadas, pontes e<br />

marquises, são chamados de “invasores”, cujas territorialidades<br />

são conquistadas a ferro e fogo. São indíge<strong>na</strong>s destribalizados<br />

que se misturam e se confundem <strong>na</strong> cidade como se desejassem a<br />

invisibilidade para sobreviver e existir socialmente. Eles parecem<br />

cumprir um destino de seres <strong>na</strong>scidos da conjunção do exílio<br />

e da orfandade e desterritorializados sob diferentes disfarces,<br />

vagueiam e margeiam a história. Movimentos que se assemelham<br />

novos descimentos, desta vez dos filhos da era eletroeletrônica e<br />

sua nova realidade o rap local, que inclui como marcas de suas<br />

composições e <strong>na</strong>rrativas, constituindo assim indicativos dos espaços<br />

e condições em que estão distribuídos os segmentos populacio<strong>na</strong>is<br />

e culturais da cidade.<br />

O grupo “Os Cabanos” representam metaforicamente este<br />

ideal de luta e resistência. A escolha desse nome para se deve a um<br />

movimento histórico popular, um levante contra as imposições.<br />

Para o rapper Guilherme dos Cabanos: “estamos em uma nova batalha,<br />

pois, aqui no Norte <strong>na</strong>da mudou. Devemos pegar novamente as armas<br />

só que agora a arma é a palavra. Devemos estar preparados pra qualquer<br />

situação, <strong>na</strong> lei de Deus ou <strong>na</strong> lei do cão”, diz ele.<br />

O novo contexto da Zo<strong>na</strong> Franca propiciou um revigoramento<br />

da economia estimulando uma reestruturação do espaço<br />

urbano e intensificando o fluxo migratório que já vinha ocorrendo<br />

desde o início do processo de estag<strong>na</strong>ção econômica. Nos<br />

últimos cinquenta anos a densidade populacio<strong>na</strong>l vem aumentando<br />

continuamente, de tal forma que em 2000, atingiu um contingente<br />

de aproximadamente de 1,5 milhões de habitantes. (RI-<br />

BEIRO FILHO: 2004: 30)<br />

A migração representa um profundo corte, com os vários<br />

desdobramentos do plano material e do plano imaginário, embo-<br />

65


a se deva dizer que este corte não significa um si<strong>na</strong>l de apagamento<br />

das representações anteriores da vida individual e coletiva,<br />

mas uma reelaboração e ressignificação de laços, percepções<br />

e particularidades. Diz respeito ainda a um crescimento<br />

demográfico que refletiu <strong>na</strong> ampliação espacial da cidade.<br />

Em 1970, Ma<strong>na</strong>us tinha pouco mais de 1.500 hectares para<br />

uma população de 138.685 habitantes, com densidade<br />

demográfica média de 112 habitantes por hectare. Vinte e cinco<br />

anos depois essa densidade correspondia a 30,2 habitantes por<br />

hectare, um declínio da relação habitante/hectare que aponta<br />

para o crescente aumento da especulação fundiária. A cidade se<br />

amplia para margens de igarapés, num modelo de ocupação mista,<br />

entre as intenções planificadoras do Estado e a ânsia da ocupação<br />

espontânea 19 . “A cidade esparrama-se pelos extensos platôs, avançando<br />

floresta adentro, ampliando sobremaneira a distancia em relação ao<br />

Rio Negro”. (RIBEIRO FILHO: 2004: 31)<br />

É instalado assim, um processo de crescimento caótico em<br />

que muitos bairros foram criados às custas de invasões, estimuladas<br />

por projetos populistas e irresponsáveis sem qualquer projeto<br />

de urbanização e planejamento. A infraestrutura urba<strong>na</strong> até o<br />

fi<strong>na</strong>l de 1970 ainda era a mesma que implantada pelos ingleses em<br />

1910. A falta de planejamento urbano deu lugar a improvisação<br />

que caracteriza a cidade de Ma<strong>na</strong>us, fruto de um processo de expansão<br />

do capitalismo materializado no processo de criação da<br />

Zo<strong>na</strong> Franca, resultado que atingiu não somente o desenho físico<br />

da cidade, mas o cotidiano das pessoas, seus modos de vida.<br />

A Zo<strong>na</strong> Franca acenou para o fim da estag<strong>na</strong>ção econômica<br />

ocasio<strong>na</strong>da pela falência do extrativismo. O indicativo empírico<br />

se mostrava pelo grande número de quinquilharias que abarrota-<br />

19 Segundo Canclini (2000:20), o que era um conjunto de bairros se espalha para<br />

além do que podemos relacio<strong>na</strong>r, ninguém da conta de todos os itinerários, nem<br />

de todas as ofertas materiais e ofertas desconexas que aparecem.<br />

66


vam inúmeras lojas do centro da cidade associada a um grande<br />

contingente de turistas que vagueavam pelas ruas para se<br />

deliciarem com o exótico. A ce<strong>na</strong> parecia comunicar que o pesadelo<br />

econômico tinha acabado e a cidade se repartindo em uma<br />

forma trans<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l configurada <strong>na</strong>s grandes e minúsculas lojas<br />

repletas de produtos importados e supérfluos, misturados a produtos<br />

típicos regio<strong>na</strong>is, como um composto híbrido. A classe média<br />

deleitava-se com a abundância de produtos sofisticados, atendendo<br />

assim necessidades prementes da sociedade de consumo.<br />

O consumo já fazia parte do cotidiano e portando se constituía<br />

como uma marca cultural da sociedade capitalista. O ideal<br />

de consumo já fazia parte dos anseios da classe média como também<br />

daqueles que se posicio<strong>na</strong>vam à margem desse processo, estando<br />

ape<strong>na</strong>s ligados fisicamente pelo trabalho <strong>na</strong>s fábricas. A cidade<br />

crescia sem planejamento algum, pelo menos no que se refere<br />

aos espaços que abrigavam os filhos miseráveis deste milagre.<br />

Crescia como cresce um monstro 20 , nos seus primeiros anos não<br />

assusta tanto, mas que com o tempo passa a apavorar e devorar.<br />

Sua infraestrutura urba<strong>na</strong> não sofreu nenhuma alteração desde o<br />

período da estag<strong>na</strong>ção econômica ocasio<strong>na</strong>do pela crise da borracha<br />

no mercado inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

Segundo Re<strong>na</strong>n Freitas Pinto (1986), a continuidade desses<br />

fluxos migratórios contribuiu para o agravamento da situação<br />

já precária, <strong>na</strong> medida em que foram obrigados a dividir o espaço<br />

já exíguo da casa, com os parentes e outros grupos sociais que<br />

chegavam a cada dia. Isto significou um aumento potencial dos<br />

20 Se a cidade sempre aparece ligada à imagem de um “monstro massificador” que<br />

transforma a tudo e a todos em uma mesma coisa, e em um mesmo modo de pensar,<br />

sentir, vivenciar e experimentar as coisas, sendo impessoal, ou seja, se ao modo de<br />

Weber, a cidade “desencantaria o homem”, por outro lado cria também o seu oposto,<br />

presente no que Maffesoli denominou de “comunidade emo cio<strong>na</strong>l”, ou seja, uma<br />

forma de sociabilidade definida a partir não mais do sentido de racio<strong>na</strong>lidade meio/<br />

fim, mas sim através de “seu aspecto efêmero, composição cambiante, inscrição local,<br />

a ausência de uma organização e a estrutura quotidia<strong>na</strong>” (Maffesoli, 2000, 17).<br />

67


movimentos de ocupação do solo urbano, à proporção em que a<br />

terra no perímetro da cidade vem sendo submetida a um intenso<br />

processo especulativo.<br />

A partir daí temos um agravamento substancial dos problemas,<br />

uma vez que a população cresce sem que o Estado possa<br />

dar respostas plausíveis a toda essa (des)ordem de coisas, pois<br />

Ma<strong>na</strong>us possuía uma infraestrutura visto que se preocupava ape<strong>na</strong>s<br />

com as comodidades de uma elite minoritária e nunca preparou<br />

os caminhos por onde no futuro a sociedade capitalista iria<br />

enveredar. (SOUZA; 1978: 63)<br />

A cidade de Ma<strong>na</strong>us não incluiu <strong>na</strong> ordem de suas preocupações<br />

modernizadoras, melhorias para atender o novo segmento<br />

de operários que estava se formando com suas peculiaridades. Mas<br />

estranhamente de acordo com Marcio Souza, fazia questão de ence<strong>na</strong>r<br />

estrangeirismos caracterizando a cidade como uma miniatura<br />

de Paris dos trópicos, lugar este em que os operários foram exilados<br />

para bem longe do centro.<br />

Marcio Souza (1978), considera que grandes impactos iriam<br />

se fazer sentir violentamente, logo <strong>na</strong>s décadas seguintes pelo<br />

aparecimento de espaços insalubres que não constavam de equipamentos<br />

de urbanísticos necessários para viver, mesmo nos conjuntos<br />

habitacio<strong>na</strong>is construídos pelo Banco Nacio<strong>na</strong>l de Habitação<br />

que mais pareciam aglomerados sujeitos a toda sorte de<br />

improvisações.<br />

Sem luz, <strong>na</strong> poeira e <strong>na</strong> lama, com improvisadas e repelentes<br />

feiras, um comércio a altura de ínfimas necessidades, essa<br />

gente não pertence à Zo<strong>na</strong> Franca a não ser como mão de obra<br />

dócil e barata, e só caminham no centro de Ma<strong>na</strong>us quando vão<br />

enfrentar as filas do INPS ou quando no domingo, olham as vitrines<br />

e se misturam com a margi<strong>na</strong>lidade que habita a cidade.<br />

A vida dessas populações, seus dramas vividos, seja em<br />

relação a precariedade da vida material ou de outras formas de<br />

violência que reforçam uma estratificação miserável se tor<strong>na</strong> um<br />

conteúdo privilegiado <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas do rap e do grafite e até <strong>na</strong><br />

dança. Essas <strong>na</strong>rrativas podem ser interpretadas como relatos de<br />

68


uma politica de exclusão. Metaforicamente podem ser consideradas<br />

as novas senzalas, pois abrigam toda sorte (ou má sorte) de<br />

vidas. A <strong>na</strong>rrativa emerge como uma critica mordaz as instituições<br />

oficiais que somente quantificam esses espaços como se<br />

fosse um mero acordo burocrático. Entretanto, não efetivam<br />

nenhuma politica capaz de melhorar ou reduzir esse quadro de<br />

miséria. É esse quadro que irá compor o que chamamos de experiência<br />

urba<strong>na</strong> referente aos jovens das classes populares e que<br />

se realizará no imaginário disposto no rap e no grafite, como se a<br />

cidade secretasse uma textura sonora, onde a rua seria um rico<br />

tecido de sons e imagens, um ponto em aberto.<br />

O movimento Hip Hop em Ma<strong>na</strong>us aparece concomitantemente<br />

aos processos de desenvolvimento da sociedade<br />

tecnológica <strong>na</strong> qual estão presentes as condições de possibilidades<br />

da sua composição e nesse sentido pode ser articulado a partir<br />

de três elementos: tecnologia, música e sociedade.<br />

Em Ma<strong>na</strong>us este movimento também foi arquitetado <strong>na</strong><br />

cadência (e <strong>na</strong> decadência) urba<strong>na</strong>, transformando produtos<br />

tecnológicos em fontes de prazer e poder. São os filhos e herdeiros<br />

de um modelo de desenvolvimento que sempre operou com<br />

enormes prejuízos sociais para as camadas populares, escamoteando<br />

suas reais intenções e processos, mas que incluem em suas<br />

músicas essas marcas da cidade <strong>global</strong> mostrando uma forma de<br />

resistência e crítica a esse processo.<br />

Sou pobre, sou favelado/Mas não sou ladrão.<br />

Roubaram minha esperança/Levaram o meu sonho de criança,<br />

Mas não fui derrotado, ludibriado./Do meu lado tá cheio de aliado.<br />

Não sou ouro nem prata,/Sou valente feito galo de rinha,<br />

Perso<strong>na</strong> non grata,/Criado no xibé de farinha,<br />

Tomando açaí, Comendo jaraqui...<br />

Sou forte feito Ajuricaba, Sou cobra que pica,<br />

Tucandeira que ferra ...<br />

Crime Organizado, por Sidney Aguiar e Manuel Frank.<br />

69


A Zo<strong>na</strong> Franca aparece como fonte de produção e avivamento<br />

das contradições e dos conflitos estruturais resultantes do<br />

processo de expansão capitalista <strong>na</strong> Amazônia, deslocados estrategicamente<br />

para o fundo da ce<strong>na</strong> através de medidas paliativas<br />

que a todo custo dissimulam o enorme prejuízo humano, e que por<br />

um longo tempo servirá para sustentar grupos políticos tradicio<strong>na</strong>is<br />

e autoritários.<br />

A cidade flutuante e o seu processo de remoção é uma<br />

materialização dessas medidas aliadas a outras de pouca valia,<br />

pelo menos para aqueles que realmente precisavam. Estas medidas<br />

acabam por apagar e confundir elementos importantes da<br />

cultura tradicio<strong>na</strong>l que sucumbia tragicamente às intenções e processos<br />

do capitalismo <strong>global</strong>, como se enfatizassem propositalmente,<br />

a pouca ou nenhuma importância desses valores e representações<br />

das populações amazônicas e que acabavam por se<br />

afirmar como marca positiva (do esquecimento dos traços culturais),<br />

e claramente revelada no esquecimento proposital dos meios<br />

de comunicação da época.<br />

Uma articulação incongruente 21 de padrões da sociedade<br />

industrial com uma experiência pré-capitalista ou tradicio<strong>na</strong>l. Este<br />

fato suscita uma questão importante a ser considerada em relação<br />

à análise da categoria caboclo, ou seja, a não-definição: o<br />

caboclo é aquele que está <strong>na</strong>s franjas, <strong>na</strong>s fronteiras da<br />

modernidade, o que estava antes da modernidade, o que é, de<br />

certo modo, contrastante com a modernidade.<br />

Esta categoria não é ape<strong>na</strong>s uma categoria relacio<strong>na</strong>l, mas<br />

antes de tudo, intersticial, intervalar, uma categoria mediadora<br />

entre o dentro e o fora, o interior e o exterior. Mas, ainda que<br />

conceitualmente, imprecisa e politicamente não-situada,<br />

deslocada entre fronteiras e margens, exatamente por isso pode<br />

permitir melhor o exercício de autorreflexividade sobre o contexto<br />

amazônico e a constituição de seus sujeitos.<br />

21 Esse deslocamento traumático, do lugar de origem para o espaço urbano já está<br />

expresso <strong>na</strong> década de 1960, <strong>na</strong>s falas de João do Vale e Zé Kéti.<br />

70


Se o caboclo não é uma categoria étnica, no sentido estrito<br />

do termo, é no jogo da diferença que ele é constituído, assim<br />

como outros sujeitos/objetos antropológicos. Como diferença, a<br />

identidade cabocla é uma fronteira sempre em movimento – de<br />

expansão ou retração –, nunca é igual a si mesmo, sempre em<br />

transformação 22 .<br />

Nesse movimento, a busca de tor<strong>na</strong>r-se outro, se abre um<br />

espaço de reflexividade: ao dar significados à sua experiência de<br />

margens e movimentos, o caboclo pode enfim, auto-constituir<br />

como uma fala, ao mesmo tempo heterogênea e autônoma, local<br />

e <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, singular e plural. Afi<strong>na</strong>l “não há melhor discurso sobre a<br />

identidade do que aquele que se enraíza <strong>na</strong> incessante (e inevitável) transformação.”<br />

(Polar 2000: 304)<br />

Em relação à (trans)formação de um imaginário urbano,<br />

podemos articular com as linhas propostas no ensaio de Ernesto<br />

Re<strong>na</strong>n Freitas Pinto e Lucilene Ferreira de Melo, em que consta<br />

uma reflexão sobre construções imaginárias que fazem os imigrantes<br />

rurais, <strong>na</strong> cidade, bem como da re-elaboração de seus<br />

modos de vida e de suas determi<strong>na</strong>ções implicadas <strong>na</strong>s possíveis<br />

formas de reconstruções de suas identidades.<br />

Este enfoque relacio<strong>na</strong> as construções imaginárias com as<br />

atribuições de identidade, visto que eles reconhecem, no processo<br />

migratório, uma re-elaboração de modos de vida e seus<br />

referenciais. Estes autores procuram sobretudo identificar nessas<br />

formações culturais (hibridização) os pontos de igualdade e<br />

diferenças, bem como articulam uma leitura a partir desses códigos<br />

e referenciais.<br />

De um lado os motivos da migração estão relacio<strong>na</strong>dos ao<br />

forte fascínio exercido pela cidade aliado às dificuldades existentes<br />

no lugar, tal como consta <strong>na</strong> análise desenvolvida <strong>na</strong> investigação<br />

de João Pinheiro Salazar em sua dissertação de mestrado<br />

intitulada O abrigo dos deserdados: estudo sobre a remoção dos morado-<br />

22 “Não há melhor discurso sobre a identidade do que aquele que se enraíza <strong>na</strong> incessante e<br />

inevitável transformação.” (Polar, 2000: 304)<br />

71


es da cidade flutuante e os reflexos da Zo<strong>na</strong> Franca <strong>na</strong> habitação da<br />

população de baixa renda em Ma<strong>na</strong>us.<br />

A imigração, nesses moldes, transforma-se em uma estratégia<br />

de sobrevivência, por constituir-se <strong>na</strong> busca de melhor<br />

condição de vida, da necessidade de sobreviver, ou seja, a<br />

pressão da exclusão conduz ao processo migratório. (Freitas<br />

Pinto, Ernesto Re<strong>na</strong>n e Melo Lucilene Ferreira de: 2003:17)<br />

Com isso se desdobra um efeito ideológico, no sentido em<br />

que a questão é posta como símbolo da modernidade ou progresso.<br />

Pode ser entendido, por um lado como forma de justificar para<br />

si, a saída do lugar de origem e a desconsiderar que o deslocamento<br />

de um lugar para o outro não significa o desaparecimento da<br />

exclusão a que estão submetidos. Por outro lado, pode ser entendido<br />

como o espaço do imaginário em liberdade que rompe os limites<br />

do real, criando um tempo efêmero e extraordinário.<br />

Em entrevista citada no mesmo artigo, podemos sentir o<br />

fascínio extraordinário que a cidade exerce, bem como compreender<br />

o que significa ser e viver <strong>na</strong> cidade, bem como de marcas<br />

objetivas do que chamamos de uma experiência urba<strong>na</strong>.<br />

Aqui, reconhecida como parte do imaginário urbano. Estes autores<br />

consideram que a decisão de migrar está de certo modo<br />

subjacente a uma atitude de resistência às privações a que estão<br />

inseridos, em uma luta pelo controle de sua própria história,<br />

mesmo marcada por uma tendência ideológica.<br />

É importante a consideração de que <strong>na</strong> relação que passa a<br />

se constituir no novo lugar social, está implicado um processo de<br />

reconstrução de vida mediante uma série de situações experimentadas<br />

no cotidiano que desencadeiam alterações profundas <strong>na</strong>s representações<br />

e <strong>na</strong>s formas de sociabilidades do lugar escolhido.<br />

Nesta relação estão articuladas as condições materiais, bem<br />

como a trama de significados, produção de si<strong>na</strong>is, expressão concreta<br />

de subjetividade, vinculada à história do lugar social. Consideramos<br />

esta leitura como indicativo importante para compre-<br />

72


ensão da trama complexa que está posta <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas sobre a<br />

cidade e sobre o cotidiano <strong>na</strong> cidade.<br />

Da mesma forma, as expressões artísticas do Hip Hop, em<br />

especial o rap e o grafite são elementos significativos para se compreender<br />

algumas facetas do cotidiano <strong>na</strong> cidade e representam, sobretudo,<br />

uma <strong>na</strong>rrativa da experiência de viver <strong>na</strong> cidade, aqui chamado<br />

de experiência urba<strong>na</strong>.<br />

Experimentar a cidade em seu curso e sua temporalidade, com<br />

suas lutas silenciosas, conflitos enviesados <strong>na</strong>s ruas, vielas e becos,<br />

uma cidade cindida e recomposta em fragmentos de culturas e identidades<br />

que ela teima em ocultar. É, sobretudo, uma chave para se<br />

compreender o imaginário sobre a cidade, principalmente o que diz<br />

respeito à juventude. Além do que aponta para marcas distintivas<br />

entre as temáticas que são apresentadas pelo movimento Hip Hop,<br />

seja no grafite, seja no rap.<br />

Em Ma<strong>na</strong>us as temáticas apresentam uma profunda preocupação<br />

com o progresso, a tecnologia, e a ecologia, bem como<br />

com a condição social e política do índio, que não está inclusa<br />

<strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas do movimento em outras capitais. Entendemos<br />

que isto representa uma enorme capacidade da cultura juvenil<br />

em adaptar-se, metamorfosear-se em diferentes contextos.<br />

Processos de <strong>global</strong>ização são revelados de modo particular<br />

e acentuados <strong>na</strong>s grandes cidades, lugar onde se cruzam relações,<br />

processos de todos os tipos, dando forma diferenciada e imprimindo<br />

a marca da multiplicidade, pluralidade e polifonia. O Hip Hop<br />

Ma<strong>na</strong>us, apresenta em suas <strong>na</strong>rrativas, uma crítica social posicio<strong>na</strong>da<br />

a partir de elementos tradicio<strong>na</strong>is, bem como de marcas da sociedade<br />

<strong>global</strong> e seus processos tecnológicos.<br />

O artigo de Tricia Rose (1997), intitulado Um estilo que ninguém<br />

segura: política, estilo e a cidade pós-industrial no Hip Hop, é esclarecedor<br />

em relação a esta experiência juvenil no palco das grandes metrópoles<br />

e a este estilo cultural que foi arquitetado no coração da decadência<br />

urba<strong>na</strong> que transformou os produtos tecnológicos, que se<br />

acumularam como lixo <strong>na</strong> cultura e <strong>na</strong> indústria, em fontes de prazer<br />

e poder. Nesse sentido o Hip Hop duplicou e resignificou a experiên-<br />

73


cia da vida urba<strong>na</strong> apropriando-se simbolicamente dos instrumentos<br />

tecnológicos e dos espaços da cidade através de seus si<strong>na</strong>is e<br />

marcas de uma crítica social. Eles grafitaram muros, prédios, transformando-os<br />

em imensos painéis. Fizeram das ruas, um território,<br />

um centro provisório para diversas expressões juvenis, um espaço<br />

pedagógico e de inventividade.<br />

Os primeiros dançarinos de break, inspirados <strong>na</strong> tecnologia,<br />

elaboraram suas danças <strong>na</strong>s esqui<strong>na</strong>s e <strong>na</strong>s ruas. A identidade<br />

eletrizante e robótica da dança - com suas transformações e<br />

caracterizações, prenunciou o efeito fluido e chocante da<br />

metamorfose. Os Djs, que espontaneamente iniciaram as festas<br />

<strong>na</strong>s ruas ao adaptar mesas de som e alto-falantes provisórios<br />

nos postes de luz, revisaram o uso central das vias públicas ao<br />

transformá-las em centros comunitários livres. Os rappers se<br />

apoderaram dos microfones e os usaram como se a amplificação<br />

fosse uma fonte de vida. (TRICIA ROSE: 1997)<br />

A imagi<strong>na</strong>ção do Hip Hop não pode ser considerada fora<br />

do contexto da sociedade tecnológica, e por isso, escolhemos<br />

como recorte temporal o momento posterior a instalação da Zo<strong>na</strong><br />

Franca de Ma<strong>na</strong>us, que representa a livre passagem dos instrumentos<br />

e marcas dessa sociedade; a tecnologia acompanhada dos<br />

ruídos e das promessas dessa sociedade. É o fascínio pelo novo,<br />

pelo brilho do progresso, mas concomitantemente ao acirramento<br />

do processo de esquecimento e opressão das formas de vida<br />

tradicio<strong>na</strong>is, seja em relação aos grupos indíge<strong>na</strong>s, seja em relação<br />

àqueles que moram <strong>na</strong>s cidades interiora<strong>na</strong>s.<br />

O Hip Hop aparece como possibilidade de expor a gravidade<br />

dessas novas condições de vida, bem como das novas formas<br />

de opressão, embora a cidade de Ma<strong>na</strong>us, indicasse si<strong>na</strong>is de urbanização<br />

já no início do século XIX, cuja aceleração definitiva<br />

desse processo começa somente com a implantação da Zo<strong>na</strong> Franca<br />

em 1967, decretada pela Lei n. 288, processo que esfacela os<br />

elementos e as marcas tradicio<strong>na</strong>is. Significa objetivamente que<br />

a implantação da Zo<strong>na</strong> Franca ocasionou profundas modifica-<br />

74


ções no âmbito da subjetividade, elemento integrante da experiência<br />

urba<strong>na</strong>, constituída <strong>na</strong>s marcas do cotidiano da cidade em<br />

suas diferentes vozes, sentidos e matizes.<br />

Retomando a questão da experiência urba<strong>na</strong>, entendemos<br />

que esta se constitui de forma mais acentuada no momento em<br />

que acontece uma demonstração contundente do alto custo social<br />

da Zo<strong>na</strong> Franca de Ma<strong>na</strong>us, bem como dos surtos de desenvolvimento<br />

que antecederam este momento.<br />

É sobre esses fracassos e sangrias que se constrói o cenário<br />

das <strong>na</strong>rrativas apresentadas pelo Movimento Hip Hop Ma<strong>na</strong>us.<br />

Esta face até então somente era mostrada por alguns poucos escritores<br />

margi<strong>na</strong>is, sendo apresentado somente à face maquiada<br />

de uma capital que a todo custo ansiava por estrangeirar-se, esconder-se<br />

para se manter enquanto posse, enquanto garantias de<br />

poder simbólico. Ocorre que com o advento da Zo<strong>na</strong> Franca, a<br />

cidade transbordou para todos os lados, em verdadeiros aglomerados<br />

populares.<br />

Nesse período, não se pode chamar de bairro o que se vê em<br />

São Raimundo, ou <strong>na</strong> Raiz, <strong>na</strong> Compensa, muito menos no Coroado<br />

e Cidade das Palhas. Mesmo os conjuntos habitacio<strong>na</strong>is fi<strong>na</strong>nciados<br />

pelo BNH, que são verdadeiros exemplos de como não se<br />

deve praticar a urbanização, onde a especulação e a má fé dos<br />

construtores juntaram-se à falácia das casas populares, formando<br />

uma monstruosa simbiose de desrespeito ao morador potencial e<br />

de completa falta de escrúpulo social. O que eufemisticamente se<br />

batizou por bairros são imundas favelas e guetos dos retirantes do<br />

interior. Essa gente não pertence à Zo<strong>na</strong> Franca a não ser como<br />

mão de obra dócil e barata. (SALAZAR: 1985)<br />

De acordo com fontes indicadas <strong>na</strong> dissertação de João Pinheiro<br />

Salazar em 1979, o CNPq através da coorde<strong>na</strong>ção de Avaliação<br />

da Tecnologia, mostrou que ao lado da distância e da ausência<br />

de serviços básicos, os moradores se ressentem de um eficiente<br />

sistema de transportes urbanos.<br />

De modo geral as favelas de cidade de Ma<strong>na</strong>us surgiram<br />

próximo aos conjuntos habitacio<strong>na</strong>is e acabaram por se trans-<br />

