O desenvolvimento, na primeira metade do século XX, da ... - Unesp
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Universi<strong>da</strong>de Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”<br />
Campus de São Paulo<br />
Dalton Martins Soares<br />
O <strong>desenvolvimento</strong>, <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, <strong>da</strong><br />
historiografia sobre a prática musical em São Paulo entre os<br />
<strong>século</strong>s XVI e XIX<br />
São Paulo/agosto/2007
Nome: Dalton Martins Soares<br />
Título: O <strong>desenvolvimento</strong>, <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, <strong>da</strong> historiografia sobre a prática<br />
musical em são Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e XIX<br />
Linha de pesquisa: Abor<strong>da</strong>gens históricas, estéticas e educacio<strong>na</strong>is <strong>do</strong> processo de criação,<br />
transmissão e recepção <strong>da</strong> linguagem musical.<br />
Natureza: Dissertação apresenta<strong>da</strong> para a obtenção <strong>do</strong> título de Mestre em musicologia;<br />
Universi<strong>da</strong>de Estadual Paulista/ Instituto de Artes<br />
Orienta<strong>do</strong>r: Profº Drº Paulo Augusto Castag<strong>na</strong><br />
2
Nome: Dalton Martins Soares,<br />
Título: O <strong>desenvolvimento</strong>, <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, <strong>da</strong> historiografia sobre a prática<br />
musical em São Paulo nos <strong>século</strong>s XVI a XIX.<br />
Natureza: dissertação de mestra<strong>do</strong> apresenta<strong>da</strong> ao programa de pós graduação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
Estadual Paulista – Instituto de Artes/IA-UNESP.<br />
3
Sumário<br />
Introdução ......................................................................................................................6<br />
1. O contexto geral <strong>do</strong> objeto: flagrantes <strong>do</strong> pensamento brasileiro............................12<br />
1.1 Pesquisa histórica no Brasil ........................................................................................13<br />
1.2 Pesquisas históricas sobre São Paulo <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.....................15<br />
1.3 Considerações sobre o sistema intelectual brasileiro ...................................................17<br />
1.4 A procura <strong>do</strong> “caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”...................................................................................19<br />
1.5 .Os “forma<strong>do</strong>res” <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção...........................................................................................21<br />
1.6 História e política..........................................................................................................23<br />
1.7 História e literatura.......................................................................................................25<br />
1.8 Tendências evolucionistas no pensamento brasileiro ..................................................27<br />
1.9 Tendências positivistas no pensamento brasileiro........................................................30<br />
1.10 Algumas considerações sobre o modernismo brasileiro ............................................35<br />
2. O objeto e seu contexto particular ..............................................................................38<br />
2.1 O objeto <strong>na</strong>s biografias..................................................................................................38<br />
2.2 O objeto <strong>na</strong>s “histórias <strong>da</strong> musica brasileira”................................................................41<br />
2.3 O objeto em trabalhos de compilação de informações..................................................43<br />
2.4 Considerações sobre os principais autores abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s <strong>na</strong> pesquisa...............................44<br />
2.4.1 Guilherme de Mello .......................................................................................44<br />
2.4.2 Mário de Andrade...........................................................................................46<br />
2.4.3 Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> .............................................................................................47<br />
2.4.4 João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho ........................................................................48<br />
2.4.5 Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende ...........................................................................49<br />
2.4.6 Clóvis de Oliveira ...........................................................................................50<br />
2.5 Periódicos musicais no Brasil ........................................................................................51<br />
3. Os temas e as idéias em torno <strong>do</strong> objeto ......................................................................53<br />
3.1 Aspectos <strong>da</strong> historiografia musical sobre a atuação <strong>do</strong>s jesuítas ...................................54<br />
4
3.1.1 Cristianismo e civilização <strong>na</strong> historiografia sobre os jesuítas.........................55<br />
3.1.2 Evidências evolucionistas <strong>na</strong> historiografia musical sobre os jesuítas............57<br />
3.2 Aspectos <strong>da</strong> historiografia musical sobre André <strong>da</strong> Silva Gomes .................................62<br />
3.3 Aspectos <strong>da</strong> historiografia musical sobre Carlos Gomes ...............................................67<br />
3.3.1 O “embaixa<strong>do</strong>r sonoro”....................................................................................67<br />
3.3.2 O “cria<strong>do</strong>r” <strong>da</strong> musica brasileira .....................................................................69<br />
3.3.3 Crítica ao suposto <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo de Carlos Gomes..........................................73<br />
3.4 Aspectos <strong>da</strong> historiografia musical sobre Alexandre Levy............................................76<br />
3.5 Aspectos <strong>da</strong> historiografia musical sobre Henrique Oswald..........................................81<br />
3.6 Aspectos literários no objeto...........................................................................................84<br />
3.7 A historiografia ds “heróis”.............................................................................................87<br />
3.8 O impacto <strong>da</strong>s comemorações <strong>do</strong> IV Centenário <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção de São Paulo.................88<br />
3.9 O impacto <strong>do</strong> centenário de <strong>na</strong>scimento de Caros Gomes..............................................88<br />
3.10 O esboço de uma mu<strong>da</strong>nça paradigmática.....................................................................89<br />
4. Conclusões........................................................................................................................93<br />
5.Bibliografia........................................................................................................................95<br />
5
Introdução:<br />
O objeto deste trabalho é a historiografia, produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>,<br />
que versou sobre a prática musical em São Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e XIX. Entendemos por<br />
historiografia a produção em história e as idéias relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s a ela, cujo estu<strong>do</strong> aponta para a<br />
tentativa de se compreender as maneiras de se conceber o conhecimento histórico de determi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong> (FURAY; SALEVOURIS, 1988:233).<br />
A ativi<strong>da</strong>de musical em São Paulo não foi um objeto de pesquisas sistemáticas durante a<br />
<strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, e assim, é pequeno o número de trabalhos que compõem a<br />
historiografia <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão. A ausência de organização <strong>da</strong> pesquisa histórico-musical<br />
sistemática no Brasil em geral e os problemas <strong>da</strong> própria concepção <strong>da</strong> musicologia em nosso<br />
país enquanto discipli<strong>na</strong> <strong>do</strong> conhecimento determi<strong>na</strong>ram a criação de biografias e trabalhos<br />
históricos de caráter literário os quais envere<strong>da</strong>ram para o elogio e para a mera apresentação de<br />
fatos biográficos que permaneceram desarticula<strong>do</strong>s de seu contexto geral (OLIVEIRA, 1992:3-<br />
4). Outro problema enfrenta<strong>do</strong> pelos estudiosos <strong>da</strong> música brasileira em geral tem si<strong>do</strong> o<br />
desconhecimento, i<strong>na</strong>cessibili<strong>da</strong>de e desorganização de arquivos de <strong>do</strong>cumentos históricos<br />
musicais (DUPRAT, 1972:101-102), (OLIVEIRA, 1992:4).<br />
No entanto, é preciso lembrar que mesmo os estu<strong>do</strong>s históricos sistemáticos no Brasil não<br />
tiveram maior impulso crítico senão antes de 1930, com a produção <strong>da</strong> academia ofuscan<strong>do</strong> os<br />
antigos Institutos Históricos (MESGRAVIS, 1998:39). Além disso, conforme afirmou José<br />
Ribeiro <strong>do</strong> Amaral Lapa:<br />
“... os estu<strong>do</strong>s sobre as obras de História e sua significação foram, durante muito<br />
tempo no Brasil, competência <strong>do</strong>s cultores de Literatura. Explica-se tal<br />
ocorrência, uma vez que a História era considera<strong>da</strong> simplesmente um gênero<br />
literário” (LAPA, 1985:49).<br />
Apesar disso, conforme apontou Antonio Alexandre Bispo, acreditava-se estar <strong>na</strong> fase<br />
inicial <strong>da</strong> musicologia no Brasil, e havia razões para se crer neste fato:<br />
6
“... o Conservatório Nacio<strong>na</strong>l de Música havia si<strong>do</strong> integra<strong>do</strong> ple<strong>na</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
<strong>do</strong> Brasil, criavam-se as cadeiras de folclore e de História <strong>da</strong> Música,<br />
organizavam-se discotecas públicas, bibliotecas especializa<strong>da</strong>s, arquivos e<br />
museus, patroci<strong>na</strong>vam-se publicações, gravações, viagens de pesquisas,<br />
concursos, concursos de monografias e congressos” (BISPO, 1983:19).<br />
De qualquer mo<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> não foram feitos estu<strong>do</strong>s sobre a história <strong>da</strong> historiografia no<br />
Brasil, senão de forma incipiente, conforme apontou Nilo Odália: “Falta-nos, sem dúvi<strong>da</strong>, uma<br />
história <strong>da</strong> historiografia, que poderia servir como uma ponte entre o que se faz e o que se fez”<br />
(ODÁLIA, 1997: 11).<br />
Vale destacar alguns aspectos <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>da</strong> historiografia a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s para este trabalho,<br />
segun<strong>do</strong> a concepção de que:<br />
“Estu<strong>do</strong>s de historiografia supõem o julgamento <strong>da</strong> obra de História, não ape<strong>na</strong>s<br />
com o trabalho de inspiração individual, mais ou menos bem-sucedi<strong>do</strong>, mas<br />
também com resulta<strong>do</strong> intelectual <strong>do</strong> confronto <strong>da</strong>s concepções que uma<br />
socie<strong>da</strong>de tem sobre si mesma em um determi<strong>na</strong><strong>do</strong> momento vivi<strong>do</strong> de seu<br />
percurso [...] Explicar, compreender a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des e registrar os<br />
acontecimentos presentes e passa<strong>do</strong>s foram sempre o objetivo mais aparente <strong>da</strong><br />
historiografia. Entretanto, essas ações são impeli<strong>da</strong>s pela busca, sempre<br />
renova<strong>da</strong>. Dos elementos constitutivos de uma identi<strong>da</strong>de coletiva que se articula<br />