75


formarem em verdadeiros bairros. São áreas para onde se dirigem<br />

os imigrantes do interior do estado. Essas habitações se caracterizavam<br />

pela elevada densidade familiar, alto índice de insalubridade,<br />

poucas condições de higiene e limpeza, estando sujeitas à<br />

proliferação de doenças infecto-contagiosas.<br />

A grande concentração populacio<strong>na</strong>l estava ligada diretamente<br />

a grande atração exercida pela capital, às possibilidades de<br />

emprego, e a sedução do ganho fácil, ocorrência que ocasionou<br />

graves problemas, refletidos, sobretudo, no crescimento de favelas,<br />

aumento nos índices de violência e crimi<strong>na</strong>lidade, crises de<br />

abastecimento, formação de um mercado informal, etc. Estas são<br />

as to<strong>na</strong>lidades apresentadas pelo quadro imagético da cidade e que<br />

constituirão os traços da crítica e do modelo ético/estético apresentado<br />

pelo movimento local.<br />

Os primeiros si<strong>na</strong>is da cultura Hip Hop, foram reconhecidos<br />

e introduzidos <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> urba<strong>na</strong> de Ma<strong>na</strong>us a partir da década<br />

de 80. O conhecimento do break se deu principalmente através<br />

dos meios de comunicação, em particular da televisão, como também<br />

de trocas de informações comuns nos encontros entre jovens<br />

que comunicavam a nova moda surgida em que os dançarinos<br />

se contorciam como se tentassem imitar movimentos<br />

robóticos. Era verdadeiramente a insinuação da sociedade<br />

tecnológica, que se fazia presente, através de filmes de ficção<br />

como se demonstrasse enfaticamente um novo espírito, uma nova<br />

subjetividade, uma nova experiência.<br />

Na época eu ainda morava no interior do Amazo<strong>na</strong>s e quando<br />

vinha para a capital, era comum encontrar em pontos estratégicos<br />

da cidade um círculo de jovens que se contorciam em uma<br />

sonoridade que simulava ruídos tecnológicos e que escapavam<br />

de enormes caixas eletrônicas com efeitos de luzes coloridas. Não<br />

compreendia o que essas ações comunicavam e mesmo se pretendiam<br />

comunicar algo, porém, meus olhos ocupavam-se com<br />

perplexidade dos novos signos em aparecimento. Era como se<br />

fossem robôs e aquilo me impressio<strong>na</strong>va enormemente. Um de-<br />

76


poimento, feito por Amarildo, um ex-dançarino de rua revela a<br />

constituição dessa nova experiência. Diz ele:<br />

Assisti um filme norte-americano chamado Breaking, da<br />

Rolon Globus, vale ressaltar que este já era o segundo<br />

filme do gênero que passou nos cinemas locais. Ao assistir<br />

ao filme fiquei empolgado, pelo ritmo da música e a sua<br />

batida americanizada e mecanizada. Eu sequer tinha um<br />

gravador em casa, então eu ia para casa de um colega que<br />

faleceu em 1986 após sofrer descarga de um relâmpago, <strong>na</strong>s<br />

praias do amarelinho, em Educandos. Em sua casa<br />

passávamos horas trei<strong>na</strong>ndo e isso bem antes de<br />

assistirmos ao filme Breaking. Chegávamos a trei<strong>na</strong>r das<br />

23h às 3h da madrugada. (Amarildo Silva)<br />

Amarildo diz que o primeiro local onde dançou foi um clube<br />

que ainda existe no bairro de Educandos, chamado Grêmio,<br />

que fica <strong>na</strong> Avenida Leopoldo Peres. Lá conheceu outros dançarinos<br />

que se encontravam regularmente aos fi<strong>na</strong>is de sema<strong>na</strong>, a<br />

partir da sexta-feira.<br />

Procurávamosfestas de casamento, aniversário, confraternizações<br />

de família, dentre outras, para nos divertirmos.<br />

Em várias vezes não conhecíamos ninguém, sendo<br />

inicialmente vistos como intrusos, mas quando<br />

começávamos a dançar e agitar a festa, éramos aplaudidos<br />

e convidados a continuar dançando com direito a escolher<br />

o repertório das músicas. Depois disso tínhamos direito<br />

às comidas e bebidas que nos ofereciam como forma de<br />

recompensa. (Amarildo Silva)<br />

Com o passar do tempo, a ce<strong>na</strong> vai se tor<strong>na</strong>ndo mais comum,<br />

bem como os espaços para tais ence<strong>na</strong>ções, tais como o<br />

Cheik Club, que <strong>na</strong> época era considerado por todos que dançavam<br />

como A Casa do Break. Tinha ainda o Bancrevea, que também<br />

dispunha de dançarinos de break, mas segundo Amarildo<br />

77


eles eram conhecidos como amadores, uma vez que os desafios<br />

entre grupos aconteciam mesmo no Cheik Club.<br />

Naquela época não existia nenhum outro lugar onde se reunissem<br />

tantos grupos e vários estilos. Pois quem dançava ou gostava<br />

da dança, sabia que às sextas-feiras, sábados e aos domingos<br />

tinha disputa no Ckeik Club. Vale ressaltar que o ano é 1984.<br />

Existiam vários grupos vindo de anos anteriores e oriundos<br />

da discoteca e do funk, tais como Bee Break, The Golden<br />

Break, dentre outros. Com a chegada definitiva do break, surgiram<br />

grupos como: Os Cobras, Zulu King e outros. Quando se<br />

tornou conhecido <strong>na</strong>s rodas de break no Cheik Club a partir dos<br />

desafios, Amarildo foi convidado a integrar o grupo Zulu King<br />

que anteriormente se denomi<strong>na</strong>va The Golden Break. No mesmo<br />

ano esse grupo foi convidado pela Roseman que era proprietária<br />

de uma academia que funcio<strong>na</strong>va <strong>na</strong> Rua Epaminondas,<br />

próximo à Praça da Saudade.<br />

Um outro grupo foi convidado, o Break Revange e segundo<br />

Roseman o objetivo era promover uma disputa entre dois grupos<br />

de dança, conforme o filme Breaking, além de uma viagem<br />

pela história da evolução das danças. O break através dos dançarinos<br />

e estes dois grupos com a parceria da Academia Roseman<br />

que não pagava os grupos e só se comprometia em ceder o espaço<br />

físico da academia para ensaios, culminou com apresentações<br />

no Teatro Amazo<strong>na</strong>s por três anos.<br />

Com o grupo Zulu King, procura-se contribuir para que<br />

menores não seguissem o caminho da margi<strong>na</strong>lidade, para isso<br />

dançavam em algumas lojas em troca de comida para crianças de<br />

rua que nos acompanhavam.<br />

Nessa época já acontecia a difusão do break e era comum<br />

a apresentação em programas de televisão. A maioria dos dançarinos<br />

residia em diferentes regiões da periferia da cidade. Somente<br />

nessa época surge a linha de ônibus interbairros.<br />

O grupo Zulu King tinha aproximadamente 23 componentes<br />

que moravam em diferentes pontos da cidade. Infelizmente a presença<br />

das drogas já era bastante intensa <strong>na</strong>s noites.<br />

78


Nessa época um dos responsáveis pelo Break era Raidi Rebelo,<br />

que hoje é radialista e ainda trabalha no ramo da música<br />

eletrônica.<br />

Particularmente para mim que conheci o break com<br />

dezesseis anos, foi uma experiência que tirei boas lições, adquiri<br />

experiência de vida e conheci muita gente legal – Diz Amarildo.<br />

1.2. Ma<strong>na</strong>us, anos 1990: o Hip Hop <strong>na</strong> ce<strong>na</strong><br />

O interesse aqui está relacio<strong>na</strong>do com as forças e as histórias<br />

locais articuladas com uma ce<strong>na</strong> mais geral, bem como da<br />

compreensão dessa relação em suas particularidades ou diversidades<br />

presentes <strong>na</strong>s formas de sociabilidades que ace<strong>na</strong>m para<br />

novos empreendimentos culturais.<br />

Procuramos propor uma interpretação sobre as várias metamorfoses<br />

e processos que constituíram uma experiência urba<strong>na</strong><br />

juvenil em Ma<strong>na</strong>us relacio<strong>na</strong>da à estética eletrônica própria<br />

do evento das discotecas e do Hip Hop. Para isso deve-se ter em<br />

conta todos os movimentos de configuração do espaço social<br />

urbano em seus processos de urbanização, articulada com a questão<br />

da formação de grupos e de sub-culturas juvenis, bem como<br />

dos diversos sentidos e segmentações do espaço da cidade.<br />

Nos guetos de New York e Los Angeles, os jovens negros e<br />

latinos se viam obrigados e marcarem simbolicamente seus traços<br />

culturais <strong>na</strong> rua, pois as casas notur<strong>na</strong>s que explodiam com o<br />

som das discotecas não eram espaços acessíveis para a juventude<br />

do gueto. Djs como Kool Herc, imigrante jamaicano trouxe <strong>na</strong> bagagem<br />

um sound system, uma aparelhagem de som para tocar reggae,<br />

era animador de festas, como também a gestação daquilo que iria<br />

se tor<strong>na</strong>r um acontecimento cultural das próximas décadas.<br />

O break dance se tor<strong>na</strong>ria uma das principais expressões da<br />

juventude urba<strong>na</strong> pobre e estigmatizada. Em pouco tempo iria chamar<br />

atenção da indústria do cinema, pequenos produtores de vídeos,<br />

focalizando principalmente as estonteantes expressões corporais<br />

em variações do break, o b. boyn, poppin e lockin entre outros.<br />

79


Os filmes e videoclipes que abordavam esta temática chegaram<br />

rapidamente pela trama do mercado inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, materializada<br />

no empreendimento Zo<strong>na</strong> Franca. Mostravam-se corpos<br />

de contorcendo como uma simulação 23 , um signo sobreposto<br />

a um corpo que parecia não possuir ossos. Eu ainda bastante<br />

jovem, mas <strong>na</strong>s visitas ao centro da cidade, aquela parafernália<br />

toda me instigava a olhar e a observar. Eu parava por um tempo<br />

para ver alguns jovens de características interessantes, que dançavam<br />

ritualmente o som eletrônico que saia de um enorme aparelho<br />

sonoro em forma retangular e cheio de botões e luzes.<br />

Longas metragens como Beat Street, Break Dance e Flash<br />

Dance, traziam jovens simulando movimentos robóticos, rodopiando<br />

com a cabeça no chão, combi<strong>na</strong>do com gestos e malabarismos<br />

fantásticos para olhos não acostumados a este acontecimento.<br />

Astros da música pop america<strong>na</strong>, Michael Jackson e Lionel Ritchie<br />

divulgavam esta nova dança.<br />

Estas performances próprias ao estilo chegaram simultaneamente<br />

às grandes capitais do Sul e Sudeste. Era a realização<br />

prática e simbólica dos processos de <strong>global</strong>ização, e a cidade mostrava<br />

claramente esta relação <strong>na</strong>s mais importantes casas notur<strong>na</strong>s<br />

do centro da cidade da década de 80, a Brilho, Star Ship,<br />

Bancrevea, lugares que corriqueiramente se encontrava moças e<br />

rapazes tentando imitar aqueles passos dos gringos. Posteriormente<br />

o palco foi transferido para o Cheik Club.<br />

O ano de 1984 foi o ápice do break dance, principalmente pela<br />

novela Global, Partido Alto que mostrava um grupo de b. boys vestidos<br />

a caráter com moleton, tênis e rostos pintados. As pistas eram<br />

embaladas pelo som de Afrika Bambaata e da banda alemã Kraftwerk.<br />

Outro espaço importante foi a Praça da Saudade, lugar onde<br />

deze<strong>na</strong>s de jovens se contorciam ao ritmo do grupo Miami Bass,<br />

demonstrando, com isso intimidade com a técnica a força e a<br />

agilidade do corpo.<br />

Os grupos de maior projeção eram os Renegados do Break,<br />

da Zo<strong>na</strong> Leste que ainda estão <strong>na</strong> atividade e os Irmãos Cobras<br />

23 Ver Simulacros e Simulações, de Jean Baudrillard.<br />

80


da Zo<strong>na</strong> Oeste da cidade. Proporcio<strong>na</strong>ram rachas ou disputas<br />

memoráveis <strong>na</strong> história da dança urba<strong>na</strong> de Ma<strong>na</strong>us.<br />

Vale dizer que a ideia de Hip Hop como movimento cultural<br />

composto pelos cinco elementos ainda não era conhecida.<br />

Ape<strong>na</strong>s em 1994, no dia 12 de outubro <strong>na</strong> Boate Mikonos, aconteceu<br />

o <strong>na</strong>scimento do movimento organizado conhecido como<br />

MHM (Movimento Hip Hop Ma<strong>na</strong>us) com a proposta inicial de<br />

reunir os simpatizantes e divulgar essa nova estética.<br />

Nos primeiros anos da década de 90, o rap como expressão<br />

musical ganhava força em São Paulo e no Distrito Federal. Em<br />

São Paulo destacavam-se <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> o Código 13, ND Naldinho,<br />

Duck Jam & Nação Hip Hop, Thaide & Dj Hum, Sampa Crew e<br />

Racio<strong>na</strong>is Mc’s que lotavam os bailes blacks das periferias. Nas<br />

cidades satélites de Brasília surgiam o Câmbio Negro, GOG,<br />

Magreles e Gundart 121, pioneiros no ritmo e poesia no Distrito<br />

Federal. Em Ma<strong>na</strong>us os grupos DMD, Crime Organizado, Vocábulos<br />

Mc’s. Cultura de Rua, Mc He Man, AR-15 e Mc Vappo,<br />

davam os primeiros passos e rimas da nova experiência urba<strong>na</strong>.<br />

Alguns deles se encaminharam para o Gospel, arrebanhados pelas<br />

igrejas evangélicas que cresciam como limbo.<br />

Em 1998 o grupo Crime Organizado grava sua primeira e<br />

única fita demo, Diálogos de Chumbo, uma primeira tentativa de<br />

profissio<strong>na</strong>lização que não surtiu grandes efeitos, atuando em<br />

grande parte <strong>na</strong> organização de encontros e bailes, em especial<br />

<strong>na</strong> Zo<strong>na</strong> Leste e Norte. Mas o MHM sempre reconheceu a importância<br />

de aliar o Hip Hop a ações organizadas <strong>na</strong> comunidade,<br />

para tanto, o MHM realiza esses encontros <strong>na</strong>s associações comunitárias<br />

e escolas públicas. Palestras sobre prevenção, distribuição<br />

de preservativos, filmes educativos e muita música e dança,<br />

por um preço simbólico, quase sempre <strong>na</strong> forma de alimentos<br />

para distribuição <strong>na</strong> comunidade.<br />

Para Sidney é difícil enquadrar o MHM como um movimento<br />

organizado sistematicamente, mas em sua maioria, o movimento<br />

são de jovens de baixo poder aquisitivo, que quase não dispõem<br />

de meios para participar dos bens culturais da sociedade abrangente.<br />

81


A grosso modo, esses jovens procuram integrar-se como<br />

um referencial de autoafirmação perante o grupo e a comunidade.<br />

O que não impede de mostrar sua melhor roupa da moda<br />

urba<strong>na</strong> bem como de seu par de tênis de grife estrangeira, ou<br />

ainda inventar formas de socializar-se pelo estilo, pela tribo.<br />

O MHM completou no ano de 2004, dez anos de ação,<br />

mas ainda caminha com recursos escassos e dificuldades de encontrar<br />

espaços. Na avaliação de um dos integrantes desse movimento,<br />

admite um refluxo no movimento, talvez pela descoberta<br />

das cifras milionárias das gravadoras que se incumbe de criar uma<br />

embalagem de luxo para o rap <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Diz Sidney Aguiar: “Apesar<br />

de tudo isto, o Hip Hop sobrevive, em Ma<strong>na</strong>us, ainda menino, mas<br />

cheio de experiências.”<br />

Os Cabanos é um dos grupos mais importantes e de maior<br />

expressão <strong>na</strong> cidade de Ma<strong>na</strong>us, seja pela sua história, seja pela<br />

sua crítica constante, pois até o nome do grupo resultou de um<br />

estudo do movimento denomi<strong>na</strong>do de Caba<strong>na</strong>gem o que serviu<br />

de base para que o grupo musical de rap Cabanos tivesse sua<br />

formação em janeiro de 1999 <strong>na</strong> Zo<strong>na</strong> Leste de Ma<strong>na</strong>us.<br />

O grupo Cabanos expõe em suas letras, os ideais contidos<br />

nesse movimento, principalmente em relação à dignidade e ao respeito<br />

pelos mais pobres, sobretudo seu relato contemporâneo diz<br />

respeito aos dramas vivenciados <strong>na</strong>s periferias de Ma<strong>na</strong>us.<br />

Suas músicas são produzidas a partir de uma junção do<br />

funk, soul estadunidense da década de 1970, passando pelo rockprogressivo<br />

germânico de Amön Dul e do psicodélico Donovan<br />

da década de 1960, bem como do brasileiro Sérgio Mendes e de<br />

toda a musicalidade expressa por artistas amazonenses como<br />

Raízes Caboclas, Chico da Silva, Antonio Pereira, Márcia Siqueira,<br />

Grupo A Gente, entre outros grupos de vertentes indíge<strong>na</strong>s.<br />

O seu novo CD A Ideia Não Morre é uma produção autoral<br />

do de rap grupo Cabanos lançado no evento multimídia de artes<br />

integradas “Na Batida do Rap”, no Ao Mirante Espaço Cultural<br />

em 01 de junho de 2008. Uma história que segundo seus protagonistas<br />

começou há mais de 20 anos, onde viveram o Hip Hop<br />

82


intensamente, transformando-o em uma eficaz linguagem que<br />

representa toda a periferia da cidade de Ma<strong>na</strong>us.<br />

1.3. A <strong>na</strong>rrativa urba<strong>na</strong> como história de si mesmo ou a<br />

simultaneidade do movimento Hip Hop 24<br />

A experiência não é nem o vazio que espera ser preenchida<br />

com o significado, nem o plasma informe a que<br />

profissio<strong>na</strong>is devem dar configuração. Pelo contrário, ela é<br />

interpretada e compreendida pelos que são dela<br />

impreg<strong>na</strong>dos. (BAUMAN: 1998)<br />

Incluímos aqui um exercício comparativo feito através relatos<br />

sobre o processo de formação histórica do Hip Hop a fim de<br />

demonstrar sua simultaneidade e multiplicidade de arranjos estéticos<br />

que se confirmam pela base comum da <strong>na</strong>rrativa, tanto em<br />

relação a região Nordeste, Norte e <strong>na</strong> Grande São Paulo.<br />

Possibilita que se compreenda de que maneira esses atores<br />

(que também são autores de si), combi<strong>na</strong>m uma série de elementos<br />

de imagens e sons, para demarcarem sua existência e estilo.<br />

Representa com isso a exigência de um questio<strong>na</strong>mento sobre o<br />

papel tradicio<strong>na</strong>l do intelectual, aqueles que diziam a verdade<br />

àqueles que não a viam e em nome daqueles que não podiam<br />

dizer. Uma descoberta que por um longo período foi traumática<br />

para os intelectuais: a dura verdade de que nem sempre se precisa<br />

deles para saber ou para dizer.<br />

Para Angeli<strong>na</strong> Peralva (2000), a produção de si mesmo como<br />

indivíduo apoia-se a partir de três elementos complementares:<br />

pressupõe a referência a um grupo, que funcio<strong>na</strong> como base de<br />

apoio para a experiência individual. Pressupõe também, sob diversas<br />

formas, o engajamento em uma modalidade qualquer de<br />

24 Essas <strong>na</strong>rrativas foram transcritas do Primeiro Seminário de Hip Hop da Paraíba<br />

em 2003<br />

83


isco, enfim, uma representação conflitiva ou culturais portadoras<br />

de alguma forma de negação dessa autonomia.<br />

Isto tor<strong>na</strong> perceptíveis as novas formas de ação e de luta<br />

da emancipação e afirmação de si mesmo, um aceno foi claramente<br />

percebido no Primeiro Seminário de Hip Hop da Paraíba<br />

em que participei como facilitador de um grupo de debates. Neste<br />

relatório pude perceber questões sobre as perspectivas do<br />

movimento, envolvendo de um outro lado uma avaliação de suas<br />

atividades <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> cultural e política da cidade, além dos vários<br />

desacordos entre os membros ativos desse congresso possibilitando<br />

assim uma marca empírica de seu caráter múltiplo.<br />

Este relatório deu suporte para uma reconstrução da história<br />

do movimento a partir de seus próprios atores, conforme<br />

segue a escrita.<br />

Segundo o rapper Alê da Guerra Santos, a história do movimento<br />

Hip Hop <strong>na</strong> Paraíba, especialmente em João Pessoa, se<br />

inicia em 1984, já com o paralelo marcante entre a visão comercial<br />

dos empresários e a carência cultural de informação dos jovens.<br />

O ponto de encontro era no centro da cidade, mais precisamente<br />

<strong>na</strong> calçada da Jet-Set, uma antiga loja de confecção que<br />

ditava a moda <strong>na</strong> época. Situada <strong>na</strong> praça do viaduto Damásio<br />

Franca, a loja patroci<strong>na</strong>va os rapazes, dando tênis, calças jeans,<br />

camisas, bonés, luvas, e assim promovia sua grife. Os b-boys dançavam<br />

dentro e fora da loja atraindo a atenção de todos que passavam<br />

de segunda a sábado. A trilha sonora era Áfrika Bambataa<br />

com o clássico Planet Rock, Michael Jackson com Triller, Ni<strong>na</strong>n<br />

Hagan com New York, New York, entre outros hits. A turma literalmente<br />

fechava o trânsito para dançar e promover concursos<br />

de break, existindo até mesmo um intercâmbio entre Recife, João<br />

Pessoa e Natal. Porém o conhecimento básico da cultura ninguém<br />

tinha.<br />

O termo Hip Hop ainda não era popular, a televisão e as<br />

revistas falavam de uma novidade surgida nos guetos novaiorquinos,<br />

que misturava música e dança. O break era visto como<br />

uma nova moda das ruas, popularizada pelos concursos de dan-<br />

84


ças feitos <strong>na</strong>s ruas, em festas típicas de bairros e até mesmo no<br />

aniversário da cidade.<br />

Do grupo formado para a Jet-Set, uma figura de destaque<br />

era o D<strong>na</strong>rt Nóbrega, que até hoje, segundo Alê, é o rapaz que<br />

mais venceu concursos de break, dançando <strong>na</strong> categoria individual<br />

e impressio<strong>na</strong>ndo pelo seu estilo e concentração. Nessa época,<br />

segundo relato, Alê estudava em uma escola no bairro de<br />

Tambiá, a Escola Estadual Epitácio Pessoa e ia de segunda a<br />

sábado à calçada do viaduto. Conheceu o break pela televisão<br />

identificando-se imediatamente como o novo estilo.<br />

Sempre gostei de dançar, e foi lá <strong>na</strong> calçada do centro que eu<br />

encontrei o D<strong>na</strong>rt, a gente ficou amigo e sempre tava se<br />

encontrando <strong>na</strong>s festas, como toda novidade tem o seu<br />

ponto alto o break também teve o seu auge, eu também<br />

cheguei a ganhar um concurso <strong>na</strong> Praça da Independência –<br />

aonde era realizado o aniversário da cidade.(Alê da Guerra<br />

Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Em 1984, a Rede Globo de Televisão aproveitou o momento<br />

e para elevar a sua audiência mostrando <strong>na</strong> abertura da novela<br />

Partido Alto, um grupo de b-boys dançando break, o que não impediu<br />

que o break tivesse um refluxo significativo em todo o Brasil, uma<br />

diminuição de sua popularidade, sua presença em comerciais de<br />

televisão, jor<strong>na</strong>is, revistas etc. Com isso, os concursos de dança<br />

foram perdendo espaço para outras tendências como a ginástica<br />

aeróbica, o jazz, reduzindo o movimento <strong>na</strong> calçada do centro e<br />

desestimulando o patrocínio do empresário que aos poucos mudava<br />

o som e o ambiente da loja. Os jovens passaram a se encontrar casualmente<br />

em e peque<strong>na</strong>s festas <strong>na</strong> casa de amigos e conhecidos.<br />

Em 1988, foram lançados em São Paulo os primeiros discos<br />

de rap <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l que tinham uma tendência politizada com<br />

críticas sociais. Só então o Brasil inteiro conheceu a coletânea<br />

Hip Hop Cultura de Rua, que estourou em audiência <strong>na</strong>s rádios e<br />

TV’s, principalmente a música “Corpo Fechado” do rapper Thayde,<br />

que já escrevia letras desde 1986. Simultaneamente no Rio de<br />

85


Janeiro, era lançada uma outra forte tendência do rap, o Miami<br />

Bass, que não trazia grandes preocupações políticas, sendo representado<br />

por MC Batata com a “Feira de Acari”.<br />

Em João Pessoa os jovens simpatizantes da tendência, também<br />

começaram fazer seus improvisos, cantando não só trechos<br />

de outros rappers, mas criando suas próprias rimas. Diz ele:<br />

Eu já fazia dupla com o meu irmão Amon-há, daí<br />

convidamos o Joel – um amigo de infância pra montarmos<br />

um grupo: o Jampa Rap (O rap de João Pessoa), isso foi<br />

em 86, e nossas músicas eram politizadas, agente sonhava<br />

em gravar letras como “Diga não a burguesia’’ de Amonhá,<br />

e “Menor Abando<strong>na</strong>do” de minha autoria. (Alê da<br />

Guerra Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Conta Alê que com a ascensão do rap <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, os empresários<br />

de bailes locais sentiram a força dos dois estilos musicais, e<br />

resolveram contratar artistas cariocas para se apresentar em João<br />

Pessoa, investindo <strong>na</strong> tendência Miami Bass, acontecendo assim o<br />

grande show no Clube Astrea com o sucesso <strong>na</strong> época “Rap do<br />

Trem” que trazia uma letra machista, além do grupo Sampa Crew<br />

que também se apresentou. O show serviu para um reencontro<br />

dos jovens que frequentavam o calçadão no viaduto. Lá estavam<br />

muitos b-boys da ce<strong>na</strong> local. Em João Pessoa se assistia e se sentia<br />

o sucesso da coletânea ignorantemente batizada de “Funk Brasil”<br />

e produzida pelo DJ Malboro, Miami Bass, e Funk Melo.<br />

O empresário local Marcos Leite, da Equipe Flesson, e o<br />

DJ Silvio, começaram a despertar os jovens que dançavam break<br />

e faziam rimas para produzirem um disco. A proposta do disco<br />

era com a tendência Miami Bass, com uma base rápida e pesada,<br />

com letras de duplo sentido, sem maiores preocupações sociais.<br />

Essa tendência vivia seu auge e influenciava a juventude local.<br />

Convidaram então a dupla D<strong>na</strong>rt e o Paulinho para gravar esse<br />

estilo que faria parte do primeiro disco de rap de João Pessoa<br />

“Funk Peso Brasil” e que representa, sem dúvida alguma, um<br />

marco <strong>na</strong> história do Hip Hop da Paraíba.<br />

86


O sucesso desse registro em vinil se deu com o “Rap da<br />

Setusa” letra que conta a história de dois amigos dentro de um<br />

ônibus lotado, que saem a fim de encontrar diversão <strong>na</strong> noite de<br />

João Pessoa visitando bairros e clubes populares da época a exemplo<br />

do DCB (no Castelo Branco, Fantástico Clube), em<br />

Mangabeira, Clube Lambada no Cristo, Valenti<strong>na</strong> Figueiredo etc.<br />

Nessa época também era bem expressivo o número de jovens<br />

envolvidos em brigas entre gangues.<br />

Eu lembro que um dia o D<strong>na</strong>rt me contou que uns caras<br />

de uma gangue – não vou citar o nome –, chegaram até<br />

ele dizendo que ouviram o disco e gostaram, mas queria<br />

que a dupla tivesse citado o nome de sua gangue <strong>na</strong> letra,<br />

Di<strong>na</strong>rt ironicamente respondeu: eu não posso falar de<br />

todos <strong>na</strong> letra se não pode sujar.(Alê da Guerra Santos,<br />

do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

O disco Funk Peso Brasil foi tocado <strong>na</strong> maioria das rádios<br />

AM e FM locais, rendendo matérias para jor<strong>na</strong>is, TVs, shows em<br />

programas de calouros Jota Ferreira e Tony Show, programas exibidos<br />

para toda a Paraíba. As apresentações da dupla no Espaço<br />

Cultural serviram mais uma vez para reunir os jovens que estavam<br />

afastados e desarticulados.<br />

Em 1986 os problemas do movimento Hip Hop de João<br />

Pessoa eram os seguintes: a falta de um novo ponto de encontro<br />

para as discussões fundamentais como a importância da união<br />

entre os integrantes do movimento e a troca de informações sobre<br />

os elementos da cultura, pois não só em 86 a maioria só pensava<br />

em evoluir o break, e mesmo com o primeiro registro de rap<br />

poucos se davam conta de se organizar. Frequentavam o point do<br />

Espaço Cultural José Lins do Rego nomes como: Cazuza, Mazuk<br />

e os artistas plásticos Júnior Mago e Wagner. Esses eram algumas<br />

das pessoas que frequentavam a Fundação Espaço Cultural, <strong>na</strong>s<br />

tardes de sábados e domingos. Mesmo com toda a correria dos<br />

shows, D<strong>na</strong>rt e Paulinho – a dupla mais famosa do Hip Hop local<br />