dialeticamente com o campo abrangente <strong>da</strong>s relações político-sociais”<br />
(JANOTTI, 1998:119).<br />
Segun<strong>do</strong> José Honório Rodrigues, a historiografia de uma época está intimamente liga<strong>da</strong><br />
às idéias e as características <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de que a produziu, segun<strong>do</strong> nela onde “... se refletem os<br />
problemas <strong>da</strong> própria <strong>na</strong>ção e <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de” (RODRIGUES, 1978:28). Da mesma maneira,<br />
segun<strong>do</strong> o autor, o mo<strong>do</strong> como os historiógrafos comunicam certa reali<strong>da</strong>de a seus leitores está<br />
intimamente relacio<strong>na</strong><strong>do</strong> às experiências, opções, objetivos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de que fazem parte<br />
(RODRIGUES, 1978:32).<br />
Ten<strong>do</strong> em vista tais considerações, o objetivo deste trabalho é tentar compreender o<br />
<strong>desenvolvimento</strong>, <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, <strong>da</strong> historiografia relacio<strong>na</strong><strong>da</strong> à prática<br />
musical em São Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e XIX, e deste mo<strong>do</strong>, refletir sobre as opiniões<br />
correntes em relação a seus varia<strong>do</strong>s temas. Dentre as questões que orientam o trabalho<br />
destacamos:<br />
7
• Seria possível explicar os conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s textos produzi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> <strong>XX</strong> sobre a história prática musical em São Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e XIX a<br />
partir <strong>do</strong> contexto em que se inserem?<br />
Partin<strong>do</strong> de pressupostos semelhantes ao acima descritos alguns musicólogos têm<br />
chegan<strong>do</strong> a interessantes conclusões as quais evidenciam a questão <strong>da</strong> estreita conexão entre<br />
historiografia e socie<strong>da</strong>de. James Garrat, por exemplo, demonstra que as <strong>primeira</strong>s evocações de<br />
uma “ver<strong>da</strong>deira” música sacra pelos estudiosos alemães <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, nos primórdios<br />
<strong>do</strong> movimento romântico, ocorrem simultaneamente à polêmica contra a cultura liga<strong>da</strong> ao<br />
Iluminismo (GARRAT, 2000:170). Karen Painter por sua vez afirma que as biografias foram o<br />
manual pe<strong>da</strong>gógico mais acessível em relação à divulgação <strong>da</strong>s idéias abstratas <strong>da</strong> estética<br />
musical à ascendente burguesia alemã <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX (PAINTER, 2002:187).<br />
Outros conceitos orientam a pesquisa:<br />
• história <strong>da</strong> musicologia, ou seja, a “... utilização <strong>do</strong>s critérios meto<strong>do</strong>lógicos <strong>da</strong> história<br />
aplica<strong>do</strong>s ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>desenvolvimento</strong> <strong>da</strong> pesquisa musicológica” (CASTAGNA, 2004:2)<br />
• pensamento brasileiro, a saber, a produção intelectual <strong>do</strong> Brasil e suas relações com a<br />
socie<strong>da</strong>de brasileira (LAPA, 1985:23).<br />
Outra importante concepção teórica <strong>do</strong> trabalho é a idéia <strong>da</strong> “subjetivi<strong>da</strong>de histórica”, ou<br />
seja, a impossibili<strong>da</strong>de de se construir uma história objetiva, basea<strong>da</strong> <strong>na</strong> procura de <strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />
supostamente “positivos” encontra<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>cumentos ema<strong>na</strong><strong>do</strong>s de instituições oficiais como a<br />
Igreja e o Esta<strong>do</strong>. Portanto, a subjetivi<strong>da</strong>de de quem escreve a história, sua ideologia, seus<br />
vínculos a determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s grupos e ativi<strong>da</strong>des profissio<strong>na</strong>is, devem ser, portanto, considera<strong>do</strong>s <strong>na</strong><br />
compreensão de determi<strong>na</strong><strong>da</strong> produção intelectual. Segun<strong>do</strong> Peter Burke: “Nossas mentes não<br />
refletem diretamente a reali<strong>da</strong>de. Só percebemos o mun<strong>do</strong> através de uma estrutura de<br />
convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra”<br />
(BURKE, 1992:15).<br />
Um <strong>do</strong>s motivos para utilizarmos uma fun<strong>da</strong>mentação teórica advin<strong>da</strong> <strong>da</strong> discipli<strong>na</strong><br />
história reside no fato não havermos estabeleci<strong>do</strong>, <strong>na</strong> musicologia brasileira, ao menos de<br />
maneira sistemática, o debate em torno <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história musical no Brasil. Por este motivo,<br />
8
ain<strong>da</strong> não se produziu um montante significativo de material teórico sobre o assunto que pudesse<br />
eventualmente orientar os trabalhos que vão surgin<strong>do</strong>. Pelo mesmo fato, os trabalhos atuais ain<strong>da</strong><br />
assumem um caráter especulativo e deman<strong>da</strong>m enormemente de uma base essencialmente<br />
empírica.<br />
Quanto ao méto<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> para o trabalho, este segue os seguintes passos: em primeiro<br />
lugar, o objeto foi compreendi<strong>do</strong> a partir de aspectos externos e aspectos internos, ou seja,<br />
através de elementos provenientes de seu contexto e de seu conteú<strong>do</strong> textual. Além disso,<br />
denomi<strong>na</strong>mos elementos externos <strong>do</strong> objeto aqueles que se referem a seu contexto, e por outro<br />
la<strong>do</strong>, denomi<strong>na</strong>mos elementos internos <strong>do</strong> objeto aqueles que se referem a seus aspectos textuais.<br />
Compreendi<strong>do</strong> desta maneira, decompomos o objeto em seus diversos elementos para,<br />
posteriormente, realizarmos uma análise histórica onde se buscará a inter-relação dessas vários<br />
elementos. Assim, a dissertação foi organiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />
• No primeiro capítulo é estu<strong>da</strong><strong>do</strong> o contexto geral <strong>do</strong> objeto, ou seja, diversos aspectos<br />
<strong>do</strong> pensamento brasileiro entre fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.<br />
• No segun<strong>do</strong> capítulo é estu<strong>da</strong><strong>do</strong> o contexto particular <strong>do</strong> objeto. Cabe aqui<br />
exami<strong>na</strong>rmos o que se publicou, quem escreveu, onde se publicou, que fatores motivaram<br />
as publicações, que referências tinham os autores sobre o que escreviam, o que estes<br />
entendiam por pesquisa histórico-musical, a quais leitores eram desti<strong>na</strong><strong>do</strong>s seus escritos.<br />
• No terceiro capítulo é estu<strong>da</strong><strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> textual <strong>do</strong> objeto em articulação com os<br />
capítulos precedentes, buscan<strong>do</strong> as similari<strong>da</strong>des e diferenças entre os vários aspectos<br />
levanta<strong>do</strong>s. Neste capítulo tenta-se realizar uma síntese <strong>do</strong> discurso e <strong>da</strong>s idéias<br />
comunica<strong>da</strong>s pelos historiógrafos sobre os diversos temas relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao objeto em<br />
questão. Tal interpretação será realiza<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> observação <strong>da</strong>s relações entre os<br />
elementos externos e internos <strong>do</strong> objeto, ou seja, entre seu contexto e seu conteú<strong>do</strong><br />
textual.<br />
Por considerarmos necessário compreender o <strong>na</strong>sce<strong>do</strong>uro, no <strong>século</strong> XIX, de certas idéias<br />
que perdurarão no pensamento brasileiro durante o <strong>século</strong> <strong>XX</strong> (por exemplo, o evolucionismo e o<br />
9
positivismo), recuamos o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s tendências <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira para o ano de 1870, em<br />
razão de que, por esta época, começam a surgir novos questio<strong>na</strong>mentos sobre a reali<strong>da</strong>de social<br />
brasileira e como a busca pela resolução de suas contradições e a compreensão de sua identi<strong>da</strong>de<br />
(BRASIL. CONGRESSO; CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1981:3).<br />
Vale lembrar que vários intelectuais que produziram entre fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e início <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> <strong>XX</strong> fazem uso de “... parâmetros interpretativos vicia<strong>do</strong>s pelo etnocentrismo e por<br />
conceitos sistemáticos predetermi<strong>na</strong><strong>do</strong>s” (DIAS, 1998:58). Tor<strong>na</strong>-se corrente o uso no perío<strong>do</strong><br />
de conceitos como “raça” e “meio”, onde, o português é interpreta<strong>do</strong> como um indivíduo de uma<br />
raça “superior”, “evoluí<strong>da</strong>”; por sua vez, o índio e o negro são considera<strong>do</strong>s membros de uma<br />
raça “inferior”, “primitiva”, “selvagem” etc. É a partir desse contexto que empregamos aqui tais<br />
noções neste.<br />
Quanto às fontes utiliza<strong>da</strong>s constituem-se de escritos produzi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> <strong>XX</strong>, e que trataram sobre a prática musical em São Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e XIX.<br />
Grande parte desses escritos constitui-se de biografias sobre compositores liga<strong>do</strong>s à região, que<br />
se encontram em uma série de publicações, <strong>da</strong>s quais, selecio<strong>na</strong>mos os quais consideramos os<br />
mais representativos, cujo critério foi a projeção <strong>da</strong> obra em seu contexto, além <strong>da</strong> relevância e<br />
influência <strong>do</strong> autor em seu meio. Assim, destacamos os seguintes trabalhos:<br />
1- A música no Brasil, de Guilherme de Melo.<br />
2- História <strong>da</strong> Música Brasileira e Compêndio de História <strong>da</strong> Música<br />
Brasileira, de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>.<br />
3- História breve <strong>da</strong> música no Brasil e Temas de música Brasileira, de Gastão<br />
de Bittencourt.<br />
4- Cronologia Musical Paulista, Tradições musicais <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito<br />
de São Paulo e Fragmentos para uma história <strong>da</strong> música de São Paulo, de<br />
Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende.<br />
5- André <strong>da</strong> Silva Gomes, o regente <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé de São Paulo, de Clóvis de<br />
Oliveira.<br />
6- A música em São Paulo, de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho.<br />
7 -O regente <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé (1938) de Nuto Santa<strong>na</strong>.<br />
10
Além destes trabalhos há outros que, embora de um alcance mais limita<strong>do</strong>, também serão<br />
considera<strong>do</strong>s <strong>na</strong> pesquisa. Dentre esses destacamos:<br />
1) Dois meninos prodígio em São Paulo e O compositor d’O Guarany, de Carlos<br />
pentea<strong>do</strong> de Resende.<br />
2) Antônio Carlos Gomes: a estrela musical <strong>do</strong> cruzeiro <strong>do</strong> sul, de Arthur de<br />
Mace<strong>do</strong>.<br />
3) Um <strong>século</strong> de música brasileira (1922) de José Rodrigues Barbosa.<br />
A principal justificativa para este trabalho é o fato de que ele propõe uma reflexão a<br />
respeito <strong>da</strong>s relações entre as tendências <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira e sua historiografia musical, sob<br />
o exemplo <strong>da</strong> historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo. Vale lembrar que o número de trabalhos que<br />
se propõem à reflexão sobre o assunto é pequeno, fato que não chega a se configurar como um<br />
problema exclusivo <strong>da</strong> musicologia histórica brasileira, como se desse anteriormente<br />
(OLIVEIRA, 1992:9), (ODÁLIA, 1997:11).<br />
Deste mo<strong>do</strong>, a não compreensão <strong>do</strong> <strong>desenvolvimento</strong> histórico de nossa historiografia<br />
musical pode nos condicio<strong>na</strong>r a idéias e opiniões equivoca<strong>da</strong>s sobre a história música brasileira,<br />
além disso, nos induzir ao hábito de não refletir sobre a adequação <strong>do</strong>s procedimentos<br />
emprega<strong>do</strong>s no estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> música brasileira. Por fim, feito este estu<strong>do</strong>, se poderia contribuir para<br />
o avanço <strong>da</strong> compreensão e <strong>desenvolvimento</strong> <strong>da</strong> historiografia musical no Brasil, bem como <strong>do</strong>s<br />
problemas relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s à escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música brasileira.<br />
Outra questão ao nosso ver tor<strong>na</strong> pertinente este estu<strong>do</strong>. Desde o início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, São<br />
Paulo lidera o movimento de modernização e industrialização <strong>do</strong> Brasil. São realiza<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<br />
históricos sobre o papel <strong>da</strong> vila, <strong>da</strong> província e <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> paulista <strong>na</strong> história <strong>do</strong> Brasil, nos quais<br />
transparece, ao nosso ver, a tentativa de se construir uma imagem positiva <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> de São<br />
Paulo, determi<strong>na</strong>n<strong>do</strong> assim a sua contribuição <strong>na</strong> história <strong>do</strong> Brasil.<br />
No entanto, ao contrário de outros esta<strong>do</strong>s brasileiros que já possuíam seus compositores<br />
mais antigos consagra<strong>do</strong>s - por exemplo, Caetano de Mello de Jesus <strong>na</strong> Bahia e José Maurício<br />
Nunes Garcia no Rio de Janeiro - não havia evidências de uma ativi<strong>da</strong>de musical sistemática em<br />
São Paulo antes de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, e assim, o mais antigo compositor “ilustre” liga<strong>do</strong> a<br />
11
São Paulo é Carlos Gomes, segui<strong>do</strong> de Alexandre Levy e Henrique Oswald. Portanto, não havia<br />
nenhum que teria atua<strong>do</strong> durante o perío<strong>do</strong> colonial.<br />
Em 1930 foram encontra<strong>do</strong>s, por Fúrio Franceschini, manuscritos de André <strong>da</strong> Silva<br />
Gomes, compositor que teria atua<strong>do</strong> em São Paulo em fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII e início <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XIX. Este compositor, alvo de biografias, foi considera<strong>do</strong> o fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé de São Paulo,<br />
e ain<strong>da</strong>, o mais antigo músico de valor que teria atua<strong>do</strong> em São Paulo. Enfim, mesmo haven<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>quele momento um número bastante reduzi<strong>do</strong> de peças musicais suas conheci<strong>da</strong>s, Silva Gomes<br />
parecia ter si<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong> o “grande mestre” <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> música presente em São Paulo. Porém, em<br />
mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos de 1940, Curt Lange encontra ricos acervos musicais de compositores mineiros,<br />
despertan<strong>do</strong> grande interesse pela produção musical entorno <strong>do</strong> ciclo <strong>do</strong> ouro, e evidencian<strong>do</strong> de<br />
uma vez por to<strong>da</strong>s a modéstia <strong>da</strong> produção de São Paulo, e em conseqüência disso, a modéstia <strong>da</strong><br />
contribuição musical <strong>na</strong> formação <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música brasileira.<br />
Outro fator importante a se considerar é fato de que, <strong>na</strong>s <strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>,<br />
certos parâmetros interpretativos de caráter etnocêntrico começavam a ser suplanta<strong>do</strong>s por uma<br />
interpretação antropológica <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no conceito de “cultura” (LEITE, 2002:52).<br />
Além disso: “O processo de urbanização que concentrou <strong>na</strong>s ci<strong>da</strong>des as populações regio<strong>na</strong>is<br />
rurais, contribuiu indiretamente para transformar parâmetros interpretativos vicia<strong>do</strong>s pelo<br />
etnocentrismo e por conceitos sistemáticos predetermi<strong>na</strong><strong>do</strong>s” (DIAS, 1998:58).<br />
O que tentaremos demonstrar é que tais questões, ao nosso ver, se relacio<strong>na</strong>m diretamente<br />
ao objeto no senti<strong>do</strong> de determi<strong>na</strong>r, de certo mo<strong>do</strong>, as considerações <strong>do</strong>s autores sobre os<br />
diferentes assuntos trata<strong>do</strong>s pela historiografia em questão.<br />
1. O contexto geral <strong>do</strong> objeto: flagrantes <strong>do</strong> pensamento brasileiro<br />
O capítulo que se segue pretende discutir sobre o contexto geral <strong>do</strong> objeto, ou seja, sobre<br />
alguns pontos <strong>do</strong> pensamento brasileiro <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>. Com ele<br />
temos o intuito de compreender o contexto em que começam a surgir sistematicamente reflexões<br />
e interpretações, conceitos e idéias sobre a socie<strong>da</strong>de brasileira, os quais, posteriormente, poderão<br />
12
se tor<strong>na</strong>r úteis <strong>na</strong> compreensão <strong>da</strong> produção historiográfico-musical dedica<strong>da</strong> à São Paulo e<br />
produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.<br />
Faz-se necessário concentrarmo-nos <strong>na</strong> discussão de certos temas relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao<br />
pensamento brasileiro desde o fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, os quais, ao nosso ver, são essenciais para o<br />
estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> história <strong>da</strong> historiografia musical brasileira uma vez que serviram de base, em maior ou<br />
menor medi<strong>da</strong>, para várias visões de mun<strong>do</strong> consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos textos de história.<br />
Tais temas estão relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s, em geral, a busca por uma compreensão crítica <strong>da</strong><br />
reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> formação e <strong>do</strong> papel <strong>da</strong> nova república brasileira no cenário inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l que se<br />
formava com o fim <strong>da</strong>s antigas aristocracias. Para Re<strong>na</strong>to Ortiz, este é um debate que se constitui<br />
“... uma espécie de sub-solo estrutural que alimenta to<strong>da</strong> a discussão sobre o que é o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”<br />
(ORTIZ, 1985:7).<br />
Assim, faremos a seguir uma exposição de certos temas considera<strong>do</strong>s relevantes para uma<br />
maior compreensão <strong>do</strong> objeto, os quais, em maior ou menor medi<strong>da</strong>, têm como ponto em comum<br />
a discussão sobre a história e sobre o “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” em nosso país.<br />
1.1 Pesquisa histórica no Brasil<br />
Segun<strong>do</strong> José Honório Rodrigues, a pesquisa histórica sistemática no Brasil surgiu com<br />
a fun<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RODRIGUES, 1969:37). Este foi<br />
inspira<strong>do</strong> pelos princípios lança<strong>do</strong>s pela escola alemã, que desenvolveu o que havia de mais<br />
atualiza<strong>do</strong> em termos de meto<strong>do</strong>logia histórica <strong>na</strong>quele momento, ou seja, a procura, compilação,<br />
classificação e publicação de <strong>do</strong>cumentos históricos ema<strong>na</strong><strong>do</strong>s de instituições “oficiais”, como o<br />
governo e a Igreja (RODRIGUES, 1969:37).<br />
De acor<strong>do</strong> com José Honório Rodrigues, os pesquisa<strong>do</strong>res de história brasileiros já<br />
haviam aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> a mera compilação de fatos e notícias antes mesmo <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>do</strong> Instituto<br />
Histórico, no entanto, em razão <strong>do</strong> caráter ocasio<strong>na</strong>l e individualista que então caracterizava a<br />
ativi<strong>da</strong>de, tais contribuições não se constituíram uma tentativa de sistematização e organização <strong>do</strong><br />
trabalho <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> tratamento <strong>da</strong>s fontes. Coube assim ao Instituto Histórico esta tarefa:<br />
13
“... se o méto<strong>do</strong> histórico baseia-se essencialmente <strong>na</strong> consulta às fontes escritas<br />
origi<strong>na</strong>is e <strong>na</strong>s tarefas críticas auxiliares, então, não há como negar que os<br />
fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res <strong>do</strong> Instituto histórico deram ao seu trabalho, desde o início, a<br />
orientação impecável” (RODRIGUES, 1969:38).<br />
Esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de pesquisa histórica exigiu como priori<strong>da</strong>de a procura e centralização de<br />
vários <strong>do</strong>cumentos dispersos pelas províncias e considera<strong>do</strong>s interessantes para o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
história e <strong>da</strong> geografia <strong>do</strong> Brasil. Esta orientação se manifesta nos Estatutos <strong>do</strong> Instituto Histórico<br />
bem como <strong>na</strong>s <strong>primeira</strong>s propostas encaminha<strong>da</strong>s por seus membros. Na sessão de 15 de<br />
dezembro de 1838, por exemplo, surge a <strong>primeira</strong> iniciativa de pesquisa no estrangeiro, por<br />
Rocha Cabral, o qual pleiteava que se empregasse to<strong>do</strong> o esforço para vir de Portugal<br />
<strong>do</strong>cumentos importantes que lá deviam existir sobre o Brasil. José Silvestre Rebelo, por sua vez,<br />
em seção de 7 de junho de 1839, propunha que se enviasse um adi<strong>do</strong> à Espanha e outros países<br />
“... afim de copiar os manuscritos importantes que ali existissem, relativos ao Brasil”<br />
(RODRIGUES, 1978:39).<br />
Este movimento de compilação e organização <strong>do</strong>cumental motivou a criação de trabalhos<br />
gerais sobre a história <strong>do</strong> Brasil, sen<strong>do</strong> uma <strong>da</strong>s mais significativas contribuições deste perío<strong>do</strong> a<br />
História Geral <strong>do</strong> Brasil (1854) de Francisco A<strong>do</strong>lfo Varnhagen (RODRIGUES, 1978:39).<br />
Segun<strong>do</strong> Nilo Odália, este trabalho demonstra o esforço <strong>do</strong> autor de identificar em diversos<br />
momentos <strong>do</strong> país os prenúncios <strong>da</strong> “uni<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”. Segun<strong>do</strong> o autor, em Varnhagen o “...<br />
pensamento burguês brasileiro encontrou o espírito que [...] conseguiu realizar uma síntese<br />
admirável <strong>do</strong>s ideais e objetivos <strong>da</strong>s classes dirigentes que tomaram a seu cargo a construção <strong>da</strong><br />
Nação” (ODÁLIA, 1997:24). Varnhagen foi eleito sócio correspondente <strong>do</strong> Instituto Histórico<br />
em 1840, e a partir de então realizou pesquisas em São Paulo, Santos, São Vicente, Portugal e<br />
Espanha. Tornou-se adi<strong>do</strong> de <strong>primeira</strong> classe em Lisboa no ano de 1842 (RODRIGUES,<br />
1963:44).<br />
Na transição <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX para o <strong>século</strong> <strong>XX</strong> a iniciativa <strong>do</strong> Governo através <strong>do</strong> Instituto<br />
Histórico e Geográfico deixou de existir, limitan<strong>do</strong>-se a pesquisa histórica em nosso país “... a<br />
trabalhos especiais e de circunstância” (RODRIGUES, 1969:92). Neste momento, nossos<br />