– apareciam no “Espaço” para dar uma força.<br />

87


De vez em quando éramos literalmente postos pra fora do<br />

local, com aparelho de som, discos e revistas, a rapaziada<br />

ficava decepcio<strong>na</strong>da, éramos realmente desorganizados,<br />

geralmente eram eles quem recorria à direção do Espaço<br />

Cultural para reivindicar o nosso direito. Em uma dessas<br />

tardes, realizava-se o “Domingo no Espaço” uma idéia que<br />

partiu da direção da fundação, a rapaziada montou uma<br />

“bancada”, e usando um pick-up, um mixer e alguns discos,<br />

fizeram uma das maiores apresentações alter<strong>na</strong>tivas que eu<br />

já vi, com muito break e improvisos, D<strong>na</strong>rt e Paulinho e<br />

uma figura nova <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> – o Dj People, eu ainda mantinha<br />

o Grupo Jampa Rap, mas no geral não estávamos tão unidos,<br />

e mais uma vez fomos convidados a deixar o Espaço Cultural,<br />

então muita gente deixou de freqüentar o local pouco a pouco.<br />

(Alê da Guerra Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Nota-se o percurso de altos e baixos que o movimento levou<br />

para consolidar-se, sempre a partir de diversas tentativas,<br />

até que num dos sábados realizados no Espaço Cultural, conta<br />

Alê que Walmir Wass convidou uma parte da rapaziada para<br />

montar um único grupo, que seria a Tribo Éthnos, e precisava de<br />

alguns b-boys para completar a formação, as ideias de Walmir faziam<br />

sentido, ele queria unir a turma e assim organizar a ce<strong>na</strong>,<br />

então oficialmente ele conseguiu uma sala no Espaço Cultural<br />

para ensaiar suas coreografias, daí as coisas foram acontecendo<br />

ao mesmo tempo – enquanto alguns participavam das ideias de<br />

Walmir, o segundo disco de rap, mantendo a mesma linha Miami<br />

bass, chegava a todas as lojas de discos, e então era a vez do Dj<br />

People, Dj Danilo, Mister Luke, Mc Negão (atual ND’ Negrão), as<br />

músicas do Funk Peso Brasil II, tinham uma variação maior no seu<br />

conteúdo, <strong>na</strong> voz de Danilo, Macho é um Bicho Macho, <strong>na</strong> voz de<br />

People, Funk é Pra Dançar e Não Brigar , <strong>na</strong> voz de ND’ Negrão rap<br />

do Presidente, os artistas fizeram o mesmo percurso do primeiro<br />

disco – jor<strong>na</strong>l, tv, rádio, e não se preocupavam em fortalecer o<br />

movimento, independente de suas carreiras estarem dando certo,<br />

mas a maioria estava fragilizada com toda aquela desintegração.<br />

88


As edições do Funk Peso Brasil foram quatro: o primeiro<br />

com capa fotográfica <strong>na</strong> Praça João Pessoa; o segundo com<br />

enfoque no antigo lixão do Roger; o terceiro disco tem um ponto<br />

de interrogação, os empresários já tinham explorado tudo o que<br />

podiam e realmente não sabiam o que fazer.<br />

Eu, Amon-há e o Joel continuávamos envolvidos com o<br />

projeto do Walmir, participando da sua banda, os ensaios<br />

eram sempre aos sábados pela manhã, mas no Espaço<br />

Cultural alguns b-boys ainda estavam se encontrando, e nessa<br />

época eu lembro que havia uma festa do bairro do Valenti<strong>na</strong><br />

de Figueiredo, como temos parentes que residem lá, eu e o<br />

Amon-há fomos visitar e conferir, acabamos descobrindo<br />

que lá tinha um grupo de rap, os caras faziam o estilo Miami.<br />

Chegando lá Ale Amon-há e Joel fizeram uma apresentação<br />

e conheceram o Dj Adailton, que futuramente se tor<strong>na</strong>ria<br />

um rapper e que, segundo eles, o cara sempre foi humilde e<br />

parecia não ter tanta pretensão. Ele trabalhava com os caras<br />

do Miami Bass, mas, confessou pra gente que a linha dele era<br />

outra, vimos também que mesmo com pouco recurso de<br />

equipamento ele editava bases em fita cassete com a maior<br />

precisão, então fomos até a casa do rapaz, conversamos sobre<br />

uma futura parceria, trocamos informações, e sempre que<br />

íamos ao “Valenti<strong>na</strong>” encontrávamos o Dj Dall, até ele ir<br />

também a nossa casa, o ano era 1988, no fi<strong>na</strong>l da tarde eu<br />

acabei me desentendendo com o parceiro Joel, e isso gerou<br />

a maior confusão, ficamos sem nos falar, comprometendo<br />

assim o Grupo Jampa Rap. Foi decepcio<strong>na</strong>nte tudo aquilo.<br />

(Alê da Guerra Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Essas passagens <strong>na</strong> construção do movimento mostram a<br />

tensão produzida inter<strong>na</strong>mente pela disputa entre os vários estilos,<br />

qual deve prevalecer, além das exigências das gravadoras e<br />

dos empresários do ramo que <strong>na</strong> maioria das vezes impõe o estilo<br />

produzido pelos grupos às suas determi<strong>na</strong>ções, que em algumas<br />

vezes em termos de qualidade artística se tem um resultado positivo<br />

pela experimentação que se acaba tendo que fazer.<br />

89


Sem dinheiro a ce<strong>na</strong> do Hip Hop estava difícil, eles precisavam<br />

de bass, de sampler, de discos, etc., e não conseguiam, só<br />

então tiveram a ideia de ensaiar com instrumentos de percussão,<br />

surge o Ruas V.N.M.B (Ruas Vermelhas, Negras, Mestiças e Brancas),<br />

o Vermelhas, do sangue derramado pelas gangues, as letras<br />

do grupo eram sempre políticas.<br />

Usando percussão acústica, condenávamos o racismo,<br />

criticávamos o abuso de autoridade policial, falávamos de<br />

máfia e corrupção no setor público, e alertávamos os jovens<br />

envolvidos com gangues. O grupo Ruas V.N.M.B eram:<br />

Amon-há, eu Ale da Guerra Santos, o grande-B Duda, Ênio<br />

Boy, Leléo-Bilú, e Raceu – o único branco da banda, nessa<br />

época o Amon-há falou que fazia parte de um grupo de rap<br />

e convidou o Cassiano Pedra a conhecer a rapaziada. (Alê da<br />

Guerra Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Com poucos recursos e apoio, os jovens que insistiam em<br />

fortalecer o estilo, inventavam a partir de si e de suas possibilidades,<br />

formas de produzir sonoridades, bem como de consolidar a<br />

ideia de um movimento organizado e que ainda era desconhecido.<br />

Um fato interessante a comentar aqui é que <strong>na</strong> falta de<br />

recursos para programar um Hip Hop baseado nos aparatos<br />

tecnológicos tradicio<strong>na</strong>is: dj, pic-up, mixer, mc’s, bass, sampler, discos,<br />

passa-se a utilizar instrumentos de percussão, ocasio<strong>na</strong>ndo<br />

com isso uma reinvenção da própria sonoridade e da batida, já<br />

que esta não é a base do Hip Hop tradicio<strong>na</strong>l.<br />

Pedra já mexia com eletrônica e ficou dando um apoio<br />

nessa parte, ele gostava mesmo de rap e dançar, mas faltava<br />

o conhecimento, o compromisso com a história, um dia<br />

Cassiano falou que no bairro onde ele morava e reside até<br />

hoje, tinha uma festa e o grupo podia fazer uma<br />

apresentação, agente tava afi<strong>na</strong>do, tinha ensaiado bastante,<br />

então topamos, curioso é que esse foi o único show do<br />

Ruas V.N.M.B, agente surpreendeu tanto quando agradou<br />

ao público, mas o que queríamos mesmo era fazer rap<br />

tradicio<strong>na</strong>l – Dj, Pic-up, Mixer, Mcs, então o grupo de desfez,<br />

90


o Cassiano Pedra já estava ligado a gente. (Alê da Guerra<br />

Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Nota-se que por trás dessa insistência, os jovens parecem<br />

trazer uma vontade de arte, como se fosse uma necessidade interior<br />

de falar, de <strong>na</strong>rrar sobre os acontecimentos da vida, do cotidiano<br />

e ao mesmo tempo ter um conhecimento da própria história<br />

do movimento, ou como é dito <strong>na</strong> fala acima, é necessário ter<br />

um compromisso com a história.<br />

Queríamos muito formar um verdadeiro grupo de rap, eu e<br />

Amon-há estávamos pensando em um nome, uma frase<br />

que representasse tudo o que acreditávamos, então adotamos<br />

o nome “Justa Causa”, e em seguida convidamos o Cassiano<br />

Pedra para participar. Eu ainda continuava ensaiando músicas<br />

e coreografias com a Tribo Éthnos, pois o grupo tinha a<br />

intenção de gravar um trabalho. Eu já tinha dedicado muito<br />

tempo ao projeto do Walmir, e independente do estilo, eu<br />

botava a maior fé. O Walmir conseguiu reunir o grupo e<br />

viajar até Campi<strong>na</strong> Grande para gravar. (Alê da Guerra Santos,<br />

do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Duas experiências foram feitas, mas somente a segunda<br />

deu certo, sendo lançado então em 1994, Conflito das Marés o<br />

primeiro disco de rap, com a inclusão de temas politizados, ou<br />

questões de ordem prática a que estão submetidos os jovens <strong>na</strong><br />

cidade. Uma tendência musical eclética e com uma edição já<br />

lançada em cd, onde se fazia uma fusão do Hip Hop com o rock,<br />

reggae, reggae mufin, o som do erudito ao oriental. No caso do<br />

movimento Hip Hop <strong>na</strong> Paraíba, particularmente em João Pessoa,<br />

é interessante observar como há certa sintonia com o movimento<br />

em escala <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, com a gravação do primeiro trabalho<br />

de Hip Hop <strong>na</strong> Paraíba (Conflito das Marés) em 1994, uma vez<br />

que a primeira música dos Racio<strong>na</strong>is Mc’s a fazer sucesso em<br />

todo o país e a colocar o movimento em um patamar <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l,<br />

foi O Homem <strong>na</strong> Estrada, feito <strong>na</strong> primeira metade dos anos 1990,<br />

que “explodiu” em todo o país.<br />

91


Eu pretendia me dedicar só ao Justa Causa, tive alguns<br />

desentendimentos com o Walmir, o clima não tava legal e<br />

eu resolvi sair, já tinha dado a minha contribuição a<br />

proposta, a rapaziada continuava realizando festas no<br />

Mercado de Mangabeira, no Centro Comunitário, etc. O<br />

quarteto Justa Causa foi conquistando espaço, despertando<br />

a atenção de muitos e criando polêmica, quando fomos<br />

acusados de promover o racismo, mas <strong>na</strong> verdade<br />

conscientizávamos a juventude negra, incentivando a uma<br />

postura firme diante das injustiças. (Alê da Guerra Santos,<br />

do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

A Justa Causa foi o primeiro grupo de rap a provocar uma<br />

reflexão <strong>na</strong> cabeça da rapaziada, só que segundo Alê, infelizmente<br />

algumas pessoas que acompanhavam o trabalho do grupo <strong>na</strong><br />

verdade não tinham ainda maturidade suficiente.<br />

Ou seja, consciência crítica sobre a questão racial, e reconhecer<br />

de forma <strong>na</strong>tural nossos discursos. O som era pesado,<br />

radical e falávamos a verdade. O pivô da discórdia frente ao grupo<br />

foi um b-boy de nome: Soldado do Bronx, um cara da ce<strong>na</strong> de<br />

Recife, por causa da música: Omissões – o “Justa Causa” teve o<br />

show interrompido, no Centro Comunitário de Mangabeira, e o bboy<br />

interrompeu acusando o grupo de ideias racistas, um marco<br />

<strong>na</strong> história do Hip Hop.<br />

A letra de Omissões fala de um jovem negro de classe média<br />

alta que teve tudo o que o dinheiro pode oferecer, mas desconhecia<br />

a história e a cultura do povo ao qual pertencia, e numa fuga equivocada<br />

ele se transforma em um racista contra os também negros.<br />

Toda aquela postura de contestação estava segundo Alê<br />

incomodando ou confundindo a cabeça de algumas pessoas. Esse<br />

processo é comum no movimento Hip Hop, de haver discordância<br />

sobre qual a linha de pensamento que um determi<strong>na</strong>do grupo<br />

deve seguir, bem como a uma determi<strong>na</strong>da sonoridade a ser seguida,<br />

uma vez que até hoje, no próprio movimento em escala <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />

há discordâncias entre grupos como Racio<strong>na</strong>is Mc’s (que trabalha<br />

92


um rap em estilo mais tradicio<strong>na</strong>l) e o grupo Pavilhão 9 que já faz<br />

um trabalho utilizando fusão de rap com guitarras do rock.<br />

Outro fato também interessante é a questão de um grupo ao<br />

se guiar só por uma determi<strong>na</strong>da temática começar a querer ser mais<br />

enfático quanto à violência e aos problemas sociais, do que outro<br />

grupo, ocorrendo assim discordâncias quanto ao tom de denuncia<br />

das letras, sendo alguns grupos hoje em dia acusados por parte do<br />

movimento de se aproveitar em demasia do povo pobre da periferia.<br />

Segundo Alê, as confusões que essa música causou não param<br />

por aí, em seguida o grupo se desarticulou, com certeza foram<br />

as pressões. Eu e Amon-há seguimos com a mesma proposta, o<br />

nosso discurso tinha um efeito imediato e nunca soou ba<strong>na</strong>l.<br />

Com todo esse impasse e tensão o Dj Dall e o Cassiano<br />

Pedra formaram um novo grupo o Consciência Rap, e compõem<br />

“Rapper Normal” onde retratavam um cara confuso, que não entende<br />

a luta contra o racismo, essa versão foi divulgada localmente.<br />

Existe uma segunda versão que foi gravada e divulgada em<br />

circuito <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l com o título: “Qual é a Cor?” em que se afirmava<br />

que a cor não quer dizer <strong>na</strong>da, letra composta pelo rapper Suave<br />

(ex-M-Suave) que se juntou ao grupo PMC e Dj Deco Murf.<br />

É importante registrar que o Suave antes de ser reconhecido<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente, frequentava algumas das festas que rolavam em<br />

João Pessoa. Ele era da ce<strong>na</strong> de Recife e amigo do Soldado do<br />

Bronx. Daí, como resposta eu compus Presa Fácil, e lançamos essa<br />

música aqui em João Pessoa, em um evento no bairro de Mangabeira.<br />

Em 1995, a convite do ativista negro Carlos Henriques,<br />

presidente da Malungus (Organização Negra da Paraíba), o Justa<br />

Causa e outros grupos de rap participam pela primeira vez de<br />

atividades do movimento negro, <strong>na</strong>s comemorações dos trezentos<br />

anos de Zumbi, levando o Hip Hop para as escolas e universidade,<br />

mostrando a arte Hip Hop e discutindo a questão racial.<br />

Em 1996, a polêmica sobre Omissões se repete. Diz Alê:<br />

Fomos convidados para fazer um show no Festival<br />

Nacio<strong>na</strong>l de Arte (FENART), o palco era alter<strong>na</strong>tivo, agente<br />

93


tava seguro e ciente do que poderia acontecer. O Justa Causa<br />

estava no palco, eu iniciei a apresentação com um discurso,<br />

sugerindo que os jovens negros marchassem para uma<br />

consciência, uma revolução. No show estava também o<br />

diretor de teatro do FENART, Roberto Cartaxo, ele<br />

entendeu que ofendíamos ao público com a música, e se<br />

dirigiu ao mesário de som discretamente, exigindo que<br />

tivéssemos o microfone desligado, isso realmente<br />

surpreendeu a todos nós, foi a maior censura que já<br />

havíamos tido, mas, ele percebeu que tínhamos muita<br />

coragem e acabou reconhecendo, mantivemos o controle,<br />

o áudio foi religado e mais uma vez a música continuou.(Alê<br />

da Guerra Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Omissões foi executada para todo o público, constando o<br />

seguinte trecho que demonstra o tema mais presente no rap de<br />

João Pessoa, marcado com maior ênfase pela sua relação e diálogo<br />

com o movimento negro, Diz o trecho: “... anda com os brancos pra<br />

todo o lugar, é discrimi<strong>na</strong>do, é desprezado, não quer enxergar.”<br />

Em 1997 aconteceu o Seminário das Comunidades Negras<br />

Rurais Quilombolas da Região Nordeste, em João Pessoa no Mosteiro<br />

de São Bento, organizado pela Malungus e outras entidades<br />

da Coorde<strong>na</strong>ção Nacio<strong>na</strong>l das Entidades Negras – CONEN.<br />

Em 2000, independente de todas as controvérsias, tentei<br />

reunir o quarteto da Justa Causa para um possível retorno<br />

do grupo, mas por tudo que passamos e provocamos parecia<br />

não fazer mais sentido a volta do Justa Causa, enquanto<br />

isso o Dj Jéferson, um cara que eu já conhecia há algum<br />

tempo, se uniu com a gente em uma nova formação,<br />

também apareceu o Neto, ele já teria ouvido falar do grupo,<br />

com toda essa conturbada situação muitas vezes eu cantei.<br />

Só que o Amon-há começou a trabalhar em Recife, e de vez<br />

em quando estava em João Pessoa, então eu percebi que<br />

estava <strong>na</strong> hora de usar uma nova estratégia – a carreira solo.<br />

(Alê da Guerra Santosdo Hip Hop de João Pessoa – Paraíba.)<br />

Foi então que surgiu Alê da Guerra Santos (O Predador)<br />

em 2001, e a convite do Dj Mauro Donizetti – Black Side integra<br />

94


a Carava<strong>na</strong> Hip Hop, iniciativa que reativou o movimento e lançou<br />

alguns novos grupos de rap, incentivando também b-boys, bgirls,<br />

grafiteiros e djs.<br />

Em 2002, resolvi viajar até São Paulo, eu precisava iniciar um<br />

intercâmbio, conhecer a ce<strong>na</strong> alter<strong>na</strong>tiva e também conhecer<br />

algumas gravadoras. São Paulo foi surpreendente, tive a<br />

oportunidade de conhecer o Thayde, Rapin Hood; o Nelson<br />

Triunfo, realmente valeu a pe<strong>na</strong>, faltou um pouco mais de<br />

infra-estrutura para permanecer por mais tempo, permaneci<br />

por lá por uns oito meses. Em 2003, retornei a João Pessoa,<br />

e depois de vinte anos dedicados ao movimento Hip Hop,<br />

hoje eu tenho em mãos o meu primeiro CD Solo – o Single<br />

Black Power (Poder Preto), um registro histórico, não só<br />

para a ce<strong>na</strong> local, mas, para todo o Hip Hop <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.(Alê da<br />

Guerra Santos, do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

O fato de no Nordeste se ter uma aproximação maior entre<br />

o movimento Hip Hop de vários Estados, como aconteceu no I<br />

Seminário de Hip Hop da Paraíba: “Desafios e Perspectivas do<br />

Movimento Hip Hop”, em 08 de novembro de 2003, que contou<br />

com grupos de Hip Hop da Paraíba, Per<strong>na</strong>mbuco, Rio Grande do<br />

Norte, demonstra que a facilidade de comunicação entre os Estados,<br />

cria um ambiente propício a troca de experiências sobre o<br />

movimento e até mesmo o intercambio com regiões mais distantes,<br />

mas nem por isso desprovida de comunicação, como o grande<br />

centro do Hip Hop <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, São Paulo, que também se constitui<br />

enquanto espaço de afirmação profissio<strong>na</strong>l em termos do<br />

movimento Hip Hop, uma vez que é nesta capital que estão as<br />

grandes gravadoras e que possui acesso a informações sobre as<br />

mudanças e inserções feitas no movimento em termos musicais.<br />

O cd foi produzido pelo produtor musical – Dj. D<strong>na</strong>rt<br />

Nóbrega, ele e o seu sócio Jader Paiva, abraçaram a ideia e deram<br />

todo o suporte para o cd, que é uma saudação ao The Black Panthers<br />

Parthy (Partido dos Panteras Negras), movimento esse que influencia<br />

até hoje toda uma geração afro. “Desde o fi<strong>na</strong>l da década de<br />

95


1960, o Single Black Power é uma fonte de inspiração com uma nova<br />

visão das ideias do partido. O país é outro, o momento é outro.” Em João<br />

Pessoa, Miguel Nery do projeto RC Cultura de Rua fala de tentativas<br />

acontecidas desde 1997, para desenvolver uma organização<br />

do Movimento Hip Hop da Paraíba. Ele diz:<br />

Dessas reuniões tiveram pouco proveito, pela ausência de<br />

experiência, causando diversos desvios do real sentido dos<br />

encontros, desestimulando o interesse de simpatizantes<br />

da Cultura. Tão grave foi a dispersão ideológica, que<br />

ocasionou desistência de possíveis militantes da Cultura<br />

Hip Hop, tendo em vista a falta de compromisso com as<br />

reais informações sobre o movimento, limitando-se muitas<br />

vezes, a assuntos de caráter pessoal. (Alê da Guerra Santos,<br />

do Hip Hop de João Pessoa – Paraíba)<br />

Mesmo diante deste quadro desfavorável ao crescimento do<br />

Hip Hop paraibano, surgiu o Projeto da Carava<strong>na</strong> do Hip Hop,<br />

idealizada pelo Dj Mauro Donizete, que durou cerca de um ano e<br />

que foi desenvolvida <strong>na</strong> comunidade Presidente Médice, no Bairro<br />

Funcionários IV. Durante a Carava<strong>na</strong>, surgiu o Projeto Posse Nova<br />

República Rappers, idealizada pelo Mc Cassiano Pedra, que foi<br />

desenvolvida <strong>na</strong> comunidade Nova República, no Bairro do Geisel,<br />

vindo a se tor<strong>na</strong>r entidade no ano de 2003, e durante o processo de<br />

estruturação da Posse, ocorreram diversas reuniões para a formulação<br />

do Estatuto e organizações de eventos. Por discordância da<br />

metodologia utilizada para desenvolver as atividades da Posse, o<br />

grupo Realidade Crua deu início ao Projeto RC Cultura de Rua.<br />

Durante esse período o Movimento havia perdido grande<br />

parte de sua credibilidade. Poucas atividades eram realizadas e<br />

as informações e contatos com outros movimentos ficaram limitados<br />

a grupos.<br />

A partir daí, os grupos foram se articulando individualmente,<br />

criando seus próprios meios de desenvolver as expressões do Movimento<br />

Hip Hop. Eventos foram realizados, projetos foram desenvolvidos<br />

e atividades que garantiram <strong>na</strong> Paraíba, até hoje, a<br />

96


existência do Hip Hop. O exemplo dessas manifestações está a<br />

Fusão Hip Hop Nordeste, realizada pelo Projeto RC Cultura de<br />

Rua, que proporcio<strong>na</strong> a união de Estados do Nordeste e que produziu<br />

a primeira Coletânea de Rap da Paraíba, com grupos de<br />

outros Estados nordestinos.<br />

Atualmente os grupos de maior expressão que representam<br />

o cenário do Hip Hop em João Pessoa são os Primatas, Reação da<br />

Periferia, Alê da Guerra Santos, Realidade Crua, Segure o BO, Afro<br />

nordesti<strong>na</strong>s, Irmão de Atitude, Guerreiros da Liberdade, Princesa<br />

Raquel, Represália Rap, Sangue no Olho, Anjos Rebeldes, Mensageiros<br />

da Paz, Atitude Urba<strong>na</strong>, Eu e Meus Amigos, Mano Elvis.<br />

97


Branca


Capítulo 2<br />

Da estética da existência<br />

à estética da vida cotidia<strong>na</strong><br />

“Só como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem<br />

eter<strong>na</strong>mente justificados” (NIETZSCHE)<br />

A estetização da vida cotidia<strong>na</strong> é parte do pressuposto desenvolvido<br />

por Mike Featherstone (1995), em seu estudo sobre a<br />

cultura de consumo e o pós-modernismo, em que afirma a possibilidade<br />

de pensarmos a noção de estetização da vida cotidia<strong>na</strong><br />

mediante uma releitura da experiência dos modernos, seguindo<br />

até aos modelos e experiências das novas formações culturais,<br />

bem como suas modas de significação.<br />

A estetização da vida cotidia<strong>na</strong> está presente no que se<br />

convencionou chamar de modernidade, onde é assi<strong>na</strong>lada uma<br />

nova experiência apreendida mediante o rompimento com as formas<br />

tradicio<strong>na</strong>is de sociabilidade. Em um segundo momento a<br />

ênfase está dada <strong>na</strong> transformação da realidade em imagens, além<br />

das inúmeras indicações de autores que traduzem estes fenômenos<br />

<strong>na</strong>s mais diferentes denomi<strong>na</strong>ções, tais como liquefação de<br />

signos e mercadorias, apagamento de fronteiras entre o real e a<br />

imagem, significantes flutuantes, hiperrealidade cultura sem profundidade,<br />

imersão perturbadora, sobrecarga sensorial, intensidades<br />

carregadas de afetos, entre outras.<br />

O que há de comum é a referência em relação à textura do<br />

ambiente urbano refletida no aparecimento de novas marcas culturais<br />

demonstradas sob uma variedade de composições, que dizem<br />

respeito a estilos, formas de identificação e comunicação que<br />

parecem ultrapassar fronteiras da experiência e da significação.<br />

Para Featherstone a estetização da vida cotidia<strong>na</strong> tem por<br />

base a experiência das subculturas artísticas que produziram o<br />

movimento dadaísta, surrealista e da vanguarda histórica da Primeira<br />

Guerra Mundial, <strong>na</strong> década de 1920, <strong>na</strong> tentativa de apa-<br />

99


gar as fronteiras entre a vida e a arte. Neste mesmo autor identifica<br />

essa mesma disposição espiritual <strong>na</strong> década de 1960, em um<br />

duplo movimento.<br />

Primeiramente o desejo de elimi<strong>na</strong>r a aura da obra de arte,<br />

questio<strong>na</strong>ndo assim seu halo sagrado e suas posição nos museus<br />

e academias, forjando assim um movimento de “dessacralização”<br />

da arte enquanto elemento exterior ao homem, um movimento<br />

que passa a inserir a arte <strong>na</strong> cotidianidade.<br />

O outro movimento consta da suposição de que a arte pode<br />

estar em qualquer lugar ou em qualquer coisa. A arte não teria<br />

aqui um autor, um sujeito determi<strong>na</strong>do e nem um objeto ou lócus,<br />

podendo se dar inclusive de forma coletiva e nômade, ocupando<br />

assim qualquer espaço: ruas, metrôs, praças, murais, não havendo<br />

assim um espaço fixo para a arte. Nesse sentido, uma das<br />

vertentes da arte, a música, pode ser compreendida contemporaneamente<br />

enquanto:<br />

Flutuante, que se faz no contexto de um tempo-espaço<br />

“liso”, não mais revelando relações por desenvolvimento<br />

e por hereditariedade, mas ape<strong>na</strong>s aquelas dadas por<br />

“contágio”, <strong>na</strong> qual os fluxos sonoros, suas densidades,<br />

velocidades e as intensidades afloram em uma rede de<br />

conexões, remetem-nos as características do espaço nômade<br />

deleuzeano, ele também não mensurável, intensivo e<br />

povoado de acontecimentos que determi<strong>na</strong>m a sua<br />

densidade. (SANTOS, 2004: 105)<br />

Essa flutuação ou hibridização da música pode ser compreendida<br />

através do elemento da fusão, onde ritmos diferentes<br />

se combi<strong>na</strong>m para formar uma terceira ou quarta sonoridade,<br />

combi<strong>na</strong>ndo e recombi<strong>na</strong>ndo acusticamente elementos díspares<br />

como pode ser observado por exemplo no movimento Mangue<br />

Beata, <strong>na</strong>s diversas variações de rap, desde o que é composto e<br />

combi<strong>na</strong>do com o gospel, como o grupo Apocalipse 16, até mesmo<br />

fusões com o rock, como é o caso do Pavilhão 9, ou Marcelo<br />

100


D2, que em seu último trabalho Em Busca da Batida Perfeita,<br />

vai se apropriar de elementos do samba, dentro de uma estética<br />

Hip Hop. A música aqui passa a ser flutuante intercambiável e<br />

interrelacio<strong>na</strong>l, como se fosse uma grande teia, onde seus fios<br />

convergem de forma horizontalizada, como em uma grande “máqui<strong>na</strong><br />

de sons da rua”.<br />

O segundo sentido apontado por Featherstone se encontra<br />

no projeto de transformar a vida numa obra de arte que tem uma<br />

longa história, podendo ser encontrada <strong>na</strong> virado do século XX,<br />

onde se encontra a formulação de uma ética semelhante que inclui<br />

a vida e a arte num mesmo plano. O terceiro sentido desig<strong>na</strong><br />

o fluxo veloz de signos e imagens que saturam a trama da vida<br />

cotidia<strong>na</strong> <strong>na</strong> sociedade contemporânea.<br />

Essa transformação da vida em uma obra de arte nos remete<br />

a questão das percepções sobre o urbano, sobre a vida <strong>na</strong><br />

cidade, através de suas sonoridades, cores e movimentos, onde<br />

os signos passam não simplesmente a desig<strong>na</strong>r algo, como a ter<br />

uma “vida própria”.<br />

No campo da moda, por exemplo, é comum aos grandes<br />

estilistas irem ou enviarem “olheiros” para verificarem como as pessoas<br />

estão se vestindo comumente <strong>na</strong> rua, para saberem quais são as<br />

tendências e estilos da rua que podem ser incorporadas ao mercado<br />

consumidor. Outro exemplo interessante também, verificado <strong>na</strong>s<br />

grandes cidades, é como os shoppings centers passam a se constituir<br />

enquanto espaços de homogeneização de atitudes, onde não só se<br />

comercializam produtos, como também gostos, estilos, formas de<br />

andar, de vestuário, de linguagem, bem como de trocar ou interditar<br />

informações entre grupos sociais diferenciados.<br />

Baudelaire pode ser apresentado como tipo exemplar dessa<br />

constituição. Seus temas se constroem em torno de sua experiência<br />

que pressupõe em seus movimentos uma dessacralização<br />

da obra de arte, o que deixa uma brecha para se alojar a experiência<br />

da transgressão como um componente ético-estético.<br />

Baudelaire faz de seu corpo, seu comportamento, seus sentimentos,<br />

paixões e sua própria existência, uma obra de arte, demons-<br />

101


trando assim, a principal característica dessa experiência que é a<br />

de inventar a si próprio, como se sugerisse constantemente uma<br />

vontade de arte, que pode ser caracterizado aqui como a atitude<br />

do flaneur, que comunica <strong>na</strong> cidade o sentido da dissipação, do<br />

prazer, do nomadismo e da perplexidade diante do movimento, da<br />

velocidade e da mudança constante, tanto de si, como da paisagem.<br />

A transgressão aqui é percebida a partir de uma experiência<br />

ético-estética que retoma e retoca alguns aspectos da intenção<br />

baudelairia<strong>na</strong>, principalmente por voltar-se contra tudo aquilo<br />

que a prende e a paralisa. Nesse sentido, a estética da transgressão<br />

<strong>na</strong> forma aqui entendida supõe um tipo peculiar de contestação<br />

de determi<strong>na</strong>das práticas de domi<strong>na</strong>ção, bem como da instituição<br />

de um exercício de poder que pode ser dado inclusive através<br />

de um processo de homogeneização estética e de linguagem.<br />

Ela está alojada <strong>na</strong> perspectiva de Foucault que a tem, não como<br />

simples processo de negação, mas fundamentalmente como uma<br />

filosofia da afirmação.<br />

A transgressão não opõe <strong>na</strong>da a <strong>na</strong>da, seria também<br />

necessário aliviar esta palavra de tudo que pode lembrar o<br />

gesto do corte ou de uma reparação ou a medida de um<br />

afastamento e lhe deixar ape<strong>na</strong>s o que nela pode desig<strong>na</strong>r o<br />

ser da diferença. (FOUCAULT: 2001; 33).<br />

Trata-se de colocar o sujeito no centro da reflexão, mas um<br />

sujeito liberado dos atributos que lhes foram dados pelo saber<br />

moderno, pelo poder discipli<strong>na</strong>r e normatizador, bem como de<br />

uma determi<strong>na</strong>da forma de moral orientada para a aceitação passiva<br />

de um código.<br />

A escolha pessoal da própria forma de vida, que se situa <strong>na</strong><br />

base da estética da existência. Não cabendo a qualquer organização,<br />

instituição ou poder-saber determi<strong>na</strong>r como e de que forma se<br />

dará a relação entre o sujeito e a sociedade, sendo este sujeito<br />

construtor de sua própria história e escolhedor do seu próprio<br />

caminho, seja este em termos morais, estéticos, linguísticos ou<br />

102


éticos. Embora estas escolhas não se produzam em um espaço<br />

vazio, mas no âmbito da experiência e dos embates, que possibilitam<br />

um desenho onde essas escolhas são possíveis e outras não.<br />

Não constitui uma escolha totalmente deliberada que ignora os<br />

movimentos do tecido social.<br />

A estética da existência tal como Foucault a concebe, propicia<br />

uma maior possibilidade de escolhas pessoais, convidando a<br />

considerar a própria vida como obra de arte, propondo assim uma<br />

ética do estilo, ou uma conjugação da ética com a estética que se<br />

encontra impossibilitada e limitada pelo domínio do saber e das<br />

construções normativas que constituem o indivíduo como sujeito/objeto<br />

de determi<strong>na</strong>dos conhecimentos e poderes. A escolha é<br />

possível, porém tendo como pano de fundo os jogos de verdade e<br />

os dispositivos de poder. São ressonâncias nietzschea<strong>na</strong>s, da problemática<br />

do poder, bem como da estética trágica de Nietzsche<br />

exposta em A Origem da Tragédia e o espírito da música.<br />

Para Deleuze (1990; 155/161), um dispositivo é em primeiro<br />

lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear<br />

composto por linhas de <strong>na</strong>tureza diferentes e essas linhas do dispositivo<br />

não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua<br />

própria conta (objeto, sujeito e linguagem), mas seguem direções<br />

diferentes, formando processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas<br />

tanto se aproximam como se afastam uma das outras. Cada<br />

está quebrada e submetida a variações de direção (bifurcada e<br />

enforquilhada), submetida a derivações.<br />

Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em<br />

exercício, os sujeitos numa determi<strong>na</strong>da posição, são como que<br />

vetores ou tensores. Dessa maneira, as três grandes instâncias que<br />

Foucault distingue sucessivamente (saber, poder e subjetividade)<br />

não possuem de modo definitivo, contornos definitivos; são antes<br />

cadeias de variáveis relacio<strong>na</strong>das entre si. É sempre por via de uma<br />

crise que Foucault descobre uma nova dimensão, uma nova linha.<br />

Os grandes pensadores são um tanto sísmicos; não evoluem, mas<br />

avançam por crises, por abalos.<br />

103


Pensar em termos de linhas móveis era a operação de Herman<br />

Melville, e nele havia linhas de pesca, linhas de imersão, perigosas, e<br />

até mortais. Há linhas de sedimentação, diz Foucault, mas também<br />

há linhas de fissura, de fratura. Desemaranhar as linhas de um dispositivo<br />

é, em cada caso, traçar um mapa, cartografar, percorrer terras<br />

desconhecidas, é o que Foucault chama de “trabalho em terreno”. É<br />

preciso nos instalar sobre as próprias linhas, que não se contentam<br />

ape<strong>na</strong>s em compor um dispositivo, mas atravessam-no, arrastam-no,<br />

de norte a sul, de leste a oeste ou em diago<strong>na</strong>l.<br />

Os primeiros gregos foram capazes de transformas uma<br />

existência monstruosa em beleza, souberam estetizar como ninguém<br />

as divindades e a vida, inventando modos diversos de existência<br />

e de beleza e de arte. O ethos guerreiro, a moral do senhor,<br />

a superação, a dobra, uma operação <strong>na</strong> arte de viver. Eles inventaram<br />

o modo de existência estético.<br />

É isso a subjetivação: dar uma curvatura à linha, fazer com<br />

que ela retorne sobre si mesma, ou que a força afete a si<br />

mesma. O que Foucault diz é que só podemos evitar a<br />

morte e a loucura, se fizermos da existência um modo,<br />

uma arte. (DELEUZE: 1992 141)<br />

Enquanto modelo crítico, a estética da existência encontra<br />

em sua base o fato de que os domínios de saber e os dispositivos<br />

de poder que condicio<strong>na</strong>m a experiência e desenham a margem<br />

de possibilidades da época não são indispensáveis nem imutáveis.<br />

Os limites impostos se evidenciam como tantos outros lugares<br />

de transgressão possíveis que devem ser pensados com atenção.<br />

O que a experiência histórica mostra é o fato de que os limites<br />

são variáveis e que os fundamentos são mutáveis.<br />

A escolha do estilo deve questio<strong>na</strong>r a experiência que constitui<br />

o atual sistema de relações, instaurando assim novas possibilidades<br />

de poder e posições de sujeitos. Enquanto modo de<br />

experimentação, a estética da existência propõe colocar à prova,<br />

tanto os limites impostos à experiência, como a própria condição<br />

de sujeito que os próprios limites constroem.<br />

104


A crítica permanente de nossa época histórica e de nosso próprio<br />

eu, se apresenta ao mesmo tempo como um deslocamento de<br />

limites e como práticas de si. Ao enfatizar o caráter de prática da<br />

ética, o sujeito será por fim objeto de preocupação, de trabalho.<br />

Não há de ser somente visualizado, mas configurado segundo<br />

escolhas individuais e critérios de estilos que estabelecem<br />

também diferenciações que vão além de conceitos econômicos,<br />

políticos e sociais, estabelecendo assim práticas sociais que <strong>na</strong><br />

cotidianidade são dadas através da diferenciação entre indivíduos<br />

“pela marca” como se apresenta, ou seja, o estilo individual.<br />

Ao centro da estética da existência está posta a questão da<br />

liberdade, que se configura <strong>na</strong> escolha e <strong>na</strong> construção de si mesmo.<br />

A crítica como componente da estética da existência, tem como<br />

tarefa levar tão longe quanto possível o trabalho da liberdade.<br />

Em relação à ética, a liberdade é condição e objeto, pois a<br />

liberdade é condição ontológica da ética, e a ética é a forma reflexiva<br />

que adota a liberdade.<br />

Para Foucault, a liberdade é um processo complexo engendrado<br />

pela reflexão e pela prática. O objeto ao qual se aplica a<br />

reflexão e a prática, é o sujeito: nos mesmos enquanto seres condicio<strong>na</strong>dos<br />

historicamente, em parte por relações de poder-saber,<br />

mas ao mesmo tempo sujeitos as transformações, capazes de transgredir<br />

ou enfraquecer as fronteiras, os limites que nos constituem<br />

por meio de um trabalho sobre nós mesmos, em exercício prático<br />

crítico, uma estética da existência que envolve uma reflexividade.<br />

Encontramos evidências de que existe uma vontade de arte<br />

<strong>na</strong> experiência cultural do Hip Hop que está relacio<strong>na</strong>da com um<br />

pressuposto ético-estético-político baseado <strong>na</strong> experiência de<br />

mundo, portanto, <strong>na</strong> cotidianidade. Nessa forma cultural existe<br />

uma intenção de comunicar experiências sugeridas e impostas<br />

pela cidade com suas formas de controle e segregação dessa mesma<br />

experiência. É parte de uma intenção crítica que demonstra<br />

que a vida está relacio<strong>na</strong>da não somente à arte, mas também que<br />

à forma política apresentada se constitui <strong>na</strong> transgressão.<br />

105


A transgressão, seja enquanto ultrapassagem da territorialidade<br />

(relação favela-periferia/bairro), ou da significação, dada através da<br />

inclusão de elementos tecnológicos da sociedade <strong>global</strong> para criticar,<br />

a partir do local, a própria exclusão social da periferia, remete a<br />

um processo de contradiscurso que opera através de uma crítica à<br />

própria estrutura e lógica de poder contemporâneo.<br />

A cidade tor<strong>na</strong>-se uma duplicação onde ela é ce<strong>na</strong> e objeto<br />

da composição, uma espécie de dobra sobre si mesma, onde ocorre<br />

uma tentativa similar a de Baudelaire que sugeria em sua prática,<br />

a destruição da aura, do halo sagrado que envolvia os objetos<br />

considerados artísticos, bem como a própria indisposição em colocar<br />

esses objetos em espaços privilegiados. A arte vai para a rua e<br />

lá encontra o seu próprio tema, seu próprio objeto e sua própria<br />

forma de composição, que não é mais única, mas multifacetada,<br />

recambiando e (re)combi<strong>na</strong>ndo elementos diferenciados.<br />

Na experiência do Hip Hop no Brasil ocorre por exemplo,<br />

um processo de assimilação de sonoridades da rua, onde a percepção<br />

não vai estar ligada simplesmente a um determi<strong>na</strong>do olhar,<br />

mas e principalmente à uma nova forma de ouvir, aonde os sons<br />

não vão se constituir enquanto elementos puros, mas combi<strong>na</strong>dos<br />

e (re)combi<strong>na</strong>dos para estabelecer novas disposições, portanto,<br />

novas formas de ouvir, nesse sentido:<br />

Uma escuta que se faça a partir de tal música é também<br />

nômade, não por determi<strong>na</strong>ção, por imposição ou por<br />

limite, mas por contágio, passeando por entre os pontos<br />

de referencias móveis dessa música em forma de rizoma, a<br />

escuta transitaria <strong>na</strong>s linhas que levam de um ponto de<br />

outro incessantemente. (Santos, 2004: 106)<br />

Baudelaire desprezava os artistas contemporâneos, que segundo<br />

ele, figuravam imagens fora do tempo e lugar. Para ele os<br />

artistas deveriam produzir a partir de suas próprias experiências, encontrar<br />

correspondência no seu próprio passo, olhar e jeito. Ele fasci<strong>na</strong>va-se<br />

com a multidão. Falava no prazer de ver o mundo <strong>na</strong> sua<br />

forma presente a disposição dos sentidos, ao mesmo tempo, que<br />

106


estava consciente de que sua atividade havia se transformado em<br />

uma mercadoria, desprezando a tentativa de escapar desse termo.<br />

Em sua época de Baudelaire assistia-se à emergência das<br />

boêmias, que adotam as estratégias de transgressão em sua arte e<br />

estilo de vida. Seus representantes viviam fora dos limites da<br />

sociedade burguesa e eram identificados com as marcas do<br />

proletariado. À esquerda, no entanto, tinham diferenciações quanto<br />

ao estilo de vida, <strong>na</strong> medida em que a dissipação, a atitude<br />

flâneur e a forma poética de ver e sentir o mundo não combi<strong>na</strong>vam<br />

com os discursos vigentes, tanto de esquerda quanto de direita,<br />

pois estetica e vivencialmente não se enquadravam <strong>na</strong>s teias<br />

fixas dos discursos políticos, além de terem a rua como elemento<br />

privilegiado de aprendizado cotidiano e sobre o cotidiano.<br />

Aqui é interessante pensar atualizadamente numa<br />

revitalização desse sentido através do Hip Hop que pretende ir<br />

além do discurso político tradicio<strong>na</strong>l entre esquerda e direito, criticando<br />

não simplesmente a desigualdade social, mas a motivação<br />

política mais profunda para essa situação, qualquer que seja<br />

a estrutura de poder vigente que também se dá com, e a partir da<br />

rua, da cotidianidade; pois viviam em regiões menos desenvolvidas<br />

das grandes cidades e em estreita relação com as camadas<br />

populares. Foram desenvolvidos comportamentos que valorizavam<br />

uma espontaneidade em relação ao trabalho e a pouca atenção<br />

para com a noção de uma vida ordeira, um estilo de vida que<br />

trazia uma historicidade. Seguiam uma dinâmica de vida que trazia<br />

como marcas tentativas de usar símbolos de transgressão, para<br />

causar impacto paralelamente ao processo civilizador, que procurava<br />

controlar as emoções por meio dos costumes, assumindo<br />

formas deslocadas, inversa e formas simbólicas de transgressão.<br />

Esse transbordamento demarca linhas para a fundamentação da<br />

estética da transgressão.<br />

2.1. A tecnologia como modelo subjetivante / A base<br />

tecnológica do Hip Hop<br />

107


O Hip Hop é um dos gêneros da música e da cultura juvenil<br />

que expressa e se identifica com o cenário da sociedade contemporânea,<br />

embora sujeito as constantes críticas e atos de censura,<br />

devido à críticas ásperas que faz, não somente às instituições,<br />

como a atitude discrimi<strong>na</strong>tória da classe média brasileira, que<br />

elege formas estéticas homogeneizadoras para representar um<br />

sistema de valoração estético, seja este dado através da música.<br />

Isso ocorre quando um determi<strong>na</strong>do estilo musical passa a<br />

fazer sucesso <strong>na</strong>s rádios, nos programas de televisão e passa a ser<br />

ouvido por todos, bem como do que é considerado moda, ou até<br />

mesmo do fato de copiar atitudes tidas como civilizadas. Uma vez<br />

que esse território, habitado por brancos de classe média, seja o<br />

lugar ideal, extrapolando para outras áreas, territoriais ou simbólicas,<br />

tudo aquilo que não se enquadra dentro de um processo de<br />

estetização de costumes, fato que certamente não surpreende por<br />

ter tido como solo histórico a experiência dos guetos, das ruas e<br />

dos territórios negados enquanto lócus de inclusão social.<br />

Suas músicas são faladas, recitadas, como se constituíssem<br />

<strong>na</strong>rrativas ou uma escritura da voz em ritmo duro, um texto sonoro,<br />

repetitivo, em tom de desafio, às vezes libidinoso, mas que apresenta<br />

lições exemplares, indo ao encontro de uma concepção estética<br />

que não reconhece estas lições. Apresenta algumas pistas para a<br />

ampliação do campo teórico das diversas características e<br />

especificidades da música brasileira e sua permanente tensão com<br />

os diversos segmentos da sociedade e da indústria cultural, o que de<br />

certa forma evidencia um desconforto <strong>na</strong>s tendências musicais contemporâneas,<br />

além de suas diversas formas de recepção.<br />

O Hip Hop desafia algumas convenções estéticas mais incutidas,<br />

que pertencem não somente ao modernismo como estilo artístico<br />

e como ideologia, mas a uma doutri<strong>na</strong> filosófica da<br />

modernidade, bem como da diferenciação aguda entre as esferas<br />

culturais, operando sempre em limite tênue. Fronteira que beira a<br />

ambiguidade, quando passa a contestar o sistema, a violência policial,<br />

a descrimi<strong>na</strong>ção racial, e a exclusão simbólica do povo pobre<br />

da periferia, mas ter que fazer uso do esquema milionário das gra-<br />

108


vadoras. Podem operar também como uma forma de incentivo a<br />

uma atitude pertencente ao mundo do crime, contrariando a proposta<br />

de aprendizado do movimento, como <strong>na</strong> música do grupo de<br />

Ma<strong>na</strong>us, Novos Cabanos, intitulada Revolta dos Cabanos:<br />

Se eu tô aqui de pé com fé não é à toa<br />

Ah! Vou defender ou vou ferrar você qualquer pessoa.<br />

É melhor andar <strong>na</strong> linha,<br />

Metralhadora feita de carne,<br />

Cuspindo bala <strong>na</strong> tua cara chamada língua (...)<br />

Campanha contra as drogas, contra o álcool no mesmo ca<strong>na</strong>l.<br />

A gente vê cigarro, cachaça com limão,<br />

Ah! Sou criminoso, cuidado!<br />

É melhor ficar de ante<strong>na</strong>,<br />

Eu vou fazer da tua cabeça<br />

Uma arma contra a merda desse sistema!<br />

Correndo o risco de efetuar ou ser interpretado, para grandes<br />

parcelas da população jovem que se espelham nesses grupos, como<br />

uma determi<strong>na</strong>da apologia do crime ou da atitude margi<strong>na</strong>l,<br />

heroicizando assim determi<strong>na</strong>das atitudes que deixam de ser<br />

contestatórias, podendo ser reinterpretada de diferentes formas, como<br />

negação ou como afirmação do mundo do crime como, por exemplo<br />

a relação entre arma e poder, a lei do mais forte, o sentido de honra,<br />

moral, entre outros, tendo como eixo o sentido de transgressão, uma<br />

vez que esta é vista também como uma forma que a juventude encontra<br />

para “heroicizar” as práticas cotidia<strong>na</strong>s, através da constituição<br />

de um determi<strong>na</strong>do ethos de enfrentamento, mas que pode também<br />

se degenerar em micro fascismos.<br />

A ideia de romper e ultrapassar estas determi<strong>na</strong>ções estão<br />

presentes no modelo transgressor operado por Battaile, do qual<br />

Foucault e Deleuze fazem uso para pensar a questão do limite,<br />

da dobra e da desdobra.<br />

A apropriação de sonoridades, ruídos e simulações constituem<br />

o cerne e um dos elementos mais característicos dessa esté-<br />

109


tica e forma comunicativa. Sua música se encontra composta<br />

pelo acoplamento de várias partes anteriormente gravadas, o<br />

sampling que figura como algo totalmente novo. Barulhos de carros,<br />

tiros, risadas, choros são incorporados a uma dimensão sonora<br />

que procura operar um simulacro da sonoridade da cidade.<br />

Essa música, flutuante que se faz num contexto de tempo<br />

e espaço liso, não mais revelando relações por<br />

desenvolvimento ou heterogeneidade, mas ape<strong>na</strong>s aquelas<br />

dadas por contagio, <strong>na</strong> qual os fluxos sonoros, suas<br />

densidades, velocidades e as intensidades afloram em uma<br />

rede de conexões, remete-nos as características do espaço<br />

nômade deleuzeano, ele também não mensurável,<br />

intensivo e povoado de acontecimentos que determi<strong>na</strong>m<br />

sua densidade. (SANTOS: 2004; 105)<br />

Este processo esta envolvido por uma espécie de ritualização<br />

da técnica, onde o dj (disc-jockey), se apresenta como uma espécie<br />

de mágico, que altera, manipula e transforma sonoridades em<br />

uma mesa comparada a um altar cerimonial composto de múltiplos<br />

ca<strong>na</strong>is em perfeita interação do homem e da técnica, insinuando<br />

um processo de subjetivação ditado pela tecnologia que serve<br />

de fundo para as <strong>na</strong>rrativas de experiências existências simuladas<br />

pelo Mc ou mestre de cerimônias, cujo status esta associado ao<br />

seu poder verbal, que historicamente remonta e confirma o sentido<br />

de uma tradição profundamente enraizada <strong>na</strong> cultura negra.<br />

Para efeito da pesquisa, interessa o corte correspondente ao<br />

evento marcante da tecnologia moder<strong>na</strong> em que emergiu o Hip<br />

Hop, precisamente <strong>na</strong> década de 1970, nos guetos de New York.<br />

Apropriando-se dos sons e das técnicas o Hip Hop, através do rap<br />

(re) elabora elementos concretos e acústicos de performances prégravadas.<br />

São efeitos diversos entre cortes, mixagens, etc.<br />

A composição fundindo tecnologia sonora e canto são bastante<br />

peculiares no caso do Hip Hop, por trabalhar uma forma<br />

tradicio<strong>na</strong>l (histórias que são <strong>na</strong>rradas através da oralidade), como<br />

nos velhos cantos africanos, com uma forma tecnicamente avan-<br />

110


çada (instrumentos eletrônicos) fazendo assim um processo de<br />

ressiginificação da técnica com o sentido de reafirmar uma tradição,<br />

a oralidade que conta histórias acerca da cotidianidade.<br />

Inicialmente o Hip Hop esteve ligado ape<strong>na</strong>s por elementos<br />

restritos, ao espaço da rua, que era como se fosse um limite<br />

tênue da casa. Um espaço fronteiriço que implicava segurança e<br />

reconhecimento. Posteriormente, se aventura para além das ruas,<br />

para os parques, praças e espaços configurados como públicos,<br />

mas que acabam por conformar-se a estilos e marcas de<br />

pertencimento. Lugares em que se dispõe a destreza do dj, do<br />

Mc, da improvisação dos rappers, e dos breaks.<br />

Vale dizer que o que se convencionou chamar de quinto<br />

elemento, autoconsciência ou tráfico de informação, ainda não<br />

se fazia perceber com clareza, mas estava em estado embrionário.<br />

Por outro lado o Hip Hop ainda não era dirigido a uma plateia<br />

de massa e estava fora do espaço da mídia, embora frequentemente<br />

gravado de maneira informal, em fitas-cassetes.<br />

Somente no início da década de 1980 a mídia começa a<br />

fazer suas apropriações com fins comerciais e pouco a pouco, se<br />

avoluma até chegar ao estado atual.<br />

A partir da técnica de montagem de trechos de discos, o Hip<br />

Hop desenvolveu três outros dispositivos formais que contribuíram<br />

significativamente para sua especificidade sonora e estética, o<br />

scratch mixing, o punch preasing e o scratching simpales. O primeiro consiste<br />

simplesmente <strong>na</strong> sobreposição e mixagem de sons de um disco<br />

aos de um outro que já esteja tocando. O segundo consta de um<br />

refi<strong>na</strong>mento dessa mixagem, onde o dj desloca a agulha para frente<br />

e para trás, sobre um fraseado específico de cordas ou percussão<br />

de um disco, acrescentando um forte efeito rítmico ao som de um<br />

outro disco tocado em outro aparelho. O terceiro artifício consiste<br />

em fazer um scratching mais agressivo e rápido com a agulha sobre o<br />

disco de maneira que a música gravada não possa ser reconhecida,<br />

produzindo um som dramático, intenso e aluci<strong>na</strong>nte.<br />

111


São artifícios de montagens, e representa simulações que se<br />

funda em realidades e experiências comuns a sociedade tecnológica,<br />

em especial ao ambiente urbano.<br />

Todos esses artifícios próprios da sociedade tecnológica<br />

dão ao Hip Hop uma variedade de formas de apropriação, bem<br />

como de apropriação de conteúdos, visto que utiliza trechos de<br />

canções populares, como ainda de elementos da música clássica,<br />

apresentações de televisão, jingles publicitários e até mesmo de<br />

sonoridades de jogos de video game, bem como de partes de noticiários<br />

incluindo fragmentos de discursos de lideres negros, operando<br />

assim um processo de polifonia onde se fundem elementos<br />

sonoros e discursivos, efetuando assim um processo de<br />

sonoplastização musical da experiência urba<strong>na</strong>.<br />

Que significação sociológica pode ter essa apropriação de<br />

elementos tão diversos? Como e através de que elementos o Hip<br />

Hop vai se caracterizar enquanto uma nova forma de experimentação<br />

urba<strong>na</strong>? De que forma o Hip Hop vai comunicar essa<br />

cotidianidade? Para quem e em que sentido?<br />

A grosso modo, pode-se dizer que colocou em xeque a questão<br />

ideológica da origi<strong>na</strong>lidade. Passa-se então a reconhecer que<br />

não há origi<strong>na</strong>is intocáveis, definitivos, mas ape<strong>na</strong>s apropriações<br />

e simulacros de simulacros. Abre-se espaço para o jogo de imagens<br />

e sentidos. Representa um corte significativo com os modelos<br />

estéticos de unidade orgânica, da obra fixa. A montagem e o<br />

sampling do rap refletem a fragmentação, o efeito da colagem,<br />

embora isso não signifique que o rap não possua coerência alguma.<br />

Ao rejeitar um determi<strong>na</strong>do modelo, o rap desafia noções<br />

tradicio<strong>na</strong>is de universalidade e permanência, estabilidade.<br />

A estética Hip Hop, sobretudo se desvia dos padrões de<br />

monumentalidade conferida às obras de arte, como se fizesse parte<br />

de uma ordem ideal de monumentos perenes. Evidencia, sobre<br />

tudo, a efemeridade, não somente pelo fato de existir a partir de<br />

um esquema que se apropria e desestrutura elementos diversos,<br />

mas pelo seu caráter de acontecimento ou temporalidade.<br />

112


Embora o Hip Hop também trate de temas universais, tais<br />

como justiça e opressão situam-se afirmativamente como música<br />

do gueto adotando como temática sua própria experiência,<br />

focalizando as características reais da vida no gueto quer incluem<br />

uma série de situações onde figura como tema constante a<br />

opressão por parte da polícia e a discrimi<strong>na</strong>ção dos negros e<br />

favelados. E é neste sentido que se opera a relação entre <strong>global</strong><br />

e local.<br />

Um outro aspecto da cultura Hip Hop, é sua complexa relação<br />

com o mercado de bens culturais. O Hip Hop, em especial o<br />

rap representa uma enorme fasci<strong>na</strong>ção pela tecnologia, mais especificamente<br />

enquanto experienciação sonora, estabelecendo<br />

assim um fazer artesa<strong>na</strong>l-tecnológico, embora esteja <strong>na</strong>s malhas<br />

do mesmo sistema tecnológico, das gravadoras, e da mídia em<br />

geral, ele se afirma em grande parte a partir dessa tecnologia comercial<br />

da mídia: discos, amplificadores e aparelhos de mixagem.<br />

Esta tecnologia permite que se construam as ence<strong>na</strong>ções e<br />

<strong>na</strong>rrativas do cotidiano, ruídos e bases sonoras que não se poderia<br />

produzir de outra forma.<br />

O manuseio eficiente de tais instrumentos confere um status<br />

de artista <strong>na</strong> medida em que se apropriam dessas novas tecnologias.<br />

Fazem cortes, alterações, ruídos e todo um espectro de sons<br />

possíveis, colocando e retirando, como em um bricoler, elementos<br />

que podem ser reformulados sonoramente para um fim determi<strong>na</strong>do.<br />

O Hip Hop não repousa ape<strong>na</strong>s sobre as técnicas e as<br />

tecnologias, mas empresta muito de seu conteúdo e de suas imagens<br />

da cultura de massa.<br />

Nas suas aparições estão acentuadas marcas ou produtos<br />

de marcas conhecidas e que comumente citam em suas letras de<br />

rap. Esses signos da cultura de massa fornecem o fundo cultural.<br />

Representam sobretudo trocas complexas que estão presentes <strong>na</strong><br />

sociedade contemporânea. Trazem o caráter da ambiguidade e a<br />

marca da tensão. A mídia ao mesmo tempo em que serve para<br />

ampliar e difundir o estilo Hip Hop. De outro lado, não representa<br />

uma parceria confiável. No entanto, o Hip Hop de certa forma,<br />

confere uma margem de independência as suas composições, <strong>na</strong><br />

medida em que precisa da denomi<strong>na</strong>da 113 indústria cultural não se<br />

submetendo, no entanto, aos ditames do que falar e do como<br />

falar em suas músicas.