historia<strong>do</strong>res necessitavam de novas fontes ou de peças já referi<strong>da</strong>s por outros historia<strong>do</strong>res, mas<br />
nunca obti<strong>da</strong>s em cópias integrais, ou ain<strong>da</strong>, estavam desconfia<strong>do</strong>s <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s cópias<br />
existentes. Sem a iniciativa <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico, tais estudiosos precisaram<br />
14
ecorrer a amigos <strong>na</strong> Europa, e muitas vezes, tiveram de pagar com seus próprios recursos novas<br />
pesquisas (RODRIGUES, 1969:93).<br />
“Deste mo<strong>do</strong>, qualquer estudioso brasileiro, ver<strong>da</strong>deiramente consciente <strong>do</strong>s<br />
problemas, dúvi<strong>da</strong>s e questões que afloravam no campo <strong>da</strong> investigação histórica,<br />
cui<strong>da</strong>va de realizar, pelo seu próprio esforço e às suas custas, o que fosse<br />
necessário” (RODRIGUES, 1969:93).<br />
Neste momento, foi de crucial importância a iniciativa individual de homens como o<br />
Visconde <strong>do</strong> Rio Branco, Capistrano de Abreu, Afonso d’Escragnolle Tau<strong>na</strong>y, Alberto Lamego,<br />
entre outros, que vasculharam arquivos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, esgotan<strong>do</strong>-lhes as fontes<br />
primordiais e a bibliografia existente (RODRIGUES, 1969:93).<br />
Deste mo<strong>do</strong>, até que a história se tor<strong>na</strong>sse uma discipli<strong>na</strong> acadêmica, que ocorreu a partir<br />
<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930 (JANOTTI, 1998:39), a pesquisa histórica no Brasil foi entendi<strong>da</strong> nos moldes<br />
positivistas de compilação, sistematização e publicação de fatos e notícias organiza<strong>do</strong>s<br />
cronologicamente.<br />
1.2 Pesquisas históricas sobre São Paulo no início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
Podemos observar a partir de fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, e mais pronuncia<strong>da</strong>mente desde o início<br />
<strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, um aumento <strong>da</strong>s publicações sobre os mais varia<strong>do</strong>s aspectos <strong>da</strong> história de São<br />
Paulo. Dentre as publicações que confirmam este fenômeno destacamos as que seguem:<br />
1) Quadro histórico <strong>da</strong> província de São Paulo, até o ano de 1822 (1897), por<br />
José Joaquim Macha<strong>do</strong> de Oliveira.<br />
2) A igreja <strong>do</strong> Colégio <strong>da</strong> capital de São Paulo (1897), por Antônio de Tole<strong>do</strong><br />
Piza.<br />
3) As capelas de Araçariguama e seus fun<strong>da</strong><strong>do</strong>res, notas de história eclesiástica<br />
(1916), por Augusto Siqueira.<br />
4) Vi<strong>da</strong> e morte <strong>do</strong> bandeirante (1929), de José de Alcântara Macha<strong>do</strong> de<br />
Oliveira.<br />
15
5) História seiscentista <strong>da</strong> villa de São Paulo (1929-1930), por Alfonso de<br />
Escragnolle Tau<strong>na</strong>y.<br />
6) História <strong>da</strong> vila de São Paulo no <strong>século</strong> XVIII (1701-1711) (1931), por Alfonso<br />
de Escragnolle Tau<strong>na</strong>y<br />
7) O forte de São Tiago de Bertioga (1937), por Alfonso de Escragnolle Tau<strong>na</strong>y.<br />
8) Rótulas e mantilhas: evocações <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> paulista (1932), de Edmun<strong>do</strong><br />
Amaral.<br />
9) A casinha de palha <strong>do</strong> padre Anchieta (1940), por Assis Cintra.<br />
10) A igreja <strong>do</strong>s Remédios (1937), de Nuto Santa<strong>na</strong>.<br />
11) São Paulo Histórico (1938), de Nuto Santa<strong>na</strong>.<br />
12) A capela de Santo Antônio (1937), de Mário de Andrade (MORAES, 1998).<br />
É notório neste perío<strong>do</strong> o fato de que vários <strong>do</strong>cumentos históricos foram publica<strong>do</strong>s pelo<br />
Arquivo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo, como por exemplo, as Atas e os Registros Gerais <strong>da</strong>s câmaras<br />
<strong>da</strong>s vilas de São Paulo e Santo André <strong>da</strong> Bor<strong>da</strong> <strong>do</strong> Campo, a série Documentos Interessantes para<br />
a história e costumes de São Paulo, demonstran<strong>do</strong> uma preocupação com a organização de fontes<br />
históricas sobre São Paulo.<br />
Outros trabalhos confirmam esse interesse pela história de outros aspectos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> de<br />
São Paulo, como as histórias <strong>da</strong>s bandeiras e <strong>do</strong>s bandeirantes, sobre os costumes <strong>do</strong>s habitantes<br />
<strong>da</strong> vila de São Paulo, sobre sua arquitetura local etc (MORAES, 1998). Além disso, ao longo <strong>da</strong>s<br />
três <strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, em São Paulo, existem “... poetas que celebram os símbolos<br />
e os feitos paulistas, bem como historia<strong>do</strong>res que procuram mostrar a continui<strong>da</strong>de histórica e<br />
psicológica <strong>do</strong> bandeirante” (LEITE, 2002:307).<br />
A partir <strong>do</strong> Manuel Bibliográfico de Estu<strong>do</strong>s Brasileiros (1949), de Rubem Borba de<br />
Moraes (MORAES, 1998), podemos deduzir que os ensaístas e historia<strong>do</strong>res dedica<strong>do</strong>s à São<br />
Paulo parecem ter demonstra<strong>do</strong> maior interesse pela arquitetura, pela literatura e pela história de<br />
antigas instituições, <strong>do</strong> que pela prática musical <strong>na</strong> região, exceto, evidentemente, pelas<br />
biografias de artistas consagra<strong>do</strong>s (MORAES, 1998).<br />
Na medi<strong>da</strong> em que se aproximam as comemorações <strong>do</strong> Quarto Centenário <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção de<br />
São Paulo, em 1954, o número de publicações sobre a região aumenta significativamente. Se<br />
16
destacaram por seu número as publicações de Er<strong>na</strong>ni Bruno e de Afonso d’Escragnolle Tau<strong>na</strong>y<br />
(MORAES, 1998).<br />
As considerações acima apontam para o fato de que durante a <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
<strong>XX</strong> há um interesse crescente sobre diversos aspectos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> de São Paulo. Este interesse<br />
acompanha o próprio crescimento <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, que desde os tempos <strong>da</strong> agricultura cafeeira de<br />
exportação, e a partir <strong>da</strong> liderança <strong>do</strong> processo de industrialização, firma-se como o mais rico <strong>do</strong><br />
país. No entanto, a preservação de fontes de interesse ao estu<strong>do</strong> de sua história foi grandemente<br />
comprometi<strong>da</strong>, e assim, os estudiosos dispuseram de parcos meios para realizar as suas pesquisas.<br />
Além disso, os <strong>do</strong>cumentos que resistiram à ação <strong>do</strong> tempo, de certo mo<strong>do</strong>, determi<strong>na</strong>ram<br />
a seleção de temas, entre os quais, salvo raras exceções, a música foi praticamente excluí<strong>da</strong>.<br />
Assim, os estu<strong>do</strong>s sobre o bandeirante, sobre a arquitetura e os monumentos <strong>da</strong> região tiveram<br />
maior destaque, e puderam se efetivar graças à preservação <strong>da</strong>s próprias construções e à<br />
publicação de <strong>do</strong>cumentos históricos pelo Arquivo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo a partir <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XIX.<br />
Outro fator que acentua o pequeno número de estu<strong>do</strong>s históricos sobre a música de São<br />
Paulo neste perío<strong>do</strong> é o fato de que não havia, no Brasil, de um mo<strong>do</strong> geral, historia<strong>do</strong>res de<br />
“profissão”, pois a pesquisa histórica não era realiza<strong>da</strong> em termos de uma discipli<strong>na</strong> acadêmica,<br />
com objetivos e meto<strong>do</strong>logia específicos. Assim, os estudiosos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> paulista eram em<br />
grande parte jor<strong>na</strong>listas, advoga<strong>do</strong>s, cronistas, homens de letras etc (OLIVEIRA, 1992:5).<br />
1.3 Algumas considerações sobre o sistema intelectual no Brasil<br />
Luiz <strong>da</strong> Costa Lima nos apresenta algumas reflexões sobre os intelectuais e o sistema<br />
intelectual no Brasil que nos parecem importantes para compreender a situação <strong>do</strong> pensamento<br />
brasileiro <strong>na</strong> transição <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX para o <strong>século</strong> <strong>XX</strong>. Embora fale <strong>da</strong> perspectiva de um crítico<br />
literário, tais reflexões nos parecem relevantes por contribuir para a compreensão <strong>do</strong> ambiente<br />
intelectual e <strong>do</strong> quadro social de onde se desenvolveu nosso objeto.<br />
Segun<strong>do</strong> o autor o sistema intelectual no Brasil sofreu marcas em seu processo histórico<br />
que o condicionou à certos maus-hábitos, os quais perduraram durante muito tempo:<br />
17
“Ora, sen<strong>do</strong> a imprensa local proibi<strong>da</strong> durante a colônia [...] inexistin<strong>do</strong> uma<br />
massa de leitores que levasse os escritores a modificar os padrões europeus,<br />
obviamente não se poderia falar então em sistema intelectual. Isso significa dizer<br />
que, quan<strong>do</strong> este se forma, já o esperam certas marcas, que só teriam si<strong>do</strong><br />
modifica<strong>da</strong>s caso as condições sociais determi<strong>na</strong>ntes se tor<strong>na</strong>ssem outras. Isto,<br />
entretanto não se deu” (LIMA, 1981:6).<br />
A questão <strong>do</strong>s intelectuais, segun<strong>do</strong> a visão <strong>do</strong> autor, pode ser posta sinteticamente <strong>da</strong><br />
seguinte maneira. Inicialmente, desde a colônia, o intelectual foi entre nós aceito não enquanto<br />
produtor de idéias – as quais, em tese, seriam o produto <strong>da</strong> reflexão sobre a sua própria reali<strong>da</strong>de<br />
social -, mas ao contrário disso, foi aceito enquanto reprodutor de idéias e ideologias vin<strong>da</strong>s <strong>do</strong><br />
estrangeiro, caracterizan<strong>do</strong>-se enquanto um “... especialista no verbo fácil, <strong>na</strong> palavra<br />
comovente” (LIMA, 1981: 8). Sua excelência intelectual e relevância social eram medi<strong>da</strong>s,<br />
portanto, em razão de sua atualização às tendências estrangeiras em voga (LIMA, 1981: 8).<br />
Roberto Schwartz se refere a esse fenômeno como o caráter imitativo <strong>da</strong> cultura<br />
brasileira (SCHWARTZ,1987:38-39).<br />
“Em síntese, desde <strong>século</strong> passa<strong>do</strong> existe entre as pessoas educa<strong>da</strong>s <strong>do</strong> Brasil – o<br />
que é uma categoria social mais <strong>do</strong> que um elogio – o sentimento de viverem entre<br />
instituições e idéias que são copia<strong>da</strong>s <strong>do</strong> estrangeiro e não refletem a reali<strong>da</strong>de<br />
local” (SCHWARTZ,1987:38-39).<br />
Com a Independência, o intelectual brasileiro tinha <strong>na</strong> tribu<strong>na</strong> e no púlpito seu veículo<br />
por excelência, e destaca-se como ora<strong>do</strong>r, “... empenha-se <strong>na</strong>s campanhas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e assim<br />
ganha o beneplácito imperial, que favorece [...] sua futura servidão burocrática” (LIMA,<br />
1981:7). Além disso, “a forma escrita <strong>da</strong> literatura fazia-se a sucursal de uma circulação<br />
preponderantemente oral” (LIMA, 1981:7).<br />
O reflexo disso <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira foi a criação de uma cultura letra<strong>da</strong>, porém,<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong> palavra fala<strong>da</strong>, a qual assassi<strong>na</strong>va o hábito de leitura e interpretação de textos. Os<br />
autores, os quais escreviam quase exclusivamente em jor<strong>na</strong>is, deveriam seguir o princípio de<br />
deleitar seu leitor, procuran<strong>do</strong> fugir de discussões de caráter abstrato que muito consumisse seu<br />
raciocínio e viesse a chatear. Não haven<strong>do</strong> um público especializa<strong>do</strong> para o intelectual brasileiro,<br />
o mecanismo estatal o deixava a salvo <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de conquistá-lo, o que justificaria certo<br />
18
traço moralizante e falsamente “neutro” que existe nos escritos de nossos intelectuais, como se<br />
não pertencessem a nenhum segmento social (LIMA, 1981:9).<br />
Posteriormente, com a República e a difusão mais intensa de um discurso <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista<br />
no Brasil, a tendência ao elogio, à grandiloqüência, à “palavra comovente” e ao “verbo fácil” se<br />
configuraram em nosso sistema intelectual e se concretizaram em nossa historiografia.<br />
1.4 Discussões em torno <strong>do</strong> caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l brasileiro<br />
Segun<strong>do</strong> Dante Moreira Leite, a forma atual <strong>do</strong> conceito de caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l se deve ao<br />
movimento literário pré-romântico alemão conheci<strong>do</strong> por Sturm und Drang, cujos fun<strong>da</strong>mentos<br />
filosóficos se opunham àqueles vincula<strong>do</strong>s à estética iluminista, de origem pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente<br />
francesa, então em evidência (LEITE, 1976:28). Segun<strong>do</strong> Dante Moreira Leite, a razão é o<br />
princípio fun<strong>da</strong>mental iluminista, <strong>da</strong> qual decorre a igual<strong>da</strong>de entre os homens e <strong>na</strong>ções quanto à<br />
riqueza, instrução e liber<strong>da</strong>de. Deste mo<strong>do</strong>, a partir <strong>da</strong> razão, se entenderia a história como um<br />
avanço progressivo em direção ao conhecimento e <strong>desenvolvimento</strong> <strong>do</strong> “espírito humano”, e a<br />
este último, garantiria sua “uni<strong>da</strong>de” histórica (LEITE, 2002:39). Os pré-românticos, por sua vez,<br />
contestaram tal uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>n<strong>do</strong> ênfase às particulari<strong>da</strong>des regio<strong>na</strong>is, <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e individuais. Além<br />
disso, negaram a “razão” como única via de conhecimento, passan<strong>do</strong> a valorizar o “sentimento” e<br />
a “intuição” (LEITE, 1976:29). Vale lembrar, porém, que embora os conceitos de ”sentimento”,<br />
“intuição”, “origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de” etc, tenham destaque no <strong>século</strong> XIX, eles já são encontra<strong>do</strong>s em<br />
discussão por diversos autores desde os últimos anos <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII (OSBOURNE, 1974:145).<br />
Segun<strong>do</strong> Dante Moreira Leite, o mais representativo nome <strong>do</strong> pré-romantismo alemão, no<br />
tocante a formulação de pressupostos, é Helder, para o qual o espírito <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l se desenvolve<br />
organicamente e segun<strong>do</strong> suas particulari<strong>da</strong>des. Por esse motivo, o espírito <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l somente<br />
pode se revelar <strong>na</strong> língua <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l (LEITE, 1976: 1976). Esta premissa leva Helder a valorizar e<br />
estimular a criação de peculiari<strong>da</strong>des e características específicas de ca<strong>da</strong> povo; <strong>da</strong>í “... a<br />
valorização <strong>da</strong>s canções populares como expressão ingênua e ain<strong>da</strong> jovem <strong>do</strong> espírito <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”<br />
(LEITE, 1976:41).<br />
Os autores brasileiros que produziram entre o fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e o início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
acreditaram que o caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l brasileiro seria determi<strong>na</strong><strong>do</strong> em duas etapas, em primeiro<br />
19
lugar, a partir <strong>da</strong> compreensão “exata” <strong>da</strong> psicologia <strong>da</strong>s “raças forma<strong>do</strong>ras”, e posteriormente, a<br />
procura <strong>da</strong>s “leis” que gover<strong>na</strong>ram a sua interação. A raça branca, representa<strong>da</strong> pelo português,<br />
foi classifica<strong>da</strong> como raça “superior”, enquanto a raça amarela e a negra como “inferiores”. A<br />
raça “superior” era considera<strong>da</strong> o agente cria<strong>do</strong>r, o qual se consistia o fun<strong>da</strong>mento biológico,<br />
cultural, institucio<strong>na</strong>l e psicológica etc; as raças “inferiores” eram considera<strong>da</strong>s “cria<strong>do</strong>res<br />
indiretos”, com suas len<strong>da</strong>s, seus cantos etc.<br />
Segun<strong>do</strong> Sílvio Romero as relações entre raça superior e inferiores tiveram <strong>do</strong>is aspectos:<br />
em primeiro lugar, as “relações exter<strong>na</strong>s”, “... em que os portugueses não poderiam, como<br />
civiliza<strong>do</strong>s, modificar sua vi<strong>da</strong> intelectual que tendia a prevalecer, e só podiam contrair um ou<br />
outro hábito, e empregar um ou outro utensílio <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> ordinária”; em segun<strong>do</strong> lugar, as relações<br />
“de sangue”, “... tendentes a modificar as três raças e a formar o mestiço” (ROMERO, 1959:50).<br />
No primeiro caso, compreendia-se que a ação <strong>do</strong> indíge<strong>na</strong> e <strong>do</strong>s negros sobre o europeu<br />
não era muito profun<strong>da</strong>, já no segun<strong>do</strong>, a transformação fisiológica criava um novo tipo, o qual,<br />
“... se não eclipsava o europeu, ofuscava as duas raças inferiores” (ROMERO, 1959:50). Para<br />
Silvio Romero o “brasileiro” seria, portanto, produto <strong>da</strong> interação biológica, <strong>da</strong> mestiçagem, cujo<br />
produto, foi entendi<strong>do</strong> como “agente transforma<strong>do</strong>r” (ROMERO, 1959:50).<br />
No entanto, não houve acor<strong>do</strong> quanto se a influência determi<strong>na</strong>nte foi a <strong>da</strong> raça indíge<strong>na</strong><br />
ou <strong>da</strong> negra. Uma interessante polêmica entre Sílvio Romero e Capistrano de Abreu, mostra as<br />
dificul<strong>da</strong>des vivencia<strong>da</strong>s pelos intelectuais brasileiros <strong>na</strong> definição <strong>do</strong> caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />
brasileiro. Enquanto Sílvio Romero acreditava que nossas diferenças em relação ao europeu se<br />
<strong>da</strong>vam exclusivamente em razão <strong>do</strong> elemento negro, Capistrano de Abreu, por sua vez, atribuía<br />
esta ao meio e ao indíge<strong>na</strong>: “Sem negar a ação <strong>do</strong> elemento africano, penso que ela é menor que<br />
a <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is fatores” (ABREU, 1931:36). Capistrano de Abreu, com certa ironia, explica o motivo<br />
pelo qual Romero nega a influência <strong>da</strong> preponderância indíge<strong>na</strong> <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> povo brasileiro:<br />
“A antipatia <strong>do</strong> dr. Silvio Romero pelos Tupi<strong>na</strong>mbás e a persistência com que lhes<br />
nega importância <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> povo brasileiro, explicam-se muito facilmente.<br />
Ele achou, quan<strong>do</strong> começou a escrever, o indianismo como escola literária.<br />
Estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong>-o nesta quali<strong>da</strong>de, em breve descobriu o que havia de insuficiente e<br />
estreito nos seus princípios e condenou-o. Depois por uma transição insensível,<br />
envolveu <strong>na</strong> mesma conde<strong>na</strong>ção a teoria literária e o fato sociológico. Segun<strong>do</strong> o<br />
dita<strong>do</strong> alemão, quis despejar a banheira e deitou fora também quem se banhava”<br />
(ABREU, 1931: 54).<br />
20
Assim, a despeito <strong>da</strong>s tendências que tendiam a ver a causa <strong>do</strong> “atraso” brasileiro o<br />
estágio precário de <strong>desenvolvimento</strong> de seu povo e instituições, tais autores passaram a<br />
preconizar uma imagem positiva <strong>da</strong> mestiçagem, interpretan<strong>do</strong>-a como traço distintivo de<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.<br />
“Não há aqui, pois, em rigor, venci<strong>do</strong>s e vence<strong>do</strong>res; o mestiço consagrou as<br />
raças e a vitória é assim de to<strong>da</strong>s três. Pela lei <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação elas tendem a<br />
modificar-se nele, que, por sua vez, pela lei <strong>da</strong> concorrência vital, tendeu e tende<br />
ain<strong>da</strong> a integrar-se à parte, forman<strong>do</strong> um tipo novo em que pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>rá a ação<br />
<strong>do</strong> branco” (ROMERO, 1959:51).<br />
Tal ideologia ofereceu aos intelectuais brasileiros deste momento, como para o próprio<br />
Sílvio Romero, a possibili<strong>da</strong>de de se vislumbrar a real formação de um povo e uma <strong>na</strong>ção no<br />
Brasil:<br />
“A ideologia <strong>da</strong> mestiçagem, que estava aprisio<strong>na</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong>s ambigüi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s<br />
teorias racistas, ao ser reelabora<strong>da</strong> pode difundir-se socialmente e se tor<strong>na</strong>r senso<br />
comum, ritualmente celebra<strong>do</strong> <strong>na</strong>s relações <strong>do</strong> cotidiano, ou nos grandes eventos<br />
como o car<strong>na</strong>val e o futebol. O que era mestiço tor<strong>na</strong>-se <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (ORTIZ,<br />
1985:41).<br />
Deste mo<strong>do</strong>, a ênfase consagra<strong>da</strong> aos fatores biológicos transporta-se para os fatores<br />
culturais. As explicações sobre a formação <strong>do</strong> povo brasileiro passam a ser feitas não mais<br />
através <strong>do</strong> evolucionismo, mas através <strong>da</strong>s então recentes abor<strong>da</strong>gens antropológicas. Esta<br />
ideologia está relacio<strong>na</strong><strong>da</strong> às correntes “moder<strong>na</strong>s” em nosso país.<br />
1.5 Os “forma<strong>do</strong>res” <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção<br />
A questão <strong>do</strong>s “forma<strong>do</strong>res <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção” insere-se <strong>na</strong> problemática <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção e <strong>da</strong><br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de brasileira, que surge no início <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX com a nossa Independência. Esta<br />
problemática insere-se no contexto em que diversos países “... buscavam encontrar, em alguns<br />
casos, ou reencontrar, em outros, sua identi<strong>da</strong>de, seu projeto de vi<strong>da</strong> como Nação u<strong>na</strong>,<br />
indivisível e independente” (ODÁLIA, 1997:34).<br />
21
Alguns autores têm chama<strong>do</strong> a atenção para a importância, neste perío<strong>do</strong>, <strong>do</strong> papel <strong>do</strong><br />
historia<strong>do</strong>r, o qual iria “compor” as histórias <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, ou seja, li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> com uma série de fatos<br />
<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, ele deveria justificar o processo histórico <strong>da</strong>s <strong>na</strong>ções emergentes, “identifican<strong>do</strong>” o<br />
trajeto percorri<strong>do</strong> pela “uni<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”. Desta maneira, cabia ao historia<strong>do</strong>r, juntamente com a<br />
cama<strong>da</strong> dirigente <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção:<br />
“... esquadrinhar o passa<strong>do</strong>, peneirá-lo, resolvê-lo, buscar em suas cinzas ain<strong>da</strong><br />
fumegantes, entre as mazelas <strong>da</strong> servidão e <strong>da</strong> desunião, os desvãos camufla<strong>do</strong>s,<br />