BRANCA


Capítulo 3<br />

Ultrapassagem: a estética da transgressão<br />

“Meu estilo é pesado e faz tremer o chão<br />

Minha palavra vale um tiro eu tenho muita munição.”<br />

(Racio<strong>na</strong>is Mcs)<br />

Ela (a estética da transgressão) se constitui, não como uma<br />

oposição ou corte, ou ainda como o estabelecimento de<br />

uma separação ou a medida de um afastamento,<br />

importando ape<strong>na</strong>s o que nela pode desig<strong>na</strong>r o ser da<br />

diferença. A única rigidez, instituída, por este tipo é regida<br />

por uma simples obsti<strong>na</strong>ção em constantemente transpor<br />

uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo,<br />

em um movimento de tênue memória, recuando então<br />

novamente para o horizonte do intransponível.<br />

(FOUCAULT: 2001; 32)<br />

O Hip Hop é indicador de uma nova conduta 25 ou ultrapassagem<br />

de limites espaciais e de significados culturais. Uma conduta<br />

legitimada no campo de uma estética juvenil <strong>global</strong>izada 26 que<br />

adquire visibilidade empírica <strong>na</strong> profusão de estilos que atuam<br />

como parte do espetáculo urbano. Tais elementos funcio<strong>na</strong>m como<br />

indicadores de uma dinâmica cultural peculiar, instituída pelos conflitos<br />

e <strong>tensões</strong> próprias a experiência urba<strong>na</strong>. O Hip Hop é considerado<br />

parte de um modelo transgressor, em que a própria desig<strong>na</strong>ção<br />

de artistas às vezes é vista como indiferença.<br />

25 Um antropólogo diria que esse grupo disperso, afi<strong>na</strong>do entre si e desafi<strong>na</strong>do<br />

em relação ao resto, soube construir seu ethos e produzir suas forças simbólicas<br />

alter<strong>na</strong>tivas, como um modo de assegurar munda<strong>na</strong>mente sua alteridade e efetivar-se<br />

como uma diferença no meio do burburinho cosmopolita ávido pelo<br />

homogêneo. (MEDEIROS 37/38, 2004)<br />

26 A sociologia apresenta alter<strong>na</strong>tiva. Uma sensação repartida entre todos de uma<br />

comunidade planetária, que ocorreu paralela ao espanto da simultaneidade dos<br />

tempos e dos espaços dilatados uma vez mais pela intromissão plural e concomitante<br />

dos ca<strong>na</strong>is de informação e contra-informação. IDEM<br />

115


“Eu não sou artista. Artista faz arte eu faço arma, sou<br />

terrorista.” (Mano Brown).<br />

A palavra, a sonoridade, a imagem e o movimento é desig<strong>na</strong>da<br />

como uma arma ou tomada de consciência, fato que opera<br />

o estabelecimento de uma linguagem, de um modo de falar (de<br />

ser, de pensar, de comunicar) demonstrada <strong>na</strong> ideia difundida<br />

por MV Bill, chamado de “traficando informação”.<br />

Para Bethune (2003), um filósofo francês, o rap traduz uma<br />

maneira de conceber a arte largamente incompatível com o conceito<br />

de arte construído no Ocidente. Os rappers mostram que há<br />

outra maneira de pensar praticar a arte. Nesse sentido, continua<br />

a ser fora da lei.<br />

A construção dos estilos juvenis, em sua maioria, está associada<br />

à transgressão, à ultrapassagem, ao deslocamento, e à<br />

reelaboração de determi<strong>na</strong>dos significados. Um exemplo é o processo<br />

de aparecimento dos grupos de rock com suas estratégias distintas<br />

de comunicação e de poder. Da mesma forma o visual dos punks<br />

com suas recusas e formas de aparecimento, no espaço urbano.<br />

Em torno desses elementos, se articula uma formação ético<br />

estética baseada em princípios e referenciais de solidariedade<br />

instituindo uma comunidade de sentimento que insinua um<br />

(re)arranjo comunitário: as posses, que são formas de associações<br />

voluntárias.<br />

Ainda em referência às formas e estilos dos grupos juvenis,<br />

entendemos que são formas que combi<strong>na</strong>m e atribuem significados<br />

a materiais, desvalorizados, provenientes do lixo urbano<br />

e industrial, da própria sociedade tecnológica. Tecidos, de plástico,<br />

calças rasgadas, meias furadas, camisetas semi destruídas,<br />

peças de roupa fora de moda (ABRAMO: 1994).<br />

Para Medeiros, o avanço tecnológico permitiu experimentar<br />

novas possibilidades sonoras e instrumentais que invadiram<br />

o espaço da criação, reprodução e divulgação musical.<br />

(MEDEIROS: 45; 2004).<br />

Sobretudo, estabeleço a pressuposição de que a transgressão<br />

se tor<strong>na</strong> um veículo comunicativo, uma forma de poder que<br />

116


se funda <strong>na</strong> experiência cotidia<strong>na</strong> dos grupos sociais de jovens<br />

moradores da favela.<br />

Para Foucault (2001), a transgressão está relacio<strong>na</strong>da com o<br />

sentido-limite, <strong>na</strong> ultrapassagem de determi<strong>na</strong>dos significados ordi<strong>na</strong>riamente<br />

instituídos, seja no campo da arte, da linguagem ou da<br />

política. Ela se constitui como um gesto coletivo relativo ao limite<br />

onde, <strong>na</strong> tênue espessura da linha, manifesta o fulgor de sua passagem,<br />

mas também sua trajetória <strong>na</strong> totalidade, sua própria origem.<br />

Ela (a estética da transgressão) se constitui, não como uma<br />

oposição ou corte, ou ainda como o estabelecimento de<br />

uma separação ou a medida de um afastamento, importando<br />

ape<strong>na</strong>s o que nela pode desig<strong>na</strong>r o ser da diferença. A única<br />

rigidez, instituída, por este tipo é regida por uma simples<br />

obsti<strong>na</strong>ção em constantemente transpor uma linha que, atrás<br />

dela, imediatamente se fecha de novo, em um movimento<br />

de tênue memória, recuando então novamente para o<br />

horizonte do intransponível. (FOUCAULT: 2001; 32)<br />

Em alguns pontos das perspectivas de Deleuze e Foucault,<br />

o Hip Hop pode ser considerado como uma maneira de dobrar a<br />

linha de força, pois trata-se da constituição de modos de existência,<br />

ou da invenção das possibilidades de vida, não a existência<br />

como sujeito, mas como obra de arte, uma estética de si mesmo<br />

no mundo. Trata-se de inventar modos de existência ou tipos de<br />

subjetivacões, seguindo regras facultativas, capazes de resistir<br />

ao poder provocando formas de saberes vigiáveis, bem como se<br />

furtar ao saberes, mesmo se os saberes tentam penetrá-lo, e o<br />

poder tenta se apropriar deles 27 .<br />

27 O interior <strong>na</strong>da mais é que uma dobra do exterior, já que o exterior está inteiramente<br />

no interior dos seres, que é vez ou outra exterior e interior, e que ele está<br />

sempre pronto a desdobrar sua potência <strong>na</strong>quilo que é dado a cada momento, por<br />

pouco que os seres se desprendam deles mesmos, do caráter limitado de sua<br />

individualidade presente, que eles se abrem,em associação com os outros, ao<br />

indetermi<strong>na</strong>do que os constitui como sujeitos, para formar assim individualidades<br />

mais potentes e mais livres. (COLSON, 2001, p. 72)<br />

117


Para Deleuze (1990; 155; 161), este fato representa uma<br />

maneira de transpor a linha de forças, o que se produz quando<br />

ela se curva, forma meandros, se funde e se faz subterrânea, dito<br />

de maneira melhor, quando a força em lugar de entrar em relação<br />

linear com outra força, se volta para si mesma, exercendo sobre<br />

si mesma ou afetando de si mesma. Esta dimensão do “si-mesmo”<br />

não é de maneira nenhuma uma determi<strong>na</strong>ção preexistente<br />

que já estivesse acabada.<br />

Também aqui uma linha de subjetivação é um processo,<br />

uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está pra se<br />

fazer, <strong>na</strong> medida em que o dispositivo o deixe ou o faça possível.<br />

É uma linha de fuga. Escapa às linhas anteriores, escapa-lhes. O<br />

si-mesmo não é nem um saber nem um poder. É um processo de<br />

individuação que diz respeito a grupos ou pessoas que escapa,<br />

tanto às forças estabelecidas como aos saberes constituídos: uma<br />

espécie de mais-valia. Não é certo que todo dispositivo disponha<br />

de um processo semelhante.<br />

Segundo Deleuze, Foucault, distingue o dispositivo da cidade<br />

ateniense como o primeiro lugar de invenção de uma<br />

subjetivação: é que segundo a definição origi<strong>na</strong>l que lhe dá<br />

Foucault, a cidade inventa uma linha de forças que passa pela<br />

rivalidade dos homens livres. Desta linha sobre a qual um homem<br />

livre mandar em outro, destaca-se uma muito diferente, segundo<br />

a qual aquele que manda em homens livres deve ele próprio<br />

ser mestre de si mesmo. São essas regras facultativas do domínio<br />

de si mesmo que constituem uma subjetivação, autônoma,<br />

mesmo se esta é chamada posteriormente a prover novos sabres e<br />

a inspirar novos poderes. Alguém se perguntará se as linhas de<br />

subjetivação não são o extremo limite de um dispositivo, e se elas<br />

não esboçam a passagem de um dispositivo a um outro: neste sentido,<br />

elas predispõem as linhas de fratura. E <strong>na</strong> mesma medida que<br />

as demais linhas, as de subjetivação não têm uma fórmula geral.<br />

Brutalmente interrompida, a investigação de Foucault devia<br />

mostrar que os processos de subjetivação assumiriam eventualmente<br />

outros modos diferentes do modo grego, por exemplo, nos<br />

118


dispositivos cristãos, <strong>na</strong>s sociedades moder<strong>na</strong>s, etc. Não se poderão<br />

invocar dispositivos onde a subjetivação já não passa pela<br />

vida aristocrática ou a existência estetizada do homem livre, mas<br />

antes pela existência margi<strong>na</strong>l do excluído?<br />

Deleuze admite que o estudo da variação dos processos de<br />

subjetivação parece ser uma das tarefas fundamentais que<br />

Foucault deixou aos que haveriam de seguí-lo. Nós acreditamos<br />

<strong>na</strong> extrema fecundidade desta investigação, que os atuais empreendimentos<br />

intelectuais referentes a uma história da vida privada<br />

ape<strong>na</strong>s compreendem parcialmente. Aquele que se subjetiva,<br />

são tanto os nobres, os que dizem segundo Nietzsche “nós os<br />

bons”, como os (mesmo que em outras condições) excluídos, os<br />

maus, os pecadores ou ainda os eremitas, ou as comunidades<br />

mo<strong>na</strong>cais, ou os heréticos: toda uma tipologia das formações<br />

subjetivas, em dispositivos móveis. E por todos os lados, há<br />

emaranhados que é preciso desmesclar: produções de subjetividade<br />

escapam dos poderes e dos saberes de um dispositivo para<br />

colocar-se sob os poderes e os saberes de outro, em outras formas<br />

ainda por <strong>na</strong>scer.<br />

Os dispositivos têm então como componentes, linhas de<br />

visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação, de ruptura,<br />

de fissura e de fratura que se entrecruzam e se misturam, enquanto<br />

umas suscitam, através de variações ou mesmo mutações<br />

de disposição. Decorrem duas consequências importantes para<br />

uma filosofia dos dispositivos.<br />

O modelo de subjetivação apresentado por Foucault e que<br />

pode servir para dar medida a apresentação desse traçado estético<br />

trata de um processo de individuação que opera por intensidades,<br />

campos individuados e não pessoas ou identidades, por<br />

funções estratégicas e por posições de enunciar. É uma terceira<br />

dimensão que ultrapassa o poder e o saber garantindo uma mediação<br />

onde saber e poder se confluem e se reforçam.<br />

As teorias de Foucault e Deleuze auxiliam <strong>na</strong> reflexão sobre<br />

a ideia de transgressão, visto que eles inventaram uma empresa<br />

voltada a diagnosticar o presente, em especial as novas<br />

119


tecnologias de poder, que agem no plano da multiplicidade, que<br />

compõe o corpo social a cada indivíduo em sua solidão. Para<br />

Foucault, o poder é precisamente o elemento informal que passa<br />

entre as formas do saber, ou por baixo delas e por isso microfísico.<br />

Ele é força, relações de força, não forma. Um prolongamento<br />

de Nietzsche, uma outra dimensão que não a do saber o saber, ainda<br />

que o poder e o saber sejam inseparáveis. A subjetivação é uma<br />

resposta plausível (pedagogia da vontade), à uma dificuldade em<br />

seu esquema, que em algumas situações parecia se fechar <strong>na</strong>s relações<br />

de poder. Por mais que invoque pontos de resistência como<br />

contraposição aos focos de poder, de onde veem essas resistências?<br />

Como transpor a linha é a questão de grande complexidade<br />

presente no pensamento de Foucault. Transpor a linha de força, ultrapassar<br />

o poder, isso seria como que curvar a força, fazer com que<br />

ela mesma se afete, em vez de afetar outras forças. Trata-se de duplicar<br />

a relação de forças, de uma relação consigo que nos permita<br />

resistir. Furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem contra o poder.<br />

Não se trata de formas determi<strong>na</strong>das, nem de regras coercitivas<br />

como no poder, trata-se de regras facultativas que produzem<br />

a existência como obra de arte, regras ao mesmo tempo ética<br />

e estética que constituem modos de existência ou estilos de<br />

vida. É o que Nietzsche descobriu com a sua operação artística<br />

da vontade de potencia, a invenção de novas possibilidades de<br />

vida. Elas são a todo tempo variáveis, já que o poder não para de<br />

recuperá-los e de submetê-las à relação de força, a menos que<br />

re<strong>na</strong>sçam inventando indefinidamente novos modos de ser, fato<br />

que para Deleuze representa a configuração do corpo sem órgãos,<br />

uma espécie de individuação particular ou coletiva, caracterizando<br />

assim a forma de acontecimento (agenciamento). No<br />

entanto, essa individuação acaba cativa de uma negociação do<br />

sentido onde e resignificada e transformado em valor de troca,<br />

culmi<strong>na</strong>ndo em uma relação ideológica de sujeição, de consentimento.<br />

Aqui provisoriamente chamo de ética do consentimento.<br />

120


Robert Oliven em seu Ensaio Sobre a Cultura e a Violência,<br />

indica um debate sobre as metamorfoses <strong>na</strong> cultura brasileira no<br />

sentido da variação dos processos de subjetivação. Apresenta um<br />

quadro esquemático que tenta compor diversos momentos da produção<br />

de significados culturais em uma articulação entre a cultura<br />

popular e a cultura hegemônica. A ressemantização do tema malandragem,<br />

que se constrói em um contexto em que o trabalho<br />

assalariado, aparece como um valor moral, e posteriormente como<br />

um comportamento desviante, como caso de poliícia.<br />

A arte musical de Noel Rosa representa uma marca da<br />

reestratificaçao do tema malandragem se tor<strong>na</strong>ndo cativa de uma<br />

mensagem pedagógica para desarmar o malandro. Nesse contexto,<br />

o rádio funcio<strong>na</strong> como principal veículo de ressemantização e<br />

transformação do samba em valor de troca de troca, atribuindo a<br />

ele um valor quantitativo.<br />

3.1. O paradoxo do estilo: a marca vira moda<br />

“Você disse que era bom/ A favela ouviu<br />

Wiskey, Red Bull, Tênis Nike e Fuzil...” (Racio<strong>na</strong>is)<br />

A moda e o estilo assumem uma função distintiva <strong>na</strong> contemporaneidade,<br />

marcando o que há de mais visível <strong>na</strong> aparência<br />

e <strong>na</strong> diferença entre os segmentos sociais, embora tenha uma<br />

função mais complexa do que essa simples operação podendo<br />

ainda assumir o caráter de uma matriz reguladora de diferentes<br />

formas de sociabilidades, bem como de elemento de distinção e<br />

de interação entre grupos.<br />

Neste processo realiza-se ao mesmo tempo uma aproximação<br />

e um distanciamento em relação do indivíduo e seus<br />

grupos, uma vez que a moda estabelece também uma marca<br />

que não está ligada somente à desig<strong>na</strong>ção de objetos e classes,<br />

mas sim à atitudes comportamentais, formas de perceber o<br />

mundo e ser percebido por ele, reinventando e resignificando valores,<br />

atitudes e estilos.<br />

121


Revela-se ainda um jogo simbólico duplo por parte do Hip<br />

Hop que algumas vezes acaba por ressignificar o sentido<br />

massificador dado pela mídia, estabelecendo uma espécie de tensão<br />

inter<strong>na</strong> do significado, classificada como ambiguidade. Ou<br />

seja, se por um lado a indústria cultural tende a homogeneizar<br />

padrões, estéticas e comportamentos, por outro lado esta não é<br />

uma questão fechada, deixa estradas, trilhas e caminhos para a<br />

manifestação de uma diversidade contestatória do próprio papel<br />

da indústria cultural.<br />

Pode ser entendida como um fenômeno articulado culturalmente<br />

e com o movimento e as características da sociedade <strong>global</strong><br />

e do consumo. Em seu reverso, portanto, a moda reserva outras<br />

significações que pode servir para pensarmos essa articulação.<br />

Você fuma o que tem, entope o <strong>na</strong>riz/Bebe tudo o que tem<br />

Faça o diabo feliz/ Você vai termi<strong>na</strong>r tipo o outro mano lá<br />

Que era um preto tipo A e nem entrava numa<br />

Mó estilo de calça Klein e tênis Puma<br />

Um jeito humilde de ser no trampo e no rolê<br />

Curtia um funk, jogava uma bola<br />

Buscava a preta dele no portão da escola<br />

Exemplo pra nós <strong>na</strong> mó moral, mó ibope<br />

Mas começou a colar com os branquinho do Shoping<br />

Ai já era, Ih! Mano! Outra vida, outro pique<br />

É só mi<strong>na</strong> de elite, balada, vários drink<br />

Puta de butique, toda aquela porra<br />

Sexo sem limite, Sodoma e gomorra (RACIONAIS MCS)<br />

A moda pode ainda ser pensada como um indicativo das<br />

diversas sugestões e das inúmeras possibilidades dos grupos marcarem<br />

simbolicamente sua aparição nos espaços sociais 28 , delimitando<br />

também territórios, sonoridades, vestuários, gestos e visual,<br />

revelados em suas formas de expressão e conduta. Ela consegue<br />

circunscrever espaços e formas de representação que fun-<br />

28 Identidades visuais.<br />

122


cio<strong>na</strong>m como instâncias ou territórios de referência comum. Nesse<br />

processo comunicativo, os grupos vão se constituir enquanto tribos<br />

urba<strong>na</strong>s, com ligantes simbólicos que incluem marcas de<br />

pertencimento e de afirmação. A aparência passa a significar existência,<br />

enquanto marca agregadora que comunica experiências<br />

comuns ou distintas. Embora o fenômeno da moda apresente<br />

importantes questões e debates no interior das sociedades contemporâneas,<br />

o mundo intelectual parece não a incluir em suas<br />

preocupações essenciais.<br />

Para Gilles Lipovetski (1989), este fenômeno precisa ser<br />

sublinhado como marca estrutural e estruturante das sociedades<br />

moder<strong>na</strong>s, pois este fenômeno não cessa de acelerar sua legislação<br />

fugidia, de invadir novas esferas, arrebatar em sua órbita todas<br />

as camadas sociais, todos os grupos etários, deixa impassíveis<br />

aqueles que têm vocação de elucidar as forças e o funcio<strong>na</strong>mento<br />

das sociedades moder<strong>na</strong>s.<br />

Alguns autores percebem a moda como um fenômeno situado<br />

em uma antecâmara da ciência, ou em uma esfera ontológica<br />

e socialmente inferior, e que, portanto, não merece uma investigação<br />

apurada. Nessa concepção a moda é tida como uma questão<br />

superficial que desencoraja qualquer abordagem conceitual,<br />

Entretanto para Lipovtski:<br />

... é preciso redi<strong>na</strong>mizar, inquietar novamente, objeto fútil,<br />

fugidio, “contraditório” por excelência, certamente, mas<br />

que, por isso mesmo, deveria estimular ainda mais a razão<br />

teórica. Pois a opacidade do fenômeno, sua estranheza, sua<br />

origi<strong>na</strong>lidade histórica são consideráveis. Como uma<br />

instituição essencialmente estruturada pelo efêmero e pela<br />

fantasia estética pode tomar lugar <strong>na</strong> historia huma<strong>na</strong>?<br />

Como pensar e explicar essa mobilidade frívola e rígida<br />

erigida em sistema permanente? Recolocada <strong>na</strong> imensa<br />

duração da vida das sociedades, a moda não pode ser<br />

identificada à simples manifestação das paixões vaidosas e<br />

distintivas; ela se tor<strong>na</strong> uma instituição excepcio<strong>na</strong>l,<br />

altamente problemática, uma realidade sócio-histórica<br />

123


característica do Ocidente e da própria modernidade.<br />

(LIPOVETSKI: 1989; 10)<br />

Quando se adota este caminho percebe-se que a moda e os<br />

objetos da cultura moder<strong>na</strong> não podem ser considerados exclusivamente<br />

como um esquema de distinção social, visto que este<br />

recorte é insuficiente para uma lógica que opera <strong>na</strong> inconstância<br />

e que por isso acaba por eleger como origem o que não passa de<br />

uma das funções sociais da moda.<br />

Esta apreensão indica uma simplificação que é recorrente a<br />

quase todas as explicações sobre o fenômeno da moda, uma espécie<br />

de inconsciente epistemológico do discurso sobre a moda propiciado<br />

sobretudo pela problemática marcante da distinção social.<br />

Caminhamos aqui no sentido apontado por Lipovetski em<br />

O Império do Efêmero, de que é tempo de efetuarmos um corte<br />

com a forma explicativa que privilegia o jogo dialético das classes<br />

sociais, uma vez que somente a relação entre distinção/marca/classe<br />

social seria insuficiente para explicar determi<strong>na</strong>dos fenômenos<br />

sociais, sobretudo no campo simbólico-cultural. O corte<br />

se dá no sentido de mostrar historicamente os valores e as significações<br />

presentes <strong>na</strong> leitura do fenômeno.<br />

No sentido aqui apontado, a moda deixa de ser percebida<br />

como um simples acessório ou enfeite estético, mas um elemento<br />

estrutural e estruturante <strong>na</strong> sociedade moder<strong>na</strong>, o que invalida ou<br />

põe em xeque as análises que postulam a moda ape<strong>na</strong>s como um<br />

resultado negativo em relação à cultura e ao pensamento. O certo<br />

é que todos esses discursos trazem em si um lamento partilhado<br />

tanto no meio intelectual quanto no meio político.<br />

Lipovetski (1989; 13), considera estas apreensões como<br />

um fato contrário ao movimento da sociedade moder<strong>na</strong>, uma<br />

perversão da moda e de seu poder <strong>global</strong>mente positivo tanto<br />

em relação às instituições democráticas, quanto em relação à autonomia<br />

das consciências.<br />

A moda, diz ele, não acabou de surpreender-nos, quaisquer<br />

que sejam seus aspectos nefastos quanto à vitalidade do<br />

124


espírito e das democracias, ela aparece antes de tudo como o<br />

agente por excelência da espiral individualista e da consolidação<br />

das sociedades moder<strong>na</strong>. Estes pontos devem estimular uma nova<br />

perspectiva teórica embora tenha sido justamente no domínio da<br />

vida do espírito que a denúncia da moda tenha encontrado<br />

inflexões mais virulentas. Pela análise da cultura de massa apreendida<br />

como uma máqui<strong>na</strong> destruidora da razão.<br />

Adorno e Horkheimer representam sem sombra de dúvida<br />

essa insurgência, crítica da deformação da cultura pela publicidade<br />

e pelo divertimento industrializado. A popularidade da canção<br />

ocupa o lugar do valor que é atribuído, gostar dela tor<strong>na</strong>-se<br />

quase a mesma coisa que reconhecê-la. A conduta valorativa se<br />

converteu em função para quem se sente cercado pelas mercadorias<br />

musicais estandardizadas. (Adorno, 1980)<br />

Para eles, todo esforço da arte colide com o empenho<br />

destrutivo da indústria cultural.<br />

O bombardeio enganoso da mesmice consistindo no oferecimento<br />

do mesmo e do sempre igual. Produção de efeitos de<br />

aparências sensorialmente agradáveis e passageiros, saído de uma<br />

incansável forma repetidora. E deste modo, não supõe uma entrega<br />

ao ouvinte, nem uma participação que estimule a<br />

(re)elaboração do que se ouve.<br />

Fetichizados, os produtos culturais deixam de falar como<br />

manifestações ricas do espírito humano para converterem-se em<br />

mercadoria própria ao consumo descartável e de fácil digestão.<br />

Assim Habermas a<strong>na</strong>lisará o “pronto-para-consumir”<br />

midiático, como um instrumento de redução da capacidade de fazer<br />

um uso crítico da razão, bem como G. Debord denuncia a falsa<br />

consciência produzida pela pseudocultura espetacularizada. Todas<br />

estas apreensões insistem <strong>na</strong> negatividade do fenômeno.<br />

Hoje mesmo, quando o pensamento marxista e<br />

revolucionário já não está em voga, a ofensiva contra a<br />

moda e, a cretinização midiatica partem novamente com<br />

125


mais força: outro tempo, outra voga para dizer a mesma<br />

coisa para dizer a mesma coisa; em lugar do coringa Marx<br />

tira-se a carta Heidegger; já não se brande a panóplia dialética<br />

da mercadoria, da ideologia, da alie<strong>na</strong>ção; medita-se sobre<br />

o domínio da técnica, a “autonegação da vida”, a dissolução<br />

da “vida com espírito”. (LIPOVETSKI: 1989; 15)<br />

É como se a contemporaneidade representasse uma grande<br />

miséria e aviltamento, um estágio constante de regressão e<br />

confusão mental, eco de uma crítica unânime ao império da moda,<br />

o que segundo este autor enraíza-se no mais profundo processo<br />

de pensamento que i<strong>na</strong>ugura a própria reflexão filosófica, desde<br />