as peque<strong>na</strong>s reentrâncias, os minúsculos acontecimentos em que se inserem os<br />
primeiros gestos tími<strong>do</strong>s de identi<strong>da</strong>de, os primeiros acenos de união, os<br />
primeiros sonhos de uma pátria livre” (ODÁLIA, 1997:34).<br />
Neste mesmo momento, os governos europeus passaram a considerar a história como um<br />
meio eficaz de promover uni<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, educação moral e cívica, e fazer propagan<strong>da</strong><br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista. (BURKE, 2002: 17). Deste mo<strong>do</strong>, responden<strong>do</strong> à necessi<strong>da</strong>de de unificação política<br />
e espiritual <strong>da</strong>s <strong>na</strong>ções que <strong>na</strong>sciam após os movimentos revolucionários <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, e,<br />
atuan<strong>do</strong> em conjunto com a cama<strong>da</strong> dirigente <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, os historia<strong>do</strong>res se admitiram como<br />
“... os forja<strong>do</strong>res <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de” (ODÁLIA, 1997:34).<br />
Um <strong>da</strong>s maneiras utiliza<strong>da</strong>s para ressaltar a “uni<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” <strong>na</strong> história <strong>da</strong>s <strong>na</strong>ções foi<br />
identificar os indivíduos que haviam contribuí<strong>do</strong> para a consoli<strong>da</strong>ção desta uni<strong>da</strong>de, os quais<br />
seriam identifica<strong>do</strong>s como ”heróis-<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is”. Este recurso foi vastamente utiliza<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
historiografia brasileira. Por exemplo, em estu<strong>do</strong> sobre o pensamento historiográfico de<br />
Varnhagen, Nilo Odália afirma: “Como forma para sedimentar a uni<strong>da</strong>de territorial e espiritual<br />
<strong>da</strong> Nação <strong>na</strong>scente, Varnhagen lança mão <strong>do</strong> recurso altamente sensibilizante <strong>da</strong> criação de<br />
heróis” (ODÁLIA, 1997:57).<br />
Dante Moreira Leite en<strong>do</strong>ssa a questão acima ao afirmar que a criação de heróis <strong>na</strong><br />
historiografia tradicio<strong>na</strong>l foi, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, a expressão <strong>da</strong> exigência de “continui<strong>da</strong>de” histórica, de<br />
um passa<strong>do</strong> comum a determi<strong>na</strong><strong>do</strong> povo:<br />
“... este [o <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo brasileiro], como os outros <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismos, parece exigir<br />
uma continui<strong>da</strong>de histórica e, mais que isso, um passa<strong>do</strong> comum, que<br />
freqüentemente se aproxima <strong>do</strong> mito – característica que aqui, como em outros<br />
países, é a atmosfera que cerca os heróis <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is” (LEITE, 2002:45).<br />
22
O culto aos grandes homens era matéria prega<strong>da</strong> por diversos de nossos intelectuais, pois,<br />
além de colaborar <strong>na</strong> construção <strong>da</strong> idéia de “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de”, eles viriam a ser “fontes de<br />
inspiração”. Sílvio Romero, a esse respeito dizia Silvio Romero: “O amor pelos nossos grandes<br />
homens, o culto de nosso passa<strong>do</strong>, o entusiasmo pelo presente, serão perenes fontes de eter<strong>na</strong><br />
inspiração” (ROMERO,1911:31).<br />
Talvez o exemplo mais típico de “forma<strong>do</strong>r” <strong>do</strong> Brasil <strong>na</strong> historiografia paulista de fins <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XIX e início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> seja o <strong>do</strong> bandeirante, que era “... considera<strong>do</strong> exatamente um<br />
elo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> constituição e permanência <strong>do</strong> povo brasileiro e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, em<br />
última instância, de sua uni<strong>da</strong>de geográfica e política” (DAVIDOFF, 1982:86).<br />
Desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, criou-se a opinião de que os bandeirantes lutaram pela<br />
unificação <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção, combaten<strong>do</strong> índios, vencen<strong>do</strong> obstáculos <strong>na</strong>turais, lutan<strong>do</strong> com animais<br />
ferozes, suplantan<strong>do</strong> a <strong>na</strong>tureza selvagens. Por exemplo, em 1864, J.J. Macha<strong>do</strong> D’Oliveira dizia<br />
o seguinte <strong>do</strong>s bandeirantes em 1864: “... em to<strong>da</strong>s as capitanias tinha se ouvi<strong>do</strong> com admiração<br />
os nomes desses homens de ferro, sua coragem, e as afoitezas e animosi<strong>da</strong>des com que<br />
afrontavam aos perigos e faziam guerra aos índios” (D’OLIVEIRA, 1978:110).<br />
A afirmação comum a to<strong>da</strong>s as apologias <strong>do</strong> bandeirante, em linhas gerais, é aquela que<br />
atribui a tais perso<strong>na</strong>gens um caráter ao mesmo tempo civiliza<strong>do</strong>r e conquista<strong>do</strong>r: civiliza<strong>do</strong>r,<br />
enquanto aquele que implanta a cultura <strong>da</strong> “civilização” européia; conquista<strong>do</strong>r, enquanto aquele<br />
que subjuga os diversos povos, anexan<strong>do</strong> seu território ao <strong>do</strong>mínio brasileiro. A apologia <strong>do</strong> herói<br />
bandeirante não é unânime em nossa historiografia, haven<strong>do</strong> autores que seguiram pela via de sua<br />
desmistificação. Capistrano de Abreu, por exemplo, figura quase como exceção em seu Capítulos<br />
de História Colonial, no qual chama a atenção para as atroci<strong>da</strong>des e dispari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s guerras<br />
entre os bandeirantes e os índios: “Faltaram <strong>do</strong>cumentos para escrever a história <strong>da</strong>s bandeiras,<br />
aliás sempre a mesma: homens muni<strong>do</strong>s de armas de fogo atacam selvagens que se defendem<br />
com arco e flecha” (ABREU, 2006:85).<br />
1.6 História e política<br />
Henri Lefebvre afirmou que a idéia de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo é muito recente, e foi possível<br />
somente a partir <strong>do</strong> “classicismo abstrato” e <strong>da</strong> falta de sen<strong>do</strong> histórico que caracterizaram o fm<br />
23
<strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII (LEFEBVRE, 1988:28). Desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX os governos europeus<br />
passaram a considerar a escrita <strong>da</strong> história um instrumento altamente eficaz de promover a<br />
uni<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, a educação ci<strong>da</strong>dã <strong>do</strong> povo, e, principalmente, de fazer propagan<strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista<br />
(BURKE, 2002: 17). Por outra perspectiva, coube aos historia<strong>do</strong>res “... atender a essa<br />
necessi<strong>da</strong>de básica <strong>da</strong>s <strong>na</strong>ções que estavam em vias de formação. Eles se admitiram como os<br />
forja<strong>do</strong>res <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de” (ODÁLIA, 1997:34). A <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de é uma típica questão <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XIX, que surge em um momento onde diversos países buscavam encontrar seu projeto de<br />
<strong>na</strong>ção u<strong>na</strong>, indivisível e independente. (ODÁLIA, 1997: 34). Do mesmo mo<strong>do</strong>, nossa<br />
independência, em 1822, marca o início de um processo de longa duração, que buscava forjar a<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de “brasileira”.<br />
Em seus primórdios, entre fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII e início <strong>do</strong> XIX, a historiografia musical<br />
moder<strong>na</strong> esteve liga<strong>da</strong> a ideologias <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>listas e religiosas. Os historiógrafos de então quan<strong>do</strong><br />
realizavam a história <strong>da</strong> música estavam movi<strong>do</strong>s, <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>s vezes, por sentimentos de<br />
preservação e exaltação de tradição, seja ela <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l ou religiosa (KERMAN, 1985:35).<br />
A historiografia musical moder<strong>na</strong> surge, por sua vez, simultaneamente a outras<br />
transformações importantes ocorri<strong>da</strong>s no seio <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des moder<strong>na</strong>s, como por exemplo, a<br />
ascensão <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo-romantismo. Deste mo<strong>do</strong>, esta não poderia deixar de apresentar uma<br />
visão “romântica” e “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista”, que seria expressa, principalmente, através de uma<br />
abor<strong>da</strong>gem biográfica e pela ênfase às idéias de “gênio” ou “herói” <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l (às vezes<br />
simultaneamente).<br />
Segun<strong>do</strong> esta tendência, o primeiro expressaria a sua individuali<strong>da</strong>de em soluções<br />
origi<strong>na</strong>is nos <strong>do</strong>mínios de uma ciência misteriosa, a música (PEREIRA, 1997). O segun<strong>do</strong>, por<br />
sua vez, seria o responsável pela criação de uma música “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, pois, perceben<strong>do</strong> os “ritmos<br />
<strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza” e a “alma <strong>do</strong> povo”, elementos determi<strong>na</strong>ntes <strong>do</strong> caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, os condensaria <strong>na</strong><br />
forma de uma arte universal (ALLEN, 1962:87).<br />
As relações entre história e política se evidenciam <strong>na</strong>s <strong>na</strong>rrativas sobre a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s “heróis<br />
forma<strong>do</strong>res” <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção. No caso específico <strong>da</strong> historiografia musical brasileira, tais heróis seriam<br />
aqueles que contribuíram no processo de “civilização” e <strong>na</strong> criação de uma música “brasileira”.<br />
Exemplo disso é a historiografia <strong>do</strong> “bandeirantismo”, que, enquanto expressão <strong>da</strong> antiga<br />
aristocracia agrícola de São Paulo, procurou forjar uma imagem heróica <strong>do</strong> bandeirante,<br />
ignoran<strong>do</strong> o caráter violento de sua atuação (LEITE, 1989:54).<br />
24
1.7 História e literatura<br />
Vários musicólogos têm aponta<strong>do</strong> para o fato de que, tradicio<strong>na</strong>lmente, a historiografia<br />
musical que se desenvolveu a partir <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX não <strong>na</strong>sceu desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
literatura de seu tempo, seja em sua meto<strong>do</strong>logia, seja em seus princípios, seus objetivos e<br />
autores. Vários fatores são determi<strong>na</strong>ntes para este quadro. Por exemplo, o fato que grande parte<br />
desses autores estava liga<strong>da</strong> a ativi<strong>da</strong>de jor<strong>na</strong>lística ou editaram periódicos especificamente<br />
dedica<strong>do</strong>s a circulação de textos e notícias sobre música, como é o caso de Nicolas Etienne<br />
Framery e seu Jour<strong>na</strong>l de musique historique, teórique et pratique (1770-1771).<br />
Além disso, deve-se considerar a importância <strong>do</strong> público no direcio<strong>na</strong>mento <strong>da</strong> produção<br />
historiográfico-musical. Na Alemanha ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, por exemplo, a busca <strong>da</strong><br />
burguesia por instrução e entretenimento musical foi determi<strong>na</strong>nte para o aumento <strong>da</strong> produção e<br />
o direcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong>s assuntos. Neste senti<strong>do</strong>, as biografias ocupam local privilegia<strong>do</strong> para a<br />