Platão, onde o jogo de sombras e luzes barra a existência do verdadeiro,<br />

escravizando o espírito. É nesse sentido que a razão caminha,<br />

por uma luta implacável com as aparências, como o devir<br />

e a sedução das imagens, sentido que de certa forma corrobora<br />

com os ataques atuais ao fenômeno da moda.<br />

O consumo é tido como algo superficial que tor<strong>na</strong> as massas<br />

infantis, o rock e o Hip Hop podem parecer violentos e a televisão<br />

pode ser vista como fonte principal de embotamento da crítica<br />

neutralizando ou tor<strong>na</strong>ndo opaco um processo de individuação<br />

própria ao movimento da sociedade contemporânea.<br />

Deve-se dizer, no entanto, que:<br />

Não se considera a forma moda como antitética ao racio<strong>na</strong>l,<br />

pois a sedução é já nela mesma, por oficio, uma lógica<br />

racio<strong>na</strong>l que integra o calculo, a técnica, as informações<br />

próprias do mundo moderno; a moda consumada é o que<br />

celebra as bodas da sedução e da razão produtiva,<br />

instrumental, operacio<strong>na</strong>l. (LIPOVETSKI; 1989; 17)<br />

Igualmente, este autor considera que a moda produz<br />

inseparavelmente o pior e o melhor, cabendo exclusivamente a<br />

nós combatermos suas limitações e <strong>ambiguidades</strong>. Quando a moda<br />

é percebida dessa forma, ou seja, quando a moda não mais remete<br />

exclusivamente a um domínio de futilidades, passa então a desig-<br />

126


<strong>na</strong>r uma lógica e uma temporalidade social de conjunto em que<br />

Gabriel Tarde aparece como uma primeira tentativa sociológica a<br />

reconhecer teoricamente este fato, atribuindo assim uma dignidade<br />

conceitual, além de perceber <strong>na</strong> moda uma forma geral de sociabilidade,<br />

caracterizada pela imitação e pela atração às coisas estrangeiras.<br />

Para ele, a existência das sociedades está regulada por<br />

um fundo de ideias e de desejos comuns sendo, a semelhança entre<br />

as pessoas o principal elo constitutivo da sociedade.<br />

Segundo Tarde, a moda estaria caracterizada por dois princípios<br />

correlatos: de um lado uma relação de pessoa à pessoa, regida<br />

pela imitação dos modelos contemporâneos; de um outro lado,<br />

uma nova temporalidade, o presente social que ilustra a divisa da<br />

era de moda. A moda passa a exercer uma função importante no<br />

tempo presente, diminuindo a importância da tradição e deslocando<br />

o prestígio para a novidade, para a mudança, para o presente 29 .<br />

Para Tarde, a moda representa muito mais que uma instituição<br />

sem valor. Representa sobretudo uma temporalidade e uma sociabilidade<br />

determi<strong>na</strong>da. De certa forma a leitura de Tarde representa<br />

uma importante indicação, embora não tenha conseguido apreender<br />

o elo fundamental que une a moda às sociedades moder<strong>na</strong>s.<br />

Para Lipovetski, Tarde permanece prisioneiro de uma concepção<br />

trans-histórica da moda, operando uma extensão abusiva<br />

do conceito e ocultando a descontinuidade histórica que ela opera<br />

embora este fato não o tenha impedido de observar com lucidez<br />

a amplitude excepcio<strong>na</strong>l dos fenômenos de contágio de moda<br />

<strong>na</strong>s sociedades moder<strong>na</strong>s.<br />

Em busca das leis universais da imitação e de sua marcha<br />

irreversível, Tarde não reconheceu <strong>na</strong> moda uma invenção<br />

29 Vale dizer que para Tarde, por mais forte que seja a atração pelos imperativos do<br />

presente e da moda o prestígio dos ancestrais continua sempre a prevalecer. O<br />

elemento tradicio<strong>na</strong>l é sempre preponderante, representa um imperativo categórico<br />

do elo de sociedade, por mais profundas que sejam as transformações e as<br />

crises da moda.<br />

127


própria ao Ocidente moderno, e sim fez uma forma inelutável<br />

e cíclica da imitação social. (LIPOVETSKI: 1989; 267)<br />

Para Tarde, a imitação, de início é costume, depois vira moda,<br />

para novamente voltar a ser costume, resumindo assim o desenvolvimento<br />

geral da sociedade. Vale dizer que o tempo do fenômeno<br />

a<strong>na</strong>lisado por Tarde ainda não detinha a extensão que assumiu no<br />

século atual, deixando subsistirem amplos aspectos da vida coletiva<br />

sob o jugo da tradição e da autoridade. Este sentido não corresponde<br />

aos ditames do século XXI, onde a existência cotidia<strong>na</strong> se encontra<br />

em grande parte intermediada pelo efêmero e pela sedução.<br />

Aí está o novo histórico: nossas sociedades funcio<strong>na</strong>m<br />

fora do poder regulador e integrador do passado, o eixo<br />

do presente tornou-se uma temporalidade socialmente<br />

prevalente... São normas flutuantes, continuamente<br />

ritualizadas, que nos socializam e guiam nossos<br />

comportamentos. O império da moda assi<strong>na</strong>la essa imensa<br />

inversão da temporalidade social, consagrando a<br />

proeminência do presente sobre o passado, o advento de<br />

um espaço social apoiado no presente, o próprio tempo<br />

da moda. (LIPOVETSKI; 1989; 268)<br />

Sendo assim, o legado da tradição não define mais uma<br />

estrutura rígida (pelo menos da mesma forma que antes), pois<br />

cedeu lugar ao espírito da novidade, do acontecimento, embora<br />

não se deva reconhecer a inexistência de um poder coercitivo<br />

regulado pelos costumes, tais como casamentos, festas, cultos<br />

religiosos, e outras normas que tiveram uma existência social,<br />

mas que já não tem a mesma eficácia que anteriormente possuíam.<br />

Elas (as normas) persistem, mas sem o mesmo grau de coerção<br />

e com um sentido diferenciado, visto que se encontram sujeitas<br />

às inúmeras formas autônomas de subjetividades. Ainda<br />

que algumas formas tradicio<strong>na</strong>is continuem vigentes, a adaptação<br />

e a inovação não cessam de alterar a permanência das tradições.<br />

O Hip Hop pode ser exemplo disso.<br />

128


Tratando-se de cultura e arte, a relação com o passado é mais<br />

complexa, pois em parte alguma se vê as obras produzidas em épocas<br />

distantes serem desqualificadas. Embora se possam admirar tais<br />

obras, não mais nos servem de modelos, o que conferiu a ce<strong>na</strong> artística<br />

uma obsolescência necessária.<br />

Ao invés das transformações de fundo do começo do século,<br />

multiplicação das micronovidades e variações margi<strong>na</strong>is, sendo a<br />

arte cada vez mais estruturada pelos imperativos efêmeros do presente,<br />

pela necessidade de acontecer, embora se note que a<br />

abrangência da moda signifique outra coisa, menos a uniformização<br />

das convicções e dos comportamentos.<br />

Se por um lado ela homogeneizou os gostos e os modos de<br />

vida pulverizando os últimos resíduos dos costumes locais, difundiu<br />

os padrões universais do bem-estar, do lazer, do sexo, do<br />

relacio<strong>na</strong>l, por um outro lado, desencadeou um processo sem igual<br />

de fragmentação dos estilos de vida, o que institui uma questão<br />

sobre o elemento que assegura uma determi<strong>na</strong>da estabilidade do<br />

corpo coletivo 30 .<br />

Qual é o elemento ligante dos grupos de estilo, que adotam<br />

o visual como marca de identificação?<br />

Sabemos que este fato vem adquirindo visibilidade a partir<br />

dos anos 50, época que marca não somente a ampliação do consumo<br />

de massa, mas também uma relativa liberdade dos jovens.<br />

Nesta época consolidava-se a percepção da juventude de um segmento<br />

autônomo e com características próprias, o que contribuiu<br />

para o surgimento de diversos estilos individuais e coletivos.<br />

A explosão da cultura jovem <strong>na</strong>s décadas de 1950 e 60<br />

fortaleceu a difusão de novos valores, instalando uma cultura<br />

30 O termo diglossia social, inspirado pela linguística, é utilizado por Re<strong>na</strong>to Ortiz<br />

afim de apontar a incorporação de elementos que pertencem a uma cultura localizada<br />

a outros pertencentes de uma cultura industrial, que se difunde rapidamente<br />

pelo mundo: Esta mistura poderia liberar o indivíduo de suas referências de<br />

origem social, mas o reagruparia em estilos de vida.<br />

129


que exibe o não conformismo, a espontaneidade, o humor e a<br />

descontração.<br />

A ascensão do rock, dos ídolos pop e de astros e estrelas<br />

jovens também contribuíram para isso. Como se fosse uma segunda<br />

pele, que se associava ao prazer de se transformar aos olhos<br />

dos outros e de si mesmo, além de comunicar uma determi<strong>na</strong>da<br />

postura diante da sociedade em que formas e estilos ganham legitimidade<br />

de moda. Seja o descuidado, tosco, rasgado, descosturado,<br />

desmazelado, gasto, desfiado, esgarçado, até então rigorosamente<br />

excluídos. Tudo isso, faz parte do campo da moda, embora<br />

etiquetas exter<strong>na</strong>s gravem a posição social de quem veste.<br />

O traje rigoroso entra <strong>na</strong> categoria do antiquado. Funcio<strong>na</strong><br />

agora o exotismo e o folclórico (hippie, a confusão dos sexos,<br />

cabelos compridos e brincos para homens), a negligência, ou excesso<br />

do feio e do repulsivo (punk com suas calças furadas e com<br />

clipes e alfinetes), a afirmação étnica (rasta, afro).<br />

Por seus excessos, essas modas marcam grandes distâncias<br />

em relação à aparência media<strong>na</strong>, uma vontade de ser menos dependente<br />

dos já existentes padrões uniformizados. (CARMO: 2003; 202)<br />

Na década de 80, é substituída a ideia de moda pela ideia<br />

de estilo que quer significar um modo diferenciador e reconhecível<br />

de fazer algo, e nesse sentido o grupo e o individuo passam a<br />

ser reconhecidos pela forma como se mostram e agem. O estilo<br />

acaba por se tor<strong>na</strong>r uma importante expressão da identidade do<br />

grupo e dos ideais por ele adotado.<br />

Para Iva<strong>na</strong> Bentes (2003), as favelas brasileiras e a pele<br />

negra modelada por séculos de exclusão e crimi<strong>na</strong>lização, vêm se<br />

tor<strong>na</strong>ndo uma mercadoria “quente” <strong>na</strong> cultura urba<strong>na</strong> jovem. A<br />

industrialização das expressões urba<strong>na</strong>s e estilos de vida vindos<br />

da pobreza são fenômenos da ce<strong>na</strong> cultural mundial. Nesse sentido,<br />

“Made in <strong>Favela</strong>” poderia ser uma marca, simultaneamente<br />

de exclusão e distinção, de crimi<strong>na</strong>lização e mercantilização.<br />

Ao perceberem a inutilidade em proceder à exaustiva negação<br />

do mundo, estes milhões de jovens espalhados pelo Ocidente<br />

passaram a produzir seu próprio espaço de ação, criando<br />

130


seus próprios referenciais de contato com o mundo e inventando<br />

novos signos de cumplicidade para a convivência grupal.<br />

Um antropólogo diria que este grupo disperso, afi<strong>na</strong>do<br />

entre si e desafi<strong>na</strong>do em relação ao resto soube construir<br />

seu ethos e produzir suas forças simbólicas alter<strong>na</strong>tivas,<br />

como um modo de assegurar munda<strong>na</strong>mente sua<br />

alteridade e efetivar-se como uma diferença no meio do<br />

burburinho cosmopolita ávido pelo homogêneo.<br />

(MEDEIROS, 37/38, 2004)<br />

São grupos locais inventando saídas possíveis e rompendo<br />

com ideias engessadas de identidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Nas favelas produziram-se<br />

novas relações de vizinhança, multirões, redes de ajuda<br />

rizomáticas, a cultura das festas, rituais religioso, samba, funk, Hip<br />

Hop e todo um capital cultural e afetivo forjado em um ambiente<br />

de brutalidade e compartilhado por diferentes grupos sociais. A<br />

mudança decisiva é a dimensão política dessas expressões culturais<br />

urba<strong>na</strong>s e estilos de vida vindos da pobreza, forjados <strong>na</strong> passagem<br />

de uma cultura letrada para uma cultura áudio-visual e midiática.<br />

Discursos políticos fora de lugar que coloca em ce<strong>na</strong> esses<br />

mediadores e traficantes de cultura: rappers, funkeiros, b-boys, mas<br />

também outros grupos e discursos margi<strong>na</strong>lizados: favelados, desempregados,<br />

subempregados, drogados, uma margi<strong>na</strong>lidade difusa<br />

que aparece <strong>na</strong> mídia de forma ambígua, mas que pode assumir o<br />

lugar de um discurso político urgente das ruas e das favelas.<br />

A ideia de tribos ou tribalização passa por uma perspectiva de<br />

análise ultrapassa o campo de estudo sobre os jovens e se constituindo<br />

ainda como uma reflexão mais ampla a respeito dos efeitos e<br />

dos processos de <strong>global</strong>ização. É em relação a um contexto de troca<br />

sócio-cultural, marcado pela tensão entre a massificação e o desenvolvimento<br />

de pequenos grupos que se pode compreender o processo<br />

de formação das tribos urba<strong>na</strong>s como novas formas de socialidades<br />

juvenis. De acordo com Maffesoli, há uma alteração significativa no<br />

tecido social, relacio<strong>na</strong>do estritamente a produção e substituição de<br />

princípios e mecanismos tradicio<strong>na</strong>is que antes eram marcas defini-<br />

131


das de relações entre sujeitos. Este processo significa uma passagem<br />

de determi<strong>na</strong>dos tipos de relações para outros.<br />

Da passagem da organização político-econômica, para a importância<br />

das massas, dos grupos contratuais passamos às tribos urba<strong>na</strong>s.<br />

São a estas transformações <strong>na</strong>s relações sociais que Maffesoli<br />

chama de neotribalismo, que induz o sujeito a sair de seu<br />

enclausuramento (no que diz respeito a sua individualidade), e diluir<br />

sua experiência cotidia<strong>na</strong> no pertencimento a grupos ou tribos cujas<br />

características seriam a sua constituição em comunidades emocio<strong>na</strong>is<br />

intensas, às vezes efêmeras e ligadas diretamente a moda.<br />

São grupos constituídos por indivíduos que se reúnem regularmente<br />

e adotam para si um visual específico, um estilo, uma<br />

forma estética. Compartilham uma atividade, uma atitude que<br />

ocasio<strong>na</strong>m sensações fortes, conferindo sentido à uma existência<br />

portadora de contatos e contágios emocio<strong>na</strong>is. Se o pensamento<br />

clássico queria e pretendeu montar uma “história huma<strong>na</strong>” baseada<br />

<strong>na</strong> lógica da diferença entre os homens, procurando assim<br />

buscar os elementos que os tor<strong>na</strong>va comum de forma totalizante,<br />

agora caberia operar uma inversão metodológica nessa premissa,<br />

buscando trabalhar os elementos que tor<strong>na</strong>m os homens comuns<br />

entre si, apesar das diferenças.<br />

A retomada de valores grupais, baseados no rearranjo de<br />

conceitos como: comunidade, proxemia e ambiência, nos parecem<br />

como uma volta modificada a um passado-presente comum que<br />

nunca foi totalmente abando<strong>na</strong>do, uma vez que mesmo através<br />

das discussões entre conceitos como comunidade e sociedade<br />

que procuravam distinguir-se através de elementos binários: proximidade/distanciamento;<br />

relações face a face/relações impessoais;<br />

racio<strong>na</strong>lidade/tradição, não há um abandono total da comunidade<br />

mesmo nos grandes centros urbanos, uma vez que elementos<br />

como procissão, quermesse, terreiros de umbanda, conversas<br />

<strong>na</strong> porta de casa, ainda permanecem nos dias de hoje.<br />

Outra característica diz respeito a suas ações enérgicas,<br />

constituindo uma fonte fragmentada de resistência e práticas alter<strong>na</strong>tivas,<br />

uma energia subterrânea que exige mecanismos e ca-<br />

132


<strong>na</strong>is de expressão. Nessas formações societárias, é exigência fundamental<br />

que se viva em grupo, que se compartilhe com o grupo<br />

os códigos estéticos, rituais, espaços de convivência, etc. Nesta<br />

forma de socialidade as atitudes subjetivas se constituem em relação<br />

a um ambiente, é uma forma empática. Estas formações<br />

que parecem emergir como contraponto ao processo de fragmentação<br />

e de dispersão ocasio<strong>na</strong>dos pelo processo de <strong>global</strong>ização,<br />

da necessidade de espaços compartilhados em que se desenvolve<br />

uma forte interação.<br />

Viveríamos assim em um mundo cada vez mais classificado<br />

em termos “trans” <strong>na</strong> medida em que “assistimos<br />

tendencialmente à substituição de um social racio<strong>na</strong>lizado<br />

por uma socialidade com domi<strong>na</strong>nte empática”. (Maffesoli,<br />

2000: 17)<br />

Nesse sentido a emoção compartilhada junto com a<br />

comu<strong>na</strong>lização aberta suscitaria uma multiplicidade de grupos que<br />

constituiria uma forma de laço social. Se a modernidade vai trazer<br />

certo processo de individualização, ao mesmo tempo opera no sentido<br />

de redefinir o conceito de comunidade baseada <strong>na</strong> empatia.<br />

Nas sociedades contemporâneas verificamos o surgimento<br />

de novas formas grupais ou de socialidades em que a estética e a<br />

ética vão se tor<strong>na</strong>r os substratos principais. Desta maneira, a dinâmica<br />

sociocultural contemporânea tem se caracterizado principalmente<br />

a partir das décadas de 1980 e 90, pela emergência de<br />

novos atores sociais, tais como: MST, Movimento Negro, Movimento<br />

Ecológico, Movimento de Mulheres, Movimento de Meninos<br />

de Rua, entre outros, que foram se associar aos movimentos<br />

sociais tradicio<strong>na</strong>is que tinha por base reivindicações salariais,<br />

de cunho econômico e baseado <strong>na</strong> dinâmica de classe. Nesse<br />

sentido, há uma mudança significativa <strong>na</strong> apreensão da organização<br />

dos grupos sociais não mais por padrões econômicos (classe),<br />

mas sim por novas significações de caráter simbólico, espacial,<br />

estético e ético.<br />

133


A emblemática figura de Carlitos, no filme Tempos Modernos<br />

oferece uma significação não ape<strong>na</strong>s da dimensão econômico-político-social<br />

do homem <strong>na</strong> cidade, mas sim da perca da identidade,<br />

do estar imerso em uma grande engre<strong>na</strong>gem impessoal e<br />

impessoalizante, que leva tudo e a todos a um maquinismo<br />

atemporal e “aespacial”.<br />

O tribalismo representa uma das formas de sociabilidades<br />

de caráter urbano presentes <strong>na</strong> contemporaneidade, sendo marcado<br />

conceitualmente como uma maneira estética, cultural e vivencial<br />

(ethos). Indica ainda uma forma social que tenta se contrapor, criticar<br />

ou ainda exigir participação no status quo domi<strong>na</strong>nte (posição,<br />

status, classe), bem como nos sentidos tidos antes como fixos em<br />

nossas vidas, como representados no conceito de territorialidade e<br />

comunidade. Representa um processo que não vai estar relacio<strong>na</strong>do<br />

somente a um espaço físico determi<strong>na</strong>do, mas a aspectos estéticos,<br />

culturais e vivenciais que vão operar através de uma identidade<br />

de grupo. Estabelece-se mediante “uma noção de território<br />

que transcende a dimensão físico-espacial dos espaços segregados<br />

das cidades e uma dinâmica de consumo divorciado dos processos<br />

tradicio<strong>na</strong>is de trabalho”. (DIÓGENES, 1998: 37)<br />

Nesse sentido, há um processo de distinção dentro do espaço<br />

urbano que remete a áreas ou territórios considerados perigosos,<br />

onde seus moradores são estigmatizados através de um processo<br />

comparativos lugar/sujeito, produzindo assim, segundo<br />

Diógenes, “um referente de cidadania que se esvazia de eficácia<br />

para uma legião de ‘proscritos’ que se abrigam <strong>na</strong>s periferias urba<strong>na</strong>s”.<br />

(DIÓGENES, 1998: 36)<br />

São essas legiões de “proscritos” que vão “ence<strong>na</strong>r” novas<br />

formas de vivenciar e reterritorializar espaços considerados margi<strong>na</strong>is.<br />

Nesse sentido, noções como: área, quebrada, atitude e proceder,<br />

vão resignificar territorialmente um espaço determi<strong>na</strong>do como<br />

também simbolicamente gestos, estéticas, formas e atitudes dos<br />

moradores de uma determi<strong>na</strong>da área ou quebrada, tanto inter<strong>na</strong>-<br />

134


mente (relação com outras formas de sociabilidade inter<strong>na</strong>), como<br />

exter<strong>na</strong>mente (com relação a outras áreas ou territórios).<br />

Se por um lado existe um processo oficial que coloca a<br />

periferia enquanto um não-lugar, por ser denomi<strong>na</strong>do enquanto<br />

espaço perigoso e proscrito, ao mesmo tempo têm um processo<br />

que reterritoraliza destes espaços como áreas integradas a dinâmica<br />

cultural <strong>global</strong>.<br />

A partir dessa formulação podem-se localizar novos fenômenos<br />

vinculados a subjetividade dos jovens urbanos não se trata<br />

de denomi<strong>na</strong>r e identificar um grupo particular de jovens e sim<br />

dar conta de certo ethos presente em uma variedade de grupos<br />

juvenis, em sua maioria associados por uma tendência musical,<br />

ou a um estilo. Certa necessidade de assegurar determi<strong>na</strong>dos interesses<br />

comuns constituindo assim uma espécie de vínculo<br />

gregário baseado em valores específicos e a valorização do grupo<br />

como espaço de partilha de experiências cotidia<strong>na</strong>s e rituais que<br />

criam e consolidam o sentido de pertencimento 31 .<br />

31 Ver Tribos urba<strong>na</strong>s y mundo juvenil: breve aproximación conceptual. CINTERFOR<br />

Centro Interamericano de Investigación y Documentación sobre Formación<br />

Profesio<strong>na</strong>l.<br />

135


BRANCA


Capítulo 4<br />

As posses: A dimensão política e cultural do<br />

movimento Hip Hop<br />

No contexto da América Lati<strong>na</strong>, a revitalização do debate<br />

sobre a sociedade civil como um espaço democrático, se constrói<br />

mediante um contexto de abertura política, e consequentemente<br />

do aparecimento de novas agentes e experiências políticas, capazes<br />

de articular um debate sobre obtenção e garantias de direitos<br />

de cidadania.<br />

Nesse processo adquirem visibilidade segmentos da sociedade<br />

que antes eram calados e, excluídos da vida política, o que<br />

significa até certo ponto, um esgarçamento do espaço político,<br />

ou a consolidação e a ampliação do espaço público. Ampliação<br />

que tem a ver com a autonomia relativa dos novos agente políticos<br />

e que segundo Gohn (2002:15), caracteriza-se como parte<br />

dos novos movimentos sociais.<br />

Segundo esta autora, esses movimentos estão relacio<strong>na</strong>dos<br />

às explicações mais conjunturais, localizados em um âmbito<br />

político específico, o âmbito dos microprocessos da vida cotidia<strong>na</strong>.<br />

Devemos fazer recortes <strong>na</strong> realidade para observar a política<br />

dos novos atores sociais.<br />

As categorias básicas deste paradigma são: cultura,<br />

identidade, autonomia, subjetividade, atores sociais,<br />

cotidiano, representações, interação política etc. Os conceitos<br />

e noções a<strong>na</strong>líticas criadas são: identidade coletiva,<br />

representações coletivas, micropolítica do poder, política<br />

de grupos sociais, solidariedade, redes sociais, impactos<br />

das interações políticas etc. (GOHN: 2002:15)<br />

Para Gohn, o paradigma latino americano concentrou-se,<br />

em sua quase totalidade, nos estudos sobre os movimentos<br />

libertários ou emancipatórios, <strong>na</strong>s lutas populares urba<strong>na</strong>s por<br />

bens ou equipamentos coletivos, espaços para moradia urba<strong>na</strong>, e<br />

137


<strong>na</strong>s lutas pela terra <strong>na</strong> área rural. Mas é fundamental segundo<br />

TAVORALO (2001; 87), a ênfase no caráter político dessas associações<br />

espontâneas, em que os indivíduos relacio<strong>na</strong>m-se livres de<br />

coerções, onde prevalecem contatos horizontais que refletem o<br />

adensamento das práticas intersubjetivas de deliberação e execuções<br />

de questões em torno das quais esses indivíduos se coadu<strong>na</strong>m.<br />

Representam sobretudo formas e estratégias diferentes de<br />

posicio<strong>na</strong>mento frente às ingerências do Estado e da sociedade,<br />

com intenção de fortalecer seu papel de integração social. Nessas<br />

formas políticas, são os atores sociais que formulam questões<br />

e indicações de modelos de sociabilidades que julgam aptas<br />

para a dinâmica apresentada pela sociedade contemporânea.<br />

Em relação aos valores, encontram formas de continuidade<br />

com os movimentos da segunda metade do século XX, <strong>na</strong> medida<br />

em que valorizam a liberdade, individual, a autonomia, as possibilidades<br />

de emancipação e os princípios universalistas humanistas,<br />

que segundo ele, são essencialmente valores modernos.<br />

O ponto de distanciamento ou ruptura se dá em termos de<br />

uma mudança de ênfase e um redirecio<strong>na</strong>mento relativo a esses<br />

valores que constam do entendimento de que o alcance desses<br />

valores não se pode dar mediante as promessas da técnica e da<br />

ciência, mas sim por intermédio de uma recuperação da noção<br />

da importância das relações sociais normativamente reguladas,<br />

mesmo que essa normatividade não se dê mediante formas tradicio<strong>na</strong>is,<br />

da redefinição das relações da sociedade civil com o mercado<br />

e com o Estado de forma limitada, reificada.<br />

Os atores envolvidos nesta outra versão dos movimentos<br />

sociais, não carregam consigo qualquer desig<strong>na</strong>ção ou identificação<br />

com uma classe social da forma que traziam os movimentos<br />

sociais dos séculos anteriores. Tal fato trouxe à to<strong>na</strong> o reclame de<br />

determi<strong>na</strong>dos grupos sociais ou classes populares que até então<br />

eram desconhecidos <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> política, ou voluntariamente apartados,<br />

visto que suas expressões se constituíam mediante interesses<br />

distintos dos interesses da classe hegemônica.<br />

138


Existem séries descontínuas nesses movimentos sociais contemporâneos<br />

e é justamente esse ponto que constitui sua novidade.<br />

Pois constituem articulações, não mais em torno de problemas<br />

específicos de distribuição, mas em torno de questões relativas ao<br />

mundo vivido ou à gramática das formas de vida, como também a<br />

mudanças relativas às transformações recentes da sociedade industrial<br />

em que o movimento ecológico representa um exemplo<br />

claro dessa transformação. Tal como, o movimento feminista, o de<br />

homossexuais, negros ou quaisquer movimentos articulados em<br />

torno das minorias. Estes movimentos reclamam sua respectiva<br />

importância e atualidade política no mundo contemporâneo.<br />

Para Tavoralo, a novidade consta do entrelaçamento de<br />

questões relativas à distribuição de riquezas e questões relativas<br />

à gramática das formas de vida. Estes movimentos reclamam<br />

não somente benefícios do desenvolvimento econômico, mas fundamentalmente<br />

a ampliação do espaço político conjugados com<br />

o lado reivindicativo e expressivo. Um novo processo em que se<br />

verifica a constituição de pessoas <strong>na</strong> esfera pública.<br />

Para Melucci (1996:166), o “novo” nos movimentos sociais<br />

é ape<strong>na</strong>s uma questão aberta. Por outro lado, Gohn (2002: 125),<br />

considera que a melhor contraposição entre o novo e o velho foi<br />

feita por Clauss Offe que considera que o antigo paradigma, caracterizava-se<br />

pela ênfase no crescimento e <strong>na</strong> seguridade social. Enquanto<br />

que o novo paradigma, chamado também paradigma do<br />

“modo de vida” reivindica seu reconhecimento como interlocução<br />

válida. Atuam <strong>na</strong> esfera pública e privada, objetivando a interferência<br />

em políticas do Estado e em hábitos e valores da sociedade,<br />

articulando-se em torno de objetivos concretos.<br />

O que é novo é o paradigma da ação, que tem caráter<br />

eminentemente político. Os valores defendidos pelos movimentos<br />

em si não contém <strong>na</strong>da de novo, pois eles se referem aos<br />

princípios e exigências morais acerca da dignidade e da autonomia<br />

da pessoa, da integridade das condições físicas da vida, de<br />

igualdade e participação e de formas pacíficas e solidárias de<br />

organização social.<br />

139


Para Offe, esses movimentos não são novos nem pós-modernos<br />

no sentido de assumir novos valores que não tenham sido<br />

defendidos pela sociedade mais ampla, nem pré-modernos como<br />

resíduos de um passado idílico e irracio<strong>na</strong>l. Apesar de concordar<br />

com a quase totalidade dessas formulações, Gohn (2002), acredita<br />

que há a generalização de um conjunto de movimentos com<br />

características diferentes tanto quanto as problemáticas envolvidas<br />

como em relação aos contextos sócio-históricos em que ocorrem,<br />

gerando problemas <strong>na</strong>s suas análises.<br />

Os movimentos de gays e lésbicas, por exemplo, não se<br />

enquadram <strong>na</strong> última citação, pois eles estabeleceram <strong>na</strong>s últimas<br />

duas décadas uma série de novos valores que remetem a<br />

normas sociais que extrapolam o simples respeito à dignidade da<br />

pessoa huma<strong>na</strong> ou à liberdade individual dos cidadãos. Eles criaram<br />

um novo ethos, abriram novas possibilidades para seus direitos,<br />

como a escolha do próprio sexo, por exemplo. Não se trata<br />

de um valor defendido pela sociedade como um todo; ao contrario,<br />

existe forte resistência a esta demanda, por parte de conservadores<br />

e não conservadores, principalmente nos países de tradição<br />

religiosa cristã-católica, trata-se de um novo valor.<br />

Gohn ressalta que o reconhecimento efetuado por Offe, em<br />

relação aos movimentos sociais da segunda metade do século XX,<br />

procura compreender não simplesmente os valores, senão o modo<br />

como estes se realizam e a relação que se supõe entre a satisfação de<br />

valores distintos. Dessa forma para Offe, trata-se de um novo<br />

paradigma político de crítica moder<strong>na</strong>, a modernização em marcha.<br />

Gohn (2002), considera que uma das melhores análises<br />

interpretativas da vida cotidia<strong>na</strong> foi desenvolvida por Habermas,<br />

que se utiliza do conceito “mundo da vida” que possui duas dimensões<br />

distintas: de um lado ele se refere a um reservatório de<br />

tradições implicitamente conhecidas e de pressupostos automáticos<br />

que estão imersos <strong>na</strong> linguagem, <strong>na</strong> cultura e são utilizados<br />

pelos indivíduos <strong>na</strong> vida cotidia<strong>na</strong>. Por outro lado, o mundo da<br />

vida, contém três componentes estruturais distintos: a cultura, a<br />

sociedade e a perso<strong>na</strong>lidade.<br />

140


Quando os atores se entendem mutuamente e concordam<br />

sobre sua condição, eles partilham uma tradição cultural. Na medida<br />

em que coorde<strong>na</strong>m suas ações por intermédio de normas<br />

intersubjetivamente reconhecidas, eles agem enquanto membros<br />

de um grupo solidário. Nesse sentido, os indivíduos que crescem<br />

no interior de uma tradição cultural ou participam da vida de um<br />

grupo, inter<strong>na</strong>lizam as orientações valorativas deste grupo e adquirem<br />

uma capacidade específica para agir. Fato que delineia formas<br />

de identidades individuais e sociais. A reprodução de ambas<br />

as dimensões do mundo da vida envolve processos comunicativos<br />

de transmissão da cultura, de integração social e de socialização.<br />

O mundo da vida é diferenciado dos sistemas econômico.<br />

Trata-se de um subsistema da sociedade civil, sendo parte dela e<br />

não sua totalidade, e engloba várias formas institucio<strong>na</strong>is, que<br />

atuam como mecanismos de limitação e de mediação entre o mercado<br />

e o Estado.<br />

Essas instituições podem se estabilizar mediante normas<br />

jurisdicio<strong>na</strong>is especificas que ajudam a construir, por intermédio de<br />

suas práticas e demandas. As instituições podem funcio<strong>na</strong>r como<br />

agenciamento da produção de novos direitos, desde que esteja atuando<br />

numa sociedade que valorize a auto-organização e possibilite a<br />

publicidade das ações dos grupos coletivos organizados por intermédio<br />

da mídia ou de outras formas de publicidade. Assim o mundo<br />

da vida é fundamental para análise da sociedade civil, e esta última<br />

possui duas lógicas: uma dada pelo sistema econômico-político mais<br />

amplo, outra dada pelo mundo da vida.<br />

A diferenciação estrutural do mundo da vida é um dos aspectos<br />

dos processos de modernização e ocorre por meio da emergência<br />

de instituições especializadas <strong>na</strong> reprodução de tradições,<br />

solidariedade e identidades. É esta dimensão do mundo da vida a<br />

que melhor corresponde ao conceito de sociedade civil.<br />

Em Habermas, a compreensão do mundo da vida passa<br />

pela compreensão da consciência, mas ao contrário de Husserl e<br />

Schultz, que veem a consciência como fator primordial, obscure-<br />

141


cendo tudo o que é material, ele vê a a<strong>na</strong>lise da consciência como<br />

algo inseparável das circunstâncias materiais.<br />

Já nos anos 1970, Habermas formulou uma importante contribuição<br />

para composição de uma teoria sobre os movimentos<br />

sociais ao afirmar que eles criam possibilidades de novas relações<br />

sociais e de novas formas de produção, ao gerarem processos novos<br />

quando da busca de soluções alter<strong>na</strong>tivas aos problemas comuns<br />

enfrentados por seus participantes. Ele desenvolveu uma<br />

reflexão sobre os tipos de ações em conflitos coletivos em sua teoria<br />

da modernização, particularmente em suas versões mais recentes,<br />

quando trata das relações entre os atores e o mundo.<br />

Em sua leitura sobre a análise de Habermas, J. Cohen (1992),<br />

destacou as teses de Habermas que segundo ela, atribui dois em<br />

papéis aos movimentos sociais: eles são vistos como elementos dinâmicos<br />

no processo de aprendizado e formação de identidade social;<br />

e os movimentos com projetos democráticos têm potencial para<br />

iniciar processos pelos qual a esfera pública pode ser revivida. Ou<br />

seja, os movimentos são vistos por Habermas como fatores dinâmicos<br />

<strong>na</strong> criação e expansão dos espaços públicos da sociedade civil.<br />

Embora o autor veja neles uma reação particularista e defensiva,<br />

Cohen afirma que ele reconheceu o lado ofensivo dos<br />

movimentos quando da contestação de alguns aspectos negativos<br />

da própria sociedade civil. Habermas dá também fundamentos<br />

para compreensão da importância dos movimentos para além<br />

de suas formas históricas.<br />

Se concebermos o ganho dos movimentos sociais em<br />

termos da institucio<strong>na</strong>lização de direitos, tal como<br />

definimos, o desaparecimento de movimentos sociais, seja<br />

em virtude de sua transformação organizacio<strong>na</strong>l, seja devido<br />

à sua absorção por identidades culturais recentemente<br />

constituídas, não significa o desaparecimento do contexto<br />

que lega à sua própria geração e constituição. Os direitos<br />

conquistados por eles não somente estabilizam as fronteiras<br />

entre o mundo da vida e os movimentos sociais, entre o<br />

Estado e a economia, mas também constituem condição<br />

142


de possibilidade da emergência de novas associações.<br />

(Cohen, Arato, 1994:176)<br />

Os novos movimentos sociais desenvolvem uma nova cultura<br />

política ou novas identidades, com base <strong>na</strong> famosa distinção<br />

habermasia<strong>na</strong> entre sistema e mundo da vida, é uma incógnita<br />

para Cohen.<br />

A análise desenvolvida por Habermas trata os movimentos<br />

como indicadores do potencial de crise do capitalismo tardio.<br />

Ele identifica os novos movimentos sociais com a resistência<br />

defensiva aos processos de extensão da racio<strong>na</strong>lidade técnica<br />

dentro de todas as esferas da vida social. Ao mesmo tempo os<br />

movimentos demandam altos níveis de justificativa racio<strong>na</strong>l <strong>na</strong><br />

esfera moral e cultural. Para ele, os novos problemas sociais têm<br />

relação com qualidade de vida, igualdade de direitos, autorrealização<br />

individual, participação e direitos humanos. Contrastando com a<br />

velha política dos trabalhadores, a nova política advinda dos novos<br />

movimentos sociais advém basicamente da nova classe média<br />

da geração dos jovens e dos grupos sociais com mais alto grau<br />

educacio<strong>na</strong>l. Os novos movimentos sociais estão localizados <strong>na</strong><br />

esfera socio-cultural, e a ênfase de suas atividades está em temas<br />

como motivações, moralidade e legitimação.<br />

Outra novidade com relação aos novos movimentos sociais<br />

apontada por Tavoralo (2001: 92), está relacio<strong>na</strong>da com a<br />

forma de organização e modo de ação que se pauta de uma<br />

indiferenciação de status entre seus membros, sendo efetuada<br />

por uma frágil linha de demarcação entre os membros e os lideres.<br />

Age-se de forma a manter-se fora das linhas da política considerada<br />

oficial, restrita aos partidos políticos ou ao braço do<br />

Estado, intermediado por uma lógica de atribuições e receios de<br />

tomar para si tarefas que não são de sua alçada e que ocasio<strong>na</strong>ria<br />

um desvirtuamento de seus fundamentos principais.<br />

Ocorre a partir desses limites, como também a partir de lutas<br />

sociais empreendidas pelos movimentos e organizações em<br />

décadas anteriores que reivindicaram direitos e espaços de partici-<br />

143


pação social, a constituição de uma visão ampliada da relação Estado-sociedade,<br />

que reconhece como legítima a existência de um<br />

espaço ocupado por uma série de instituições do sistema gover<strong>na</strong>mental.<br />

Este espaço é trabalhado segundo princípios da ética e da<br />

solidariedade, enquanto valores motores de suas ações, resgatam as<br />

relações pessoais, diretas, e as estruturas comunitárias da sociedade,<br />

dadas pelos grupos de vizinhança, parentesco, religião, hobbies, lazeres,<br />

aspirações culturais, laços étnicos, afetivos etc.<br />

No Brasil esse papel passou a ser desempenhado pelas<br />

ONGS, que fazem mediação entre agentes coletivos organizados<br />

e o sistema de poder gover<strong>na</strong>mental, como também entre<br />

grupos privados e instituições gover<strong>na</strong>mentais. Configura-se outra<br />

institucio<strong>na</strong>lidade <strong>na</strong> qual se observa a reformulação da concepção<br />

de esfera pública, fato que resultou <strong>na</strong> construção de uma<br />

nova territorialidade política, ou subesfera, entre o público e o<br />

privado, a formação de um o público não estatal, e no surgimento<br />

de uma ponte de articulação entre estas duas esferas, dada<br />

pelas políticas de parceria.<br />

A hipótese central articulada por Gohn (2002), em sua pesquisa<br />

sobre os movimentos sociais é de que as utopias sociais<br />

transformadoras, tão caras à sociedade enquanto fatores de motivação<br />

e de mobilização das ações sociais coletivas, mas ausentes<br />

neste fi<strong>na</strong>l de século devido a queda de muros e regimes que<br />

sustentaram algumas delas, estão sendo teconstruídas a partir<br />

dessa nova concepção de sociedade civil.<br />

Nesse processo, observa-se o desenvolvimento de outra<br />

concepção <strong>na</strong> sociedade brasileira, a de cidadania. Tratada agora<br />

como uma categoria coletiva e não mais como categoria individual.<br />

Trata-se de uma cidadania ampliada, não restrita aos aspectos<br />

jurídicos e formais, onde de acordo com Silva Teles (1994), há<br />

o reconhecimento do outro, até então excluído, segregado e estigmatizado,<br />

como sujeito de interesses válidos, valores pertinentes e<br />

demandas legítimas. Acontece nesse processo o reconhecimento<br />

dos conflitos sociais que são impostos à agenda oficial.<br />

144


É constituída ainda uma nova linguagem, antes alicerçada<br />

<strong>na</strong> cultura política tradicio<strong>na</strong>l clientelista do favor e da submissão.<br />

Nesse novo percurso ocorre a aparição discursiva emergem<br />

novas categorias sociais políticas tais como grupos de<br />

favelados, de mulheres discrimi<strong>na</strong>das, de crianças maltratadas,<br />

de ecologistas militantes, de sem-terra e/ou sem-teto. Enfim, o<br />

acontecimento de uma espécie de recriação da esfera pública.<br />

Pode-se dizer que os novos atores sociais que emergiram nos anos<br />

70 à revelia do Estado <strong>na</strong> sociedade civil brasileira, e contra ele<br />

num primeiro momento configuram novos espaços e formatos<br />

de participação e de relações sociais.<br />

A nova configuração dos movimentos sociais se dá em especial<br />

<strong>na</strong> decorrência de crises inter<strong>na</strong>s, tais como capacidade de<br />

mobilização, de participação cotidia<strong>na</strong> em atividades organizadas,<br />

de credibilidade <strong>na</strong>s políticas públicas e de confiabilidade e<br />

legitimidade junto à própria população, como também da ocorrência<br />

das crises exter<strong>na</strong>s, onde se dá uma redefinição dos termos<br />

do conflito social entre os diferentes atores sociais e entre a<br />

sociedade civil e a sociedade política, tanto <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente como<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente. Aí estão relacio<strong>na</strong>dos acontecimentos como<br />

o fim da União Soviética, a crise das utopias e das ideologias,<br />

bem como das promessas da razão técnica.<br />

Além dos movimentos populares de trabalhadores rurais, e<br />

do recrudescimento da luta no campo onde cente<strong>na</strong>s de trabalhadores<br />

foram mortos. Consequentemente se dá o fortalecimento do<br />

MST que se apresenta nos anos 1990 como os maiores movimentos<br />

populares do Brasil, aparecem outros movimentos ocasio<strong>na</strong>dos<br />

pelo aumento da violência urba<strong>na</strong> e da pobreza <strong>na</strong>s cidades.<br />

Aparecem ainda nesse ínterim movimentos sociais articulados em<br />

torno de questões éticas ou de revalorização da vida huma<strong>na</strong>, acompanhadas<br />

de reações no plano moral em decorrência de constantes<br />

escândalos políticos que incluíam o clientelismo e o corporativismo.<br />

Aliado a todo esse quadro, destaca-se no cenário brasileiro<br />

o agravamento do desemprego, a insegurança, as chaci<strong>na</strong>s, os<br />

145


sequestros, o tráfico de drogas que contribuiram também para<br />

que a população, principalmente a classe média, desse resposta<br />

em formas de organizações. São associações que aparecem como<br />

definidoras de uma nova ação política desenhada de forma independente<br />

das organizações tradicio<strong>na</strong>is, incluindo o próprio Estado.<br />

Tal fato marca um espaço simbólico que opera por meios<br />

de projetos culturais junto a comunidades.<br />

Um bom exemplo dessa transfiguração da política, pode<br />

ser pensado a partir das iniciativas dos jovens favelados pertencente<br />

a grupos de Hip Hop que quase sempre são associados à<br />

incitação da violência e do tráfico de drogas.<br />

Pois o que temos hoje é o caminho inverso, práticas de cultura,<br />

estética, redes de sociabilidade e política forjadas dentro dos<br />

guetos, periferias e favelas, mas conectadas aos fluxos globais.<br />

O que há de novo nesses discursos fica bem claro no campo<br />

da música. Quando um rapper como MV Bill, negro, morador<br />

da favela Cidade de Deus, canta em ritmo hipnótico canções<br />

de guerra, como “Soldado do Morro”, sobre o tráfico de<br />

drogas, capitaliza numa só postura a rebeldia juvenil em estado<br />

puro, a moda, a virilidade, a “atitude” rapper e hip hop vendida<br />

no mercado, trazendo um discurso político renovado, fora<br />

das instituições tradicio<strong>na</strong>is: do Estado, do partido, do<br />

sindicato, do movimento estudantil etc. e próximo da cultura<br />

urba<strong>na</strong> jovem: música, show, TV, internet, moda. Discurso<br />

perturbador, <strong>na</strong> linha de fogo cruzado entre o Estado policial<br />

e o <strong>na</strong>rcotráfico. (BENTES: 2003; 13)<br />

A mensagem presente <strong>na</strong>s atividades do movimento Hip Hop<br />

conduz a uma mobilização política representada <strong>na</strong> posse que resulta<br />

da reunião de dois ou mais grupos para formar redes, inclusive<br />

redes eletrônicas que dão margens a associações de favelas e<br />

grupos antes isolados, com objetivos de realizar ações sociais <strong>na</strong><br />

comunidade, que incluem campanhas de conscientização, prevenção<br />

de doenças sexualmente transmissíveis, ofici<strong>na</strong>s de grafite,<br />

discotecagem, dança, entre outras atividades educativas e de lazer.<br />

Podemos citar os exemplos como da Rádio <strong>Favela</strong> em Belo Hori-<br />

146


zonte, da Central Única das <strong>Favela</strong>s (CUFA), ou ainda o Observatório<br />

de <strong>Favela</strong>s, no Rio de Janeiro. Em todas essas iniciativas se adotam<br />

como premissa de suas ações o protagonismo do morador da comunidade.<br />

Com a dissemi<strong>na</strong>ção de um discurso das potencialidades<br />

da internet, essas organizações e outras tendem a utilizar esses<br />

dispositivos para que os moradores de favelas possam participar<br />

da construção de sentidos sobre si. O uso das novas tecnologias<br />

surge neste contexto como uma estratégia política para produção<br />

de representações sobre os moradores de favelas e seus problemas<br />

diários, através de convergências de linguagens e de suportes para<br />

uma intervenção estética-política.<br />

São iniciativas que ao mesmo tempo representam a sujeição<br />

real dos moradores das comunidades pobres. Tal como a iniciativa<br />

do rapper MV Bill, <strong>na</strong> mostra do vídeo clipe “Soldado do<br />

Morro”, elaborado por ele que mostra uma criança com arma <strong>na</strong><br />

mão. Ele foi acusado de fazer apologia ao crime, mas defendeuse<br />

dizendo que fez tudo aquilo para mostrar que “os jovens <strong>na</strong><br />

favela vivem como refugiados”, acrescentando que “a omissão é um<br />

crime tão hediondo quanto o tráfico de drogas.”<br />

Para Gohn (2002; 309), o novo nos movimentos sociais se<br />

redefiniu novamente nos anos 90, isto é se fez em duas direções:<br />

primeiro, deslocando o eixo das reivindicações populares, antes<br />

centradas em questões de infraestrutura básica, ligadas ao consumo<br />

coletivo, para reivindicações relativas à sobrevivência física<br />

dos indivíduos. Retomou-se assim, a questão dos direitos sociais<br />

tradicio<strong>na</strong>is, nunca antes resolvidos no país, como o direito<br />

à vida e à sobrevivência. O segundo localiza-se no plano da moral,<br />

que ganhou lugar central como eixo articulador dos fatores<br />

que explicam a eclosão das lutas sociais.<br />

No caso específico dos movimentos juvenis é importante<br />

atentar para os novos sentidos que se podem atribuir ao que tradicio<strong>na</strong>lmente<br />

consideramos participação política, pois se observa a<br />

emergência de alter<strong>na</strong>tivas de participação, novas formas de<br />

fazer. (CERTEAU, 1994)<br />

147


4.1. O quinto elemento (consciência e atitude) ou a<br />

dimensão política do Hip Hop<br />

Embora se faça necessário compor um referencial do que<br />

se entende por atitude, sabe-se que se trata de um conceito<br />

empiricamente ambíguo por não possuir as marcas características<br />

de uma definição sociológica, o que se tor<strong>na</strong> um desafio para<br />

as ciências sociais, pois tal conceito carece de uma referência<br />

empírica clara e de relativa fixidez.<br />

A formulação é usada corriqueiramente por jovens que<br />

pertencem a grupos ou formações culturais diversas. Trata-se de<br />

uma formulação quase sempre se encaminha para fazer referência<br />

a uma marca de pertencimento, como se identificasse uma<br />

tendência, um estado de preparação ou de disposição que antecede<br />

a ação. Deste modo a atitude ou tendência a atuar se utiliza<br />

para explicar e dar conta de um determi<strong>na</strong>do tipo de ação.<br />

O termo atitude pode ser empregado no sentido em que se<br />

utiliza <strong>na</strong> vida cotidia<strong>na</strong>, podendo ser empregado de várias formas.<br />

Tentaremos delimitar seu uso de acordo com o uso feito pelos jovens<br />

para desig<strong>na</strong>r um elemento de identificação. Aqui se insere um<br />

problema sobre os processos educativos conjugados com a gravidade<br />

dos problemas sociais e associados com uma resistência calcificada<br />

pelas cente<strong>na</strong>s de anos de preconceitos e intolerâncias.<br />

Como admitir que um negro pobre e favelado possa instituir<br />

uma “ação-relação” de aprendizagem. Como esperar que uma<br />

experiência turbulenta e margi<strong>na</strong>lizada possa desenvolver e discutir<br />

propostas de cidadania, questões que se desdobraram ao longo<br />

de todo nosso estudo e nos faz entender o caráter da recusa desses<br />

temas dentro da própria academia pela sua suposta ba<strong>na</strong>lidade em<br />

relação ao requinte dos temas acadêmicos clássicos.<br />

Falar sobre o discurso do jovem suburbano, suas<br />

compreensões e formas simbólicas de ação não deixa de<br />

ser uma proposta de desmistificação, de desmonte do<br />

preconceito que grassa também dentro do espaço<br />

148


acadêmico, o que não é novidade visto que desde a época<br />

colonial, as dança praticadas pelas populações negras, como<br />

batuque, o jongo, o samba, o lundu, recebiam conde<strong>na</strong>ções.<br />

Praticadas <strong>na</strong> periferia dos núcleos urbanos e nos<br />

aglomerados rurais, estas como numerosas outras danças,<br />

serviam como delimitação dos limites civilizados, mesmo<br />

após a sua introdução <strong>na</strong>s festas populares como o car<strong>na</strong>val,<br />

e nos teatros e revistas musicais. (DUARTE: 1999; 14)<br />

Sabe-se que estes artistas populares e seus temas passaram<br />

por todo um processo discipli<strong>na</strong>r e de controle, sendo destituídos<br />

de todas suas características de práticas sociais. Estes artistas e<br />

seus temas, da mesma forma que os temas indíge<strong>na</strong>s foram incorporados<br />

como elementos constitutivos da <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lidade, atribuindo-se<br />

assim, marcas generalizantes e quase sempre situadas de forma<br />

abstrata e não como ações de indivíduos e grupos reais.<br />

Ao controle do corpo, acrescentava-se ainda o controle dos<br />

espaços, em especial dos espaços urbanos, delimitando-<br />

-os, bem como os períodos em que as festas populares<br />

podiam ser realizadas.<br />

No Rio de Janeiro, após as reformas urba<strong>na</strong>s do início do<br />

século, os subúrbios mais distantes, bem como as encostas<br />

dos morros, tor<strong>na</strong>vam-se os limites sociais permitidos as<br />

camadas populares e principalmente a população negra.<br />

(DUARTE: 1999; 16)<br />

Para Duarte, esses limites também definiam os espaços do<br />

samba, do candomblé e dos atabaques. Era a instituição e definição<br />

prática dos espaços proscritos que deviam permanecer como<br />

marcas de espaços ainda não atingidos pela ação da civilização e<br />

da modernidade, como se constituíssem uma população sobrante<br />

de ex-escravos, índios destribalizados, e toda sorte de<br />

subempregados e desempregados.<br />

Todos acabaram por sujeitar-se aos modelos universalizantes<br />

e homogeneizantes da escola formal, deslocando para o fundo da<br />

ce<strong>na</strong>, importantes acontecimentos e tradições dessas camadas da<br />

149


sociedade. Substituiu-se assim uma série de saberes e fazeres populares<br />

aprendidos de forma tradicio<strong>na</strong>l por um leque de formas<br />

de sociabilidades que se faziam distante de suas realidades e de<br />

suas histórias sociais e pessoais. Novas formas de cantos e<br />

oralidades discipli<strong>na</strong>das e harmônicas, além de impor padrões de<br />

movimentos corporais repassadas pelas aulas de educação física.<br />

Por outro lado, neutralizavam as formas tradicio<strong>na</strong>is de resistências<br />

pela atribuição de pureza dessas manifestações que segundo<br />

essa linha discursiva, tais manifestações ainda não estavam<br />

contami<strong>na</strong>das pela urbanização e a experiência da cidade.<br />

Dessa forma mais que uma simples recusa, havia um caráter de<br />

negação estrategicamente conduzido por uma elite branca e ligada<br />

diretamente aos benefícios do Estado. É como se a sociedade<br />

tivesse a intenção de esconder uma ferida aberta, e mostra uma<br />

cidade apresentável para o exterior, uma cidade combi<strong>na</strong>da com<br />

marcas positivas da cordialidade e da alegria.<br />

Guilherme, do grupo Os Cabanos, diz que não existe mais<br />

ingenuidade e a mensagem que o grupo se propõe a dizer é a<br />

partir de uma experiência constituída historicamente por mais<br />

que modificada com os valores da sociedade tecnológica. Ele diz<br />

que ainda existem grandes forças capazes de operar essa transformação:<br />

a religião, a ciência, a tecnologia e o Estado, a cidade<br />

é síntese desses arranjos. Diz ele:<br />

Todas suas mazelas estão aí <strong>na</strong> nossa cara, e não precisamos<br />

que ninguém nos diga isso... A cidade tem “galeroso” que<br />

está disposto a tirar tua gra<strong>na</strong> e tua vida para comprar droga,<br />

tem a polícia pra te enquadrar no crime. (Guilherme do<br />

Grupo Cabanos)<br />

Aqui se opera o corte em que o movimento Hip Hop aparece<br />

como uma si<strong>na</strong>lização para se mostrar a cidade e suas entranhas.<br />