apresentação <strong>do</strong>s principais tópicos em estética musical à iniciantes (PAINTER, 2002:191).<br />
Segun<strong>do</strong> Kerman, o senti<strong>do</strong> histórico em música é mais recente que <strong>na</strong> literatura<br />
(KERMAN, 1985:33). Assim, parece perfeitamente possível percebermos relações entre as<br />
formas de escrita <strong>da</strong> literatura e as formas de escrita <strong>da</strong> história.<br />
Segun<strong>do</strong> Leo<strong>na</strong>r<strong>do</strong> Waisman, são publica<strong>do</strong>s artigos lau<strong>da</strong>tórios sobre a vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s<br />
“mestres” e de suas obras a partir de abor<strong>da</strong>gens empresta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> literatura (WAISMAN,<br />
1989:20).<br />
No Brasil, a historiografia musical apresenta ape<strong>na</strong>s os reflexos <strong>do</strong> próprio sistema de<br />
produção de conhecimento histórico em nosso país. Há pouco tempo que prestamos atenção <strong>na</strong>s<br />
questões em torno <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> nossa história, e vários autores apontam para o fato de que ain<strong>da</strong><br />
não desenvolvemos ple<strong>na</strong>mente o hábito de refletir sobre nossa produção histórica nem<br />
avançamos consideravelmente em seu estu<strong>do</strong> crítico e sistemático (ODÁLIA, 1997:11). Isso<br />
porque, desde o tempo <strong>da</strong>s antigas Academias Literárias <strong>da</strong> Colônia, e entre to<strong>do</strong>s os autores que<br />
produziram no perío<strong>do</strong> anterior à déca<strong>da</strong> de 1930, a história no Brasil foi considera<strong>da</strong> como um<br />
gênero literário (LAPA, 1985: 49). Deste mo<strong>do</strong>, “... os estu<strong>do</strong>s sobre as obras de História e sua<br />
significação foram, durante muito tempo no Brasil, competência <strong>do</strong>s cultores de Literatura”<br />
(LAPA, 1985:49).<br />
25
Assim, não é difícil supor que a literatura tenha si<strong>do</strong> a grande responsável pelo tipo de<br />
abor<strong>da</strong>gem utiliza<strong>da</strong> <strong>na</strong> historiografia musical que se produziu <strong>na</strong> Europa ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XIX, e, no Brasil, durante a <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Antonio Alexandre Bispo, é possível observar que uma <strong>da</strong>s tendências mais<br />
freqüentes em trabalhos brasileiros sobre música é o ensaio (BISPO, 1983:21).<br />
“... o trabalho sobre música assume assim características de um gênero<br />
compreendi<strong>do</strong> entre ciência e arte: <strong>da</strong> ciência aproxima-se pelo esforço em<br />
conhecer e explicar os fatos, <strong>da</strong> arte pela forma de conhece-los e expressá-los”<br />
(BISPO, 1985:21)<br />
Isso pode também ter certa relação com o que nos diz Joseph Kerman, o qual apontou<br />
para o fato de que, no <strong>século</strong> XIX, a produção histórica em música estava intimamente liga<strong>da</strong> à<br />
tendências <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>listas e religiosas, as quais, deram especial atenção aos “homens ilustres” que<br />
haviam contribuí<strong>do</strong> para o crescimento de sua <strong>na</strong>ção ou religião (KERMAN, 1985:35).<br />
O surgimento de novas meto<strong>do</strong>logias a partir <strong>do</strong>s anos 1930 com a produção de<br />
historia<strong>do</strong>res liga<strong>do</strong>s à Universi<strong>da</strong>de de São Paulo - como, por exemplo, Caio Pra<strong>do</strong> Jr e Sérgio<br />
Buarque de Holan<strong>da</strong> -, ao que parece, não afetou a maneira como os historiógrafos <strong>da</strong> música<br />
percebiam a sua ativi<strong>da</strong>de, e assim, parecem certas as ressonâncias de uma abor<strong>da</strong>gem literária <strong>na</strong><br />
historiografia <strong>da</strong> música no Brasil durante este perío<strong>do</strong>.<br />
A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1940, se intensificam os trabalhos no campo <strong>da</strong> História Geral <strong>do</strong><br />
Brasil, os quais têm o objetivo de realizar uma avaliação crítica e sistematiza<strong>da</strong> <strong>da</strong>s conquistas <strong>da</strong><br />
discipli<strong>na</strong> e <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res (LAPA, 1985: 51). Nesse momento, a historiografia<br />
musical brasileira se orientava para a aplicação de méto<strong>do</strong>s desti<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao tratamento <strong>do</strong>cumental,<br />
concentran<strong>do</strong>-se quase que exclusivamente nesta tarefa e sem se preocupar mais demora<strong>da</strong>mente<br />
com as questões em torno <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música e <strong>do</strong>s músicos de São Paulo. Segun<strong>do</strong><br />
Ricar<strong>do</strong> Tacuchian, esta seria a fase de:<br />
"... levantamento sistemático e classificação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos de fontes primárias,<br />
especialmente as partituras e/ou partes musicais. Uma meto<strong>do</strong>logia científica com<br />
instrumental histórico adequa<strong>do</strong> passa a ser utiliza<strong>do</strong> para o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
autentici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> material recolhi<strong>do</strong>, sua restauração criteriosa e, sempre que<br />
possível, sua edição moder<strong>na</strong> e gravação sonora" (TACUCHIAN, 1994:99).<br />
26
Assim, a historiografia <strong>da</strong> música e <strong>do</strong>s músicos de São Paulo produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong><br />
<strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> não assimilou as mesmas bases críticas <strong>da</strong> história geral <strong>do</strong> Brasil no<br />
tocante ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história e <strong>do</strong>s meios de legitimação desse<br />
conhecimento. Não se pode esquecer que o crescimento de um público interessa<strong>do</strong> em instrução e<br />
entretenimento musical parece ter estimula<strong>do</strong>, no Brasil, o aparecimento de revistas e periódicos<br />
especializa<strong>do</strong>s, os quais, <strong>na</strong> ausência de instituições de pesquisa, e mesmo cátedras de<br />
musicologia no Brasil, se tor<strong>na</strong>ram os principais fomenta<strong>do</strong>res <strong>da</strong> produção historiográfico-<br />
musical brasileira <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.<br />
1.8 Tendências evolucionistas no pensamento brasileiro<br />
Um <strong>do</strong>s fenômenos mais significativos que ocorreu a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX foi<br />
a gradual utilização de fun<strong>da</strong>mentos teóricos <strong>da</strong>s ciências <strong>na</strong>turais no estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des<br />
huma<strong>na</strong>s. Os pressupostos <strong>da</strong> biologia e <strong>da</strong> física passaram a ser váli<strong>do</strong>s também para a história e<br />
para a sociologia. A socie<strong>da</strong>de começou a ser entendi<strong>da</strong> como um “organismo”, um sistema em<br />
equilíbrio perfeito onde ca<strong>da</strong> um de seus elementos desempenha uma função de manutenção de<br />
to<strong>da</strong> a estrutura (BURKE, 1002: 27).<br />
As várias teorias que iam surgin<strong>do</strong> neste perío<strong>do</strong> podem ser considera<strong>da</strong>s sobre o prisma<br />
comum <strong>do</strong> evolucionismo. De um mo<strong>do</strong> geral, tais teorias procuravam por um nexo comum no<br />
<strong>desenvolvimento</strong> <strong>da</strong>s diferentes socie<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s, e partiam <strong>do</strong> pressuposto que, assim como<br />
outros organismos, as socie<strong>da</strong>des huma<strong>na</strong>s estão sujeitas a certas “leis” passíveis de serem<br />
demonstra<strong>da</strong>s objetiva e empiricamente. Isso acaba por conferir a idéia de uma objetivi<strong>da</strong>de<br />
científica. Outra premissa fun<strong>da</strong>mental <strong>do</strong> pensamento evolucionista é a idéia de que organismos<br />
mais simples evoluem para os mais complexos, e de uma maneira orgânica, ou seja, cumprin<strong>do</strong><br />
certos estágios previamente determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s. (ORTIZ, 1985:14).<br />
No Brasil as discussões tomaram como conceitos-chave as noções de meio e raça, as<br />
quais, apesar de seu alcance limita<strong>do</strong> <strong>na</strong>s teorias européias, foram amplamente utiliza<strong>da</strong>s no<br />
Brasil para especificar as particulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> nossa “evolução” (ORTIZ, 1985:16).<br />
27
“... <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que a reali<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l se diferencia <strong>da</strong> européia, tem-se que<br />
ela adquire no Brasil novos contornos e peculiari<strong>da</strong>des. A especifici<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l,<br />
isto é, o hiato entre teoria e socie<strong>da</strong>de, só pode ser compreendi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />
combi<strong>na</strong><strong>do</strong> a outros conceitos que permitem considerar o porquê <strong>do</strong> ‘atraso’ <strong>do</strong><br />
país [...]” (ORTIZ, 1985:15).<br />
Sílvio Romero, por exemplo, em História <strong>da</strong> Literatura Brasileira estu<strong>da</strong> a origem de<br />
nossa poesia e de nossos contos populares a partir <strong>da</strong>s relações de “influência” entre a raça<br />
“superior” e as raças “inferiores”, e estas em relação ao meio (ROMERO1959:51).<br />
Ao nos comparar às grandes <strong>na</strong>ções européias, nossos intelectuais interpretaram o<br />
“estágio” de nossa evolução numa perspectiva não anima<strong>do</strong>ra (ORTIZ, 1985:15). Em primeiro<br />
lugar, havia a tentativa de se compreender os porquês de não se ter cria<strong>do</strong> uma civilização no<br />
Brasil. Tais questio<strong>na</strong>mentos desaguavam, em primeiro lugar, <strong>na</strong> tentativa de explicação <strong>do</strong><br />
“atraso” brasileiro, e posteriormente, <strong>na</strong> verificação <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de se criarem no Brasil (a<br />
despeito <strong>da</strong> falta de uni<strong>da</strong>de racial e cultural) um povo e uma <strong>na</strong>ção (ORTIZ, 1985:15). Deste<br />
mo<strong>do</strong>, tais dilemas se caracterizam pela tentativa de compreender a “... defasagem entre teoria e<br />
reali<strong>da</strong>de, o que se consubstancia <strong>na</strong> construção de uma identi<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (ORTIZ,<br />
1985:15).<br />
Foi quan<strong>do</strong> se acreditou que a determi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l deveria ser feita a partir<br />
<strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des de nossa formação, <strong>da</strong> busca <strong>da</strong>s “leis” que gover<strong>na</strong>ram a<br />
interação <strong>da</strong>s três forma<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> Brasil (branca, negra, indíge<strong>na</strong>): “O espetáculo de nossa<br />
história, pois, é o <strong>da</strong> modificação de três povos para a formação de um povo novo; é um<br />
espetáculo de transformações de forças étnicas e aptidões de três culturas diversas, três almas<br />
que se fundem” (ROMERO, 1959:57).<br />
Para Sílvio Romero, por exemplo, a filosofia <strong>da</strong> história <strong>do</strong> Brasil consistirá em “...<br />
marcar a lei <strong>do</strong> fluxo e <strong>do</strong> refluxo dessas causas diversas, ação e reação de umas sobre as<br />
outras, a justaposição <strong>do</strong> elemento moral sobre o elemento mesológico e étnico” (ROMERO,<br />
1959:57). Fi<strong>na</strong>lmente, Romero afirma que tal lei, “de psicologia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, não é outra senão “...<br />