Suas belezas e calamidades, sua poesia e sua guerra, sua<br />

amplitude e seus limites. O artista do Hip Hop tem a particularidade<br />

(e portanto a periculosidade), de falar como vê as coisas<br />

150


através de uma experiência cotidia<strong>na</strong> que abarca todas as espécies<br />

de impedimentos e preconceitos presentes no espaço urbano.<br />

A estética Hip Hop tem a sonoridade real da cidade, com<br />

suas sirenes, tiros, fugas, gritos, risos e sussurros eróticos e desvalidos<br />

em uma polifonia que se cruza com marcas definidas. No<br />

Hip Hop a imagem e a sonoridade da favela (a cidade polifônica)<br />

são pontuadas pela fala própria dos seus, uma linguagem dupla<br />

com códigos e mensagens que quase sempre confundem aqueles<br />

que não compartilham ou compreendem seu sentido, como se<br />

inventasse uma construção para si e a partir de si.<br />

Nesse processo fica evidente que a ação empreendida pelo<br />

sistema de educação formal não contempla e não reconhece a<br />

potencialidade dessas experiências sociais, além de não responderem<br />

aos interesses ou anseios dessas camadas sociais. Os jovens<br />

não se reconhecem nesses traços históricos impressos pela<br />

educação oficial que se utiliza constantemente de indicações teóricas<br />

importadas ou homogeneizantes.<br />

Sendo assim, o Hip Hop opera um corte e uma inversão<br />

importante no campo das propostas pedagógicas. Seu fundamento<br />

teórico é a própria experiência e seu questio<strong>na</strong>mento, põe em<br />

xeque uma série de valores de ordem tradicio<strong>na</strong>l e legal.<br />

Pesquisas desenvolvidas pela Unesco, confirmam a inexistência<br />

de políticas públicas voltadas para os jovens, bem como<br />

de seu desconhecimento sobre a condição juvenil <strong>na</strong> sociedade<br />

contemporânea o que conduz a práticas autoritárias e intolerantes,<br />

conduzindo práticas que impossibilitam o diálogo entre os<br />

jovens e as autoridades escolares.<br />

Atividades relacio<strong>na</strong>das à sexualidade, ao lazer, à violência,<br />

ao racismo, às drogas etc., que demandam dos jovens<br />

práticas e construções próprias para enfrentara a realidade,<br />

raramente são tomadas como objeto de reflexão. As<br />

organizações informais juvenis, como as galeras, as turmas,<br />

as gangues, as posses, que surgiram recentemente ainda<br />

são ignoradas. (SILVA: 1999; 25)<br />

151


As posses representam uma forma de organização característica<br />

do movimento Hip Hop, fundadas pela conjugação da arte<br />

com a realidade, a experiência urba<strong>na</strong> configurada em uma linguagem<br />

repleta de símbolos particulares e globais. Pela linguagem<br />

da arte a realidade é reelaborada como possibilidade de indicar<br />

caminhos pertinentes para o reconhecimento de valores de<br />

cidadania. É a partir delas que se estabelece uma rede de relações<br />

a fim de instituir ações <strong>na</strong> rua e nos espaços diversos de<br />

sociabilidade. Elas aparecem de maneira inventiva e como resposta<br />

política ao fracasso das ações educativas gover<strong>na</strong>mentais.<br />

Uma das causas do descompasso dessas relações, bem como<br />

do desconhecimento das potencialidades educativas do rap e de<br />

outros elementos do Hip Hop, parte da concepção de que os jovens<br />

da periferia são portadores de uma linguagem pobre e agressiva,<br />

marcada por gírias e palavrões. A relativização do outro, central<br />

para compreendê-lo nos seus próprios termos, encontra limites<br />

<strong>na</strong> reificação da linguagem formal. E a linguagem que deveria<br />

apresentar-se como mediadora das diferenças revela-se aqui um<br />

obstáculo por vezes intransponível. (SILVA: 1999)<br />

É justamente a linguagem articulada em torno da <strong>na</strong>rrativa<br />

urba<strong>na</strong> que se apresenta como ferramenta eficaz para realização<br />

de uma pedagogia diferenciada e múltipla por levar em conta as<br />

diferenças. Sua mensagem educativa funcio<strong>na</strong> com ênfase <strong>na</strong><br />

palavra e <strong>na</strong> oralidade, remontando uma forma discursiva em<br />

que no caso do rap, o cantor parece estar falando, tal como a<br />

especificidade das tradições africa<strong>na</strong>s.<br />

É certo que parte dessas tradições foram apresentadas em<br />

eventos populares, tal como o car<strong>na</strong>val e o samba, embora carreguem<br />

consigo uma série de idealizações e inversões de realidade.<br />

No Hip Hop entretanto, a ce<strong>na</strong> urba<strong>na</strong> é descrita com toda a sua<br />

dureza, beleza e caos estetizados de forma exemplificar a existência<br />

cotidia<strong>na</strong>. Da mesma forma que o samba carioca das décadas<br />

de 30 e 40, o Hip Hop funcio<strong>na</strong> como uma crônica que<br />

atualiza os conflitos e preconceitos presentes no espaço da cida-<br />

152


de. Aparece como uma espécie de porta-voz da periferia, escrevendo<br />

o cotidiano a partir de uma pulsação própria e sem retoques,<br />

mas que é reapropriado e ressignificado da mesma forma<br />

que inúmeros outros eventos da cultura, caminhado assim em<br />

uma constante tensão e ambiguidade.<br />

Embora haja certamente o interesse por parte de alguns,<br />

em participar intensamente dos benefícios do consumo, trazem<br />

um aspecto político articulado através de uma conjunção entre a<br />

ética e a estética, como se pretendessem realizar uma inversão<br />

simbólica de valores sustentados tradicio<strong>na</strong>lmente. Estabelecendo<br />

assim um diálogo participativo entre os autores e o público da<br />

periferia. É como se a prática artística do movimento se transformasse<br />

em uma referência para a cultura juvenil <strong>global</strong>izada ultrapassando<br />

seus limites proscritos, criando um estilo de ser a ponto<br />

de virar moda assimilada até mesmo pela classe média branca<br />

em constante reelaboração inviabilizando assim toda e qualquer<br />

rigidez da cultura.<br />

Nesse sentido as posses funcio<strong>na</strong>m como espaços para<br />

reformulações da prática do grupo e do bairro, instituindo-se como<br />

processos educativos intrinsecamente ligados ao que se<br />

convencionou chamar de quinto elemento, e que se constitui como<br />

um processo que se encaminha no sentido de apresentar e discutir<br />

questões ligadas e experiência do grupo.<br />

Este processo educativo passou a privilegiar a criação de<br />

novos espaços e modos de ser. Por esse motivo há uma necessidade<br />

premente de pesquisas sistemáticas sobre estes modos constitutivos<br />

que se materializam no cotidiano dos jovens das áreas<br />

periféricas, bem como <strong>na</strong>s suas manifestações culturais, possibilitando<br />

com isso, novas possibilidades de emancipação e cidadania,<br />

novas possibilidades existenciais, sociais e políticas criadas<br />

e inventadas a partir desses próprios atores.<br />

153


BRANCA


Essa “quebrada” é nossa!<br />

Leitura sobre a luta por espaços <strong>na</strong> cidade<br />

“Nós estamos chegando... Quem não conhece vai se desesperar”<br />

(Código Fatal)<br />

Pela arte a realidade é reelaborada como linguagem simbólica: rap,<br />

break e grafite surgem como suportes estéticos necessários à expressão<br />

da realidade, como local de agregação dos manos. É a partir das posses<br />

que a rede de relações entre o grupo é estabelecida e a política de<br />

intervenção nos espaços das ruas é concretizada. (Silva: 1999: 33)<br />

A discussão surge da necessidade de compreender a noção de<br />

território, mais precisamente sua relação com a dialética constitutiva<br />

dos espaços <strong>na</strong> cidade configurada <strong>na</strong>s diversas formas de ação dos<br />

grupos sociais juvenis. Destaca um problema sociológico que se<br />

constitui <strong>na</strong> esteira de novas formações sociais em que estão incluídas<br />

maneiras distintas de identificações ou de pertenças sociais.<br />

Diz respeito a ampliação das redes de relações, ou das trocas<br />

simbólicas, culmi<strong>na</strong>ndo <strong>na</strong> abertura de espaços capazes de alojar<br />

as mais inusitadas expressões culturais. São formas que reclamam<br />

o reconhecimento de seus membros como legítimos moradores<br />

da cidade. Estão envolvidos numa luta propriamente simbólica<br />

onde tentam impor uma definição de mundo social conforme<br />

os seus interesses.<br />

Sobretudo, é uma resposta à impossibilidade de realização<br />

das utopias propostas pelo mundo racio<strong>na</strong>l e pelo modelo imaginário<br />

de um Brasil cordial, forma que afirma a hipótese de que<br />

este país é uma <strong>na</strong>ção em busca de conceito, ou constitui como<br />

diz Ianni (2002), uma nebulosa movendo-se no curso da história<br />

moder<strong>na</strong> em busca de articulação, e direção, como se a história<br />

do país de desenvolvesse em termos de signos, símbolos e emblemas,<br />

figuras e figurações, valores e ideias, alheios às relações,<br />

processos e estruturas de domi<strong>na</strong>ção e apropriação, com os quais<br />

se poderiam revelar mais abertamente os nexos e os movimentos<br />

da sociedade, em suas distintas configurações e desenvolvimen-<br />

155


tos históricos 32 . Constitui o traço de um particularismo que ainda<br />

tenta encontrar uma definição baseada no ideal do Estado-Nação,<br />

uma identidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

Nesse processo mencio<strong>na</strong>do aparece, entre outras, a ideia<br />

do homem cordial, uma espécie de individualidade alheia ou avessa<br />

ao mundo racio<strong>na</strong>l, e que em grande parte povoam os estudos<br />

e as <strong>na</strong>rrativas, as realidades e as fantasias, como composição de<br />

uma variada cartografia. 33 Não se deve esquecer que estas visões<br />

do Brasil aparecem em um contexto intelectual determi<strong>na</strong>do e<br />

envolvido por <strong>tensões</strong> próprias de uma época histórica. 34<br />

Aqui evidenciamos formas de sociabilidades – demonstradas<br />

a partir dos grupos juvenis – que insinuam uma nova apreensão<br />

do Brasil enquanto um cenário conflituoso, revelado a partir<br />

de expressões culturais singulares, caracterizados por grupos juvenis.<br />

Uma marca significativa que mostra o desenho de uma<br />

realidade caótica que se instaura <strong>na</strong>s cidades, mais precisamente<br />

no encontro entre favela/bairro e os espaços privilegiados do<br />

centro da cidade, que aqui considero como asfalto/cidade.<br />

São demonstrações de impedimentos <strong>na</strong> forma de<br />

pertencimentos sociais, onde a cor, posição social, gosto e temperamento,<br />

o estilo pode desorde<strong>na</strong>r o fluxo entre uma área e<br />

outra, e precipitar atritos entre grupos articulados a diferentes<br />

malhas territoriais. (ALVIM: 2000; 28)<br />

Este é o fio condutor sobre o qual se busca construir uma<br />

leitura sobre as <strong>tensões</strong> marcadas pela falência do modelo cultural<br />

mítico de um Brasil cordial, tendo como cenário a cidade.<br />

32 E aqui se tor<strong>na</strong> necessário fazer uma etnografia da cidade, para então juntar os<br />

fragmentos tentando criar um arranjo para um novo entendimento das práticas urba<strong>na</strong>s<br />

e de certas forma dos rituais de conquista do espaço público, em sua polifonia, ou<br />

em suas redes múltiplas de sociabilidade, estilos de vida, movimentos e conflitos.<br />

33 Nessa linha estão os estudos de Sergio Buarque de Holanda, Ribeiro Couto,<br />

Graça Aranha, Paulo Prado, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Sílvio Romero,<br />

José de Alencar, Gonçalves Dias, entre outros.<br />

34 Ver Ianni em seu ensaio intitulado Tipos e Mitos do Pensamento Brasileiro In<br />

“<strong>Revista</strong> Brasileira de Ciências Sociais”. Volume 17, n. 49, 2002.<br />

156


A perspectiva mítica se esvazia, a partir dos anos 90 do século<br />

passado, precisamente no momento em que o movimento Hip Hop<br />

(entre outros), se encontra em ple<strong>na</strong> ação, exigindo espaços de representação<br />

e exposição de seus traços característicos e identidade.<br />

Emerge mediante uma rede complexa de trocas culturais e da inconsistência<br />

de determi<strong>na</strong>das formas políticas de representação política.<br />

Si<strong>na</strong>is expressos <strong>na</strong> sua linguagem, no movimento corporal, <strong>na</strong><br />

música, no grafite e em toda sorte de experiências cotidia<strong>na</strong>s.<br />

Aqui não se tem a intenção de pensar as novas formas de<br />

sociabilidade no Brasil a partir desses novos agentes a fim de<br />

esclarecer o uso de determi<strong>na</strong>dos conceitos e categorias que constam<br />

no projeto de pesquisa.<br />

Em especial, a forma como se processa a construção daquilo<br />

que chamarei de novos espaços de representação, que figurativamente<br />

estão situados aqui, <strong>na</strong> expressão quebrada, que se<br />

mostra como um indício de redefinição e ressignificação dos espaços<br />

da cidade, e de certa forma implicam em uma tomada simbólica<br />

da cidade. Espaços que são conquistados, <strong>na</strong>s trocas, <strong>na</strong>s<br />

negociações, ou mesmo <strong>na</strong> luta física.<br />

A quebrada se apresenta, inicialmente, como uma<br />

territorialidade vaga, mas presente <strong>na</strong>s passagens da cidade, nos<br />

muros, nos prédios, nos túneis. Representa, especialmente, um território<br />

especifico: a favela-bairro, local onde habitam, em número<br />

representativo, os integrantes de grupos juvenis, que de certa forma<br />

compartilham as mesmas experiências e <strong>tensões</strong> do cotidiano,<br />

e se encontram relativamente protegidos neste lugar. Possuem marcas<br />

de pertença simbólica 35 e social: são os considerados, os manos,<br />

os chegados, aqueles que compartilham entre si um modelo ético<br />

forjado <strong>na</strong>s suas experiências ordinárias. Os integrantes da quebrada<br />

reconhecem sintomaticamente quem é da quebrada, ou ainda<br />

35 Há uma possibilidade de fazer uma associação com o termo Topofilia como<br />

sendo o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. (Tuan 1980:106)<br />

A palavra topofilia é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido<br />

amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente<br />

material. Estes diferem profundamente em intensidade, sutileza e modo de ex-<br />

157


do pedaço, da “minha” área, fato este que às vezes se encaminha<br />

para uma postura violenta como no caso das galeras.<br />

Esses grupos fundam uma espécie de territorialidade que<br />

pode ultrapassar os limites do bairro e imprimir-se <strong>na</strong>s passagens<br />

da cidade fato indicando para uma extrapolação de um espaço antes<br />

restrito à visão polar favela/bairro, o que remete a uma hipótese<br />

de que não existe ape<strong>na</strong>s um processo de desterritorialização,<br />

mas sobretudo, uma superposição de novas experiências no espaço<br />

da cidade, o que provoca <strong>tensões</strong> e conflitos.<br />

Com o aparecimento dessas novas expressões juvenis parece<br />

ter ocorrido uma inversão significativa do uso da cidade em<br />

que alguns grupos em vez de protegerem-se, esconderem-se ou<br />

resguardarem-se nos limitem da casa, do bairro ou da favela, parecem<br />

partir para uma contra ordem, ou seja, a de exibirem-se e<br />

movimentarem-se nos escuros, nos becos e até mesmo, se necessário<br />

nos esgotos, como no caso dos punks que não só fazem<br />

questão de ocupar a cidade, mas também de usá-la ao extremo.<br />

Eles são habitantes da velocidade urba<strong>na</strong> e estão prontos para<br />

escapar e atacar eficientemente se for o caso.<br />

Sair da favela/morro, recortar o mapa da cidade e reconstruílo<br />

ao seu modo e de acordo com suas preferências e alianças<br />

foram, sem dúvida, suas maiores transgressões. (GOMES<br />

DA CUNHA: 1997:107)<br />

Para Gomes da Cunha, em sua discussão sobre o movimento<br />

funk, o afastamento do que se constitui o seu território e emblema<br />

deste movimento, conduz de fato à intolerância e ao racismo, à<br />

perseguição policial e até mesmo ao extermínio. Perambular ou<br />

circular pelas ruas e bailes representariam, então, uma espécie de<br />

transbordamento: a favela/morro invadiria o asfalto/cidade.<br />

-pressão (Ibid. p. 107). As respostas ao meio podem ser estéticas, prazerosas,<br />

táteis no sentido de sentir. Sensações que vão enraizando os humanos ao lugar,<br />

tor<strong>na</strong>ndo-os parte integral do meio.<br />

158


É como se estivessem fora do lugar, o que parece imprimir<br />

uma dinâmica diferenciada de ocupação e socialização do espaço<br />

urbano. É como se a organização desses grupos e sua socialização<br />

em áreas e posses, <strong>na</strong> cidade, fossem balizadas a partir de<br />

uma fragmentação. São gangues, bandos, turmas, galeras que<br />

exibem – <strong>na</strong>s roupas, <strong>na</strong>s falas, <strong>na</strong> postura corporal, <strong>na</strong>s preferências<br />

musicais – o pedaço a que pertencem (MAGNANI: 2002).<br />

Aqui em nosso caso: a quebrada, significando laços de<br />

pertencimento e estabelecimento de fronteiras.<br />

Este fato evidencia a importância que vem adquirindo a<br />

apropriação de alguns espaços da cidade, <strong>na</strong> medida em que permite<br />

um reconhecimento desta área feita em certo sentido da<br />

periferia ao centro.<br />

E deste modo que ruas e esqui<strong>na</strong>s do mesmo bairro (ou<br />

em relação aos espaços do centro) traduzem diversas formas<br />

de viver, conceber e imagi<strong>na</strong>r o tecido social e o uso do<br />

espaço. (DIOGENES: 1997:120)<br />

A cidade se projeta como uma escrita legível onde estão<br />

impressas as marcas de desigualdade, fome, exclusão social, arbítrio<br />

da polícia e segregação espacial. A apropriação é marcada,<br />

assim por uma transitoriedade, que recorta a cidade e mostra indícios<br />

das tramas e insatisfações que envolvem a juventude urba<strong>na</strong>.<br />

Nessa leitura há uma ideia de identificação e de aproximação<br />

entre os que participam de uma mesma experiência social e<br />

onde se projeta uma imagem de poder <strong>na</strong> cidade e ace<strong>na</strong>ndo para<br />

a possibilidade de potencialização dos que foram colocados para<br />

fora da cidade oficial. Nesse sentido o Hip Hop é um acontecimento<br />

da ordem das relações de sociabilidade juvenil, representando<br />

ainda, uma forma peculiar de apropriação do espaço urbano<br />

e do agir coletivo. Esta é uma outra hipótese, que resulta da<br />

compreensão da noção de território que aqui se qualifica como<br />

espaços de representação. As noções de território e poder estão<br />

aqui relacio<strong>na</strong>das. A interpretação dessa relação é fundamental para<br />

a compreensão dos movimentos de juventude aqui referidos.<br />

159


A juventude favelada é detestada por segmentos da classe<br />

média, sentimento que é revelado e até mesmo institucio<strong>na</strong>lizado<br />

<strong>na</strong> medida em que o espaço social brasileiro é legal (porque<br />

assegurado pelo Estado), e claramente demarcado. As principais<br />

áreas, desti<strong>na</strong>das ao lazer, são consideradas patrimônio de uma<br />

classe. O patrimônio dos jovens da favela é inexistente no espaço<br />

da cidade, a não ser aqueles construídos por eles mesmos.<br />

Para Gomes da Cunha (1997), o funk funcio<strong>na</strong>ria como<br />

metáfora de uma cultura urba<strong>na</strong> desterritorializada cujo principio<br />

segundo a mídia, seria o de ritualizar sua própria violência.<br />

Fato que imprime em seus frequentadores, consumidores e produtores<br />

uma espécie de marca estigmatizante, ou seja, identidades<br />

fortemente vinculadas à violência e ao crime e nesse sentido<br />

marcados como não pertencentes ao asfalto/cidade.<br />

Ao divulgarem a imagem estereotipada de jovens suburbanos<br />

como jovens ameaçadores, envolvidos com crime, saques e<br />

sublevações, os meios de comunicação conduzem a<br />

representação do público sobre um tipo de protesto das<br />

classes populares. Operando com um sistema de classificação<br />

em que os sujeitos são definidos conforme sua posição no<br />

espaço sócial, elas acabam por criar efeitos de mediatização<br />

sobre a população margi<strong>na</strong>lizada. (ALVIM:2000; 29)<br />

Este fato acarreta dificuldades em se definir os contornos<br />

da juventude, obscurecendo a relação entre as manifestações e<br />

os contextos sociais, pela insistência em territorializar a violência.<br />

Acabando fi<strong>na</strong>lmente por quedarem em uma antinomia, por<br />

intermédio de um olhar que demarca e toma o eventual pelo rotineiro<br />

36 e pelo cotidiano, acabando por lhe ditar um espaço de<br />

conformação, limites de sua presença <strong>na</strong> cidade, que fi<strong>na</strong>lmente<br />

resulta em conflitos de posse e atuação, ou de outra forma <strong>na</strong><br />

luta por espaços de representação.<br />

A expressão “quebrada”, encontra sua conveniência no momento<br />

em que os rappers afirmam um território específico. Um<br />

36 Esses novos sujeitos, saídos dos gueto e das favelas, aparecem <strong>na</strong> mídia de forma<br />

isolada, quando <strong>na</strong> verdade são uma importante e nova forma política. São sociabili-<br />

160


território marcado por formas de representações: a quebrada tem<br />

como referência, registros de cor, repertórios estéticos, ou da<br />

exclusão social. Acima de tudo, formas criativas de superarem a<br />

precariedade da vida material que constam <strong>na</strong> atribuição de novos<br />

sentidos aos espaços da cidade. Uma forma cultural que reclama<br />

a cidade como um espaço de representação.<br />

São territórios marcados simbolicamente nos muros, nos<br />

prédios, praças, espaços que permite-nos fazer uma apreensão<br />

destes, enquanto passagens identitárias reveladas <strong>na</strong> esfera pública.<br />

Todas essas inscrições nos espaços da cidade podem ser<br />

entendidas como uma escrita que revela códigos particulares,<br />

instituindo um modelo comunicativo, ou uma escrita urba<strong>na</strong>, uma<br />

disposição para o nomadismo 37 .<br />

Para os rappers há um processo de reconhecimento de um<br />

igualdade, entre os manos, com relação aos outros, ao estranho,<br />

aos boys, aos branquinhos de shoppings, que se dá através de uma<br />

homogeneização de atitudes, formas de comportamento (proceder),<br />

conhecimento do cotidiano das ruas e pertencimento a um<br />

determi<strong>na</strong>do território, uma quebrada, daí vem o fato de ser da<br />

quebrada adquirir um sentido de se ser reconhecido enquanto<br />

mano, um igual, aquele com que se partilha determi<strong>na</strong>das atitudes<br />

e dele se espera também tal reciprocidade. Essa marcação de<br />

pertencimento representa ainda (RODRIGUES: 2004)<br />

“Uma totalidade vivamente experimentada tanto como<br />

recorte de fronteira quanto como código de pertencimento<br />

pelos integrantes do grupo.” (MAGNANI: 2002)<br />

-dades políticas forjada nesse meio, nos guetos, periferias e favelas conectadas aos<br />

fluxos globais. Grupos locais apontando saídas possíveis, rompendo com o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-popular<br />

e ideias engessadas de identidade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, expressões da <strong>Favela</strong> Global,<br />

dos guetos mundo. Representam a formação de novas relações de vizinhança,<br />

mutirões, redes de ajuda rizomáticas, a cultura do funk, do hip hop ou de todo um<br />

capital cultural formado nesses espaços relacio<strong>na</strong>is da cidade.<br />

37 O nomadismo, tanto pode ser entendido em seu sentido literal de deslocamento<br />

espacial e geográfico ou mesmo descentramento, desespacialização como também o<br />

significado se amplia em direção a uma mobilidade temporal – viver tempos de<br />

161


Uma espécie de tomada simbólica da cidade através de signos,<br />

representados <strong>na</strong>s inscrições dos espaços da cidade, a maneira<br />

de um anonimato participante, que resultariam em um novo<br />

tipo de ofensiva. São delimitações estratégicas já que encontram<br />

resistências no que diz respeito à construção de um espaço fixo,<br />

ou campo simbólico regulamentado. 38<br />

A dimensão simbólica desse espaço dos rappers difere da<br />

exigida pelos funkeiros, apesar de as duas formas terem como<br />

espaço privilegiado a favela/morro. Os raperrs se utilizam de uma<br />

atitude que procura negociar o uso do espaço da cidade. Tem,<br />

sobretudo, a clareza da possibilidade política dos encontros, reconhecendo<br />

claramente suas diferenças no plano simbólico e<br />

material em relação aos funkeiros.<br />

Fundamentalmente, tem-se a intenção de mostrar, neste estudo<br />

como se dá a apropriação do espaço urbano, por parte dos grupos<br />

juvenis ou pelo menos o reclame do direito a um lugar de aparecimento<br />

e representação em forma de signos, significações, códigos e<br />

conhecimentos que permitem falar sobre determi<strong>na</strong>da prática.<br />

Os espaços de representação são os mais diversos, desde<br />

muros, até fachadas de prédios, praças, ruas, etc., onde estes grupos<br />

procuram sobretudo estabelecer suas marcas como novas<br />

formas de identidade, que são demarcadas com rigorosidade das<br />

formas construídas a partir da ideia de um Brasil como <strong>na</strong>ção sem<br />

conflitos de ordem étnica. Uma <strong>na</strong>ção onde seria possível a diversidade,<br />

ou o discurso similar que diz ser o Brasil, um país do fute-<br />

passagens, de alternância momentânea, de simultaneidades; ou ainda supor a existência<br />

de um nomadismo de percepção, que segundo Simmel, no sentido de –<br />

absorver fluxos, filtrar, aparar, assimilar, equacio<strong>na</strong>r os inúmeros choques resultantes<br />

da vida cotidia<strong>na</strong> tensa e intensa, permeada pela relação com a cidade.<br />

38 Como diz Baudrillard, <strong>na</strong> sua teoria política dos signos, um novo tipo de<br />

intervenção <strong>na</strong> cidade (os grafites), provêm da categoria do território. Eles<br />

territorializam o espaço urbano decodificando-o. Esta rua, aquele muro, tal quarteirão,<br />

assumem vida através deles, tor<strong>na</strong>ndo-se território coletivo. E eles não se<br />

circunscrevem ao gueto, eles exportam o gueto para todas as artérias da cidade.<br />

162


ol e do car<strong>na</strong>val, e onde acima de tudo não se tem guerras, terremotos,<br />

epidemias, racismo ou outra ordem de conflitos.<br />

É como se a antiga imagem que tínhamos do Brasil cedesse<br />

espaço no imaginário social, a um novo retrato mais<br />

fragmentado e plural da <strong>na</strong>ção (...) pistas que possibilitam<br />

repensar o Brasil contemporâneo. (HERSCHMANN:<br />

1997:56)<br />

É o desmonte de ideias, tais como cordialidade, democracia<br />

racial e outros termos semelhantes que vinham sendo usados como<br />

palavras chave da projeção mítica do Brasil. Uma ideia construída<br />

a partir de um esquema de domi<strong>na</strong>ção e que reforçada pela mídia<br />

encontra acolhida no imaginário da população brasileira.<br />

O Hip Hop, assim como o funk, emergem no cenário da<br />

sociedade brasileira no momento em que esta projeção já demonstra<br />

claramente sua impossibilidade e, portanto sua não existência<br />

enquanto prática. Deram acima de tudo, voz às <strong>tensões</strong> e<br />

contradições no cenário público urbano, exigindo assim uma funcio<strong>na</strong>lidade<br />

desse espaço.<br />

O Hip Hop tentou negociar as condições da nova economia<br />

e tecnologia, bem como das novas formas de opressão de<br />

raça, gênero e classe <strong>na</strong> América urba<strong>na</strong>, ao apropriar-se das<br />

fachadas dos metrôs, das ruas públicas, da linguagem e da<br />

tecnologia do sampler. (TRICIA ROSE: 1997:195)<br />

A imagem de um Brasil cordial, começa a se desfazer pelas<br />

evidências contundentes de diferenciação, caracterizada especialmente<br />

pela nítida demarcação de territórios no espaço urbano, através<br />

de práticas de discrimi<strong>na</strong>ção e de outras formas de violência<br />

evidenciadas pelos conflitos diários a que estão submetidas as camadas<br />

pobres, os negros e as populações consideradas margi<strong>na</strong>is.<br />

O Hip Hop e o funk, implicam em uma reconfiguração do<br />

espaço urbano, erguendo-se sobretudo a partir de um cenário de<br />

decadência do urbano, e pela falência sucessiva dos discursos<br />

163


que versavam sobre a democracia racial, bem como das práticas<br />

institucio<strong>na</strong>is que se apresentavam como verdadeiras garantias<br />

democráticas de cidadania.<br />

Para Edson Luis Paiva Rodrigues, os rappers passam a denunciar<br />

a exclusão social e o racismo em termos de música e<br />

mensagem e os grafiteiros passaram a exprimir a paisagem da<br />

cidade e a realidade da periferia através de suas telas urba<strong>na</strong>s,<br />

grafitando onde a violência, a perseguição policial e a<br />

descrimi<strong>na</strong>ção dos organismos de segurança do Estado passam a<br />

fazer desse mural, desse muro, uma forma de denúncia e também<br />

de colorir a paisagem urba<strong>na</strong> da cidade, exprimindo assim um<br />

lugar que não é visto, gueto. Visto, estar ou ser constantemente<br />

estigmatizado como o lugar longe, o território do perigo, desconhecido,<br />

uma vez que é assim que a grande maioria da classe<br />

média branca do país vê e percebe a periferia, negativizando-a e<br />

vendo nela somente os aspectos negativizantes. Nesse sentido,<br />

cabe aqui fazer uma análise do local específico, a quebrada relacio<strong>na</strong>da<br />

ao conceito de territorialidade, sendo esta entendida aqui<br />

de forma diferenciada do conceito de espaço, uma vez que território<br />

e portanto, (re)territorialização vão estar ligados à construção<br />

de uma subjetividade inerente a determi<strong>na</strong>das atitudes e práticas<br />

sociais que vão identificar “os de dentro”, os manos, com “os de<br />

fora” “os boys”. Essa diferenciação é operada através de processos<br />

de distinção com relação não somente à quem mora em um determi<strong>na</strong>do<br />

lugar, como também o tipo de atitude que se vai ter em<br />

determi<strong>na</strong>das situações vividas e vivenciadas no cotidiano.<br />

164


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