a lei gera <strong>da</strong> transformação <strong>da</strong>s espécies, a lei <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação e <strong>da</strong> seleção <strong>na</strong>tural sustenta<strong>da</strong> por<br />
uma raça que emigrou para um meio diverso <strong>do</strong> seu habitat anterior” (ROMERO, 1959:57).<br />
O evolucionismo tem no Brasil seus mais significativos representantes o já cita<strong>do</strong> com<br />
Sílvio Romero, Capistrano de Abreu e Euclides <strong>da</strong> Cunha, os quais escreviam sobre os mais<br />
diversos assuntos, dentre eles história, crítica literária e o que então se chamava sociologia. Em<br />
28
sua História <strong>da</strong> Literatura Brasileira, por exemplo, Sílvio Romero afirma que: “Não resta a<br />
menor dúvi<strong>da</strong> que a história deve ser encara<strong>da</strong> como um problema de biologia” (ROMERO,<br />
1959:57). E em outra passagem nos diz que “O primo vivere é tão certo para os povos como para<br />
os indivíduos; o homem antes de ser um ente histórico é um indivíduo biológico” (ROMERO,<br />
1903:14).<br />
No entanto, isso não quer dizer que tais autores desprezassem o fator cultural <strong>na</strong> formação<br />
histórica de determi<strong>na</strong><strong>do</strong> povo. A esse respeito, Romero faz a ressalva: “Para contrabalançar as<br />
influências hereditárias <strong>da</strong> raça, por exemplo, existem as influências transmiti<strong>da</strong>s pela educação,<br />
pela seleção artística <strong>da</strong> cultura” (ROMERO, 1959:57). Naturalmente, de acor<strong>do</strong> com o<br />
pensamento de sua época, para Sílvio Romero a ação cultural viria ape<strong>na</strong>s a “contrabalançar” o<br />
fator biológico e mesológico.<br />
Segun<strong>do</strong> Nilo Odália, os historia<strong>do</strong>res brasileiros desse perío<strong>do</strong>:<br />
“... vão extrair <strong>da</strong> experiência histórica <strong>da</strong> relativamente nova socie<strong>da</strong>de<br />
brasileira os elementos de uma interpretação ideológica que amol<strong>da</strong> as<br />
peculiari<strong>da</strong>des de nosso ambiente racial e geográfico às condições de teorias que<br />
conde<strong>na</strong>vam a priori qualquer esforço de edificação de uma <strong>na</strong>ção nos trópicos”<br />
(ODÁLIA, 1997:17).<br />
Re<strong>na</strong>to Ortiz aponta para o fato de que Silvio Romero havia feito uma lista <strong>da</strong>s teorias que<br />
teriam contribuí<strong>do</strong> para a superação <strong>do</strong> pensamento romântico no Brasil, as quais se constituíram,<br />
em fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, os fun<strong>da</strong>mentos para os estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira:<br />
“Dentre elas, três tiveram um impacto real junto a inteligentsia brasileira: e de uma<br />
certa forma delinearam os limites no interior <strong>do</strong>s quais to<strong>da</strong> a produção teórica <strong>da</strong><br />
época se constitui: o positivismo de Comte, o <strong>da</strong>rwinismo social, o evolucionismo<br />
de Spencer” (ORTIZ, 1985:14).<br />
Segun<strong>do</strong> Capistrano de Abreu, simpático às teorias de Spencer, a influência <strong>do</strong> meio no<br />
<strong>desenvolvimento</strong> de qualquer socie<strong>da</strong>de se dá pelo fato de que “... embora, modificável dentro de<br />
certos limites, é ele por sua <strong>na</strong>tureza persistente, pouco plástico, invariável até algumas de suas<br />
feições” (ABREU, 1931:37). E falan<strong>do</strong> especificamente <strong>do</strong> meio continua, “... como pode<br />
compreender-se que o homem e a socie<strong>da</strong>de fossem refratárias a ação <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza brasílica?”<br />
(ABREU,1931:39).<br />
29
O evolucionismo parece cair em descrédito no Brasil em função de algumas críticas à<br />
noção de “raça” advin<strong>da</strong>s <strong>da</strong> antropologia <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>:<br />
“Há, em primeiro lugar, a variabili<strong>da</strong>de de critérios: alguns pensam em cor de<br />
pele; outros, <strong>na</strong>s proporções de medi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> cabeça. E não só os critérios são<br />
superponíveis, mas também existem os tipos intermediários, cuja classificação<br />
apresenta uma dificul<strong>da</strong>de insuperável” (LEITE, 2002:52).<br />
Além disso, o movimento modernista a partir de 1922 propõe a compreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira não mais sob a perspectiva <strong>do</strong> “atraso”, mas através <strong>da</strong> construção de um<br />
projeto de cultura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Desta maneira, os conceitos de “raça” e “meio” utiliza<strong>do</strong>s por nossos<br />
autores evolucionistas passam a ser gra<strong>da</strong>tivamente substituí<strong>do</strong>s pelo conceito de “cultura”.<br />
(LEITE, 2002:52) Este, a partir <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no de uma abor<strong>da</strong>gem “biológica”, minimizaria as<br />
contradições sociais e prepararia o caminho para a criação de uma cultura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l<br />
(LAHUERTA, 1997: 96).<br />
1.9 Tendências positivistas no pensamento brasileiro<br />
O Positivismo foi uma <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> filosófica que surgiu <strong>na</strong> França em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XIX, ten<strong>do</strong> como seu principal formula<strong>do</strong>r Auguste Comte (1798-1857). Segun<strong>do</strong> o filósofo<br />
havia algo de permanente no <strong>desenvolvimento</strong> <strong>do</strong> espírito humano e em seus mo<strong>do</strong>s de pensar e<br />
explicar o mun<strong>do</strong>. A partir dessa idéia ele desenvolveu a “leis <strong>do</strong>s três esta<strong>do</strong>s”. No primeiro<br />
esta<strong>do</strong> (teológico-fictício), o espírito humano explicaria os fenômenos por meio de “vontades<br />
transcendentais” ou “agentes sobre<strong>na</strong>turais”; no segun<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> (metafísico-abstrato), os<br />
fenômenos seriam explica<strong>do</strong>s por meio de especulações as quais se apoiariam em conceitos<br />
“abstratos”; no terceiro e último esta<strong>do</strong> (positivo-científico), os fenômenos se explicariam através<br />
<strong>da</strong> subordi<strong>na</strong>ção a determi<strong>na</strong><strong>da</strong>s leis experimentalmente demonstráveis (RIBEIRO, 2001:19).<br />
Assim, para Comte, "... to<strong>da</strong>s as ciências passaram pelos <strong>do</strong>is primeiros esta<strong>do</strong>s, e só se<br />
constituíram quan<strong>do</strong> chegaram ao terceiro" (RIBEIRO, 2001:19).<br />
A entra<strong>da</strong> <strong>do</strong> positivismo no Brasil se deu, segun<strong>do</strong> se sabe, através <strong>do</strong>s estu<strong>da</strong>ntes de<br />
medici<strong>na</strong>, direito e ciências matemáticas que haviam trava<strong>do</strong> contato com a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> em diversos<br />
30
países <strong>da</strong> Europa. Ivan Lins (LINS, 1964:30-31) se refere a um certo Antonio Macha<strong>do</strong> Dias, o<br />
qual teria si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s “auditores livres” <strong>do</strong>s cursos de Augusto Comte <strong>na</strong> Escola Politécnica de<br />
Paris, entre 1837 e 1838. O mesmo Antonio Macha<strong>do</strong> Dias fora, posteriormente, professor <strong>do</strong><br />
Visconde de Tau<strong>na</strong>y, no Colégio Pedro II. Outros três brasileiros que estu<strong>da</strong>ram <strong>na</strong> Escola<br />
Politécnica de Paris teriam si<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> alunos particulares de Comte entre 1838 e 1839: José P.<br />
d’Almei<strong>da</strong>, Antonio de Campos Belos e Agostinho Roiz Cunha. (LINS, 1964:14).<br />
Outro caso é o <strong>do</strong> clínico paulista Luís Pereira Barreto, um <strong>do</strong>s grandes divulga<strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />
positivismo no Brasil. Este havia toma<strong>do</strong> contato com a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> em Bruxelas, através de Marie<br />
de Ribbentrop, durante um curso de medici<strong>na</strong>. Ribbentrop havia <strong>na</strong>sci<strong>do</strong> em Metz, em 1837, e era<br />
filha <strong>do</strong> Barão prussiano A<strong>do</strong>lf von Ribbentrop, segun<strong>do</strong> Ivan Lins, um “positivista de <strong>primeira</strong><br />
hora”, o qual Comte designou como representante <strong>da</strong> Prússia no Comitê Positivo Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l,<br />
de que vinha cogitan<strong>do</strong> desde 1848 (LINS, 1964:45).<br />
Diga-se de passagem, Marie Ribbentropp, que conheceu pessoalmente Comte e assistira<br />
ain<strong>da</strong> meni<strong>na</strong> um de seus cursos sobre a História Geral <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, foi educa<strong>da</strong> fora de<br />
qualquer influência teológica, sob a direção de seu pai, que a iniciou <strong>na</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> (LINS,<br />
1964:45).<br />
Podemos acompanhar a dissemi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> positivismo no Brasil através de diversos<br />
trabalhos que surgem em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX. Em 1844, por exemplo, <strong>do</strong>is anos após Comte<br />
publicar o último volume <strong>do</strong> Curso de Filosofia Positiva, Justiniano <strong>da</strong> Silva Gomes, que esteve<br />
em Paris por volta de 1842, solicitava uma cátedra à Facul<strong>da</strong>de de Medici<strong>na</strong> <strong>da</strong> Bahia com a tese<br />
“Plano e méto<strong>do</strong> de um curso de fisiologia”, <strong>na</strong> qual se referia à “lei <strong>do</strong>s três esta<strong>do</strong>s” (LINS,<br />
1964:17).<br />
Nísia Floresta, responsável pelo “Colégio Augusto”, no Rio de Janeiro, onde lecio<strong>na</strong>va,<br />
para mulheres, latim e diversas outras matérias, publicou, sob influência <strong>da</strong>s idéias de Comte,<br />
uma coletânea de sessenta e <strong>do</strong>is artigos sobre educação femini<strong>na</strong> intitula<strong>da</strong> “Opúsculo<br />
Humanitário”, <strong>primeira</strong>mente, no Diário <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e logo em segui<strong>da</strong>, em O Liberal<br />
(LINS, 1964:20).<br />
Ten<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong> seu primeiro contato com Auguste Comte em Paris numa <strong>da</strong>s sessões<br />
<strong>do</strong> curso ministra<strong>do</strong> pelo filósofo francês sobre a História Geral <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de, Nísia oferece-<br />
lhe um exemplar <strong>do</strong> “Opúsculo” conten<strong>do</strong> a seguinte dedicatória: “Ao grande pai <strong>da</strong><br />
31
Humani<strong>da</strong>de, o profun<strong>do</strong> filósofo M.A Comte, home<strong>na</strong>gem <strong>da</strong> autora. Brasileira Augusta 1 ”<br />
(LINS, 1964:20).<br />
Laffitte:<br />
Sobre esta obra, comentou o próprio Comte numa carta a outro positivista, Pierre<br />
“O opúsculo em português, além de revelar-me que eu sabia indiretamente mais<br />
uma língua, inspira-me sóli<strong>da</strong>s razões para esperar se torne a nobre <strong>da</strong>ma, sua<br />
autora, dentro em breve, uma dig<strong>na</strong> positivista, susceptível de alta eficácia para<br />
nossa propagan<strong>da</strong> femini<strong>na</strong> e meridio<strong>na</strong>l” (LINS, 1964:20).<br />
A partir de 1850, várias instituições no Brasil passaram a a<strong>do</strong>tar, através de alguns de seus<br />
professores, o positivismo como fun<strong>da</strong>mento filosófico, e dentre elas, figura o Colégio Pedro II, a<br />
Escola Politécnica, e evidentemente a já cita<strong>da</strong> Escola Militar. Em 1873, por exemplo, antes de<br />
prestar provas orais para ser admiti<strong>do</strong> no quadro de professores <strong>da</strong> Escola Militar, Benjamin<br />
Constant in<strong>da</strong>gou à mesa se o fato de ter aceito o positivismo como <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>, deven<strong>do</strong> por ele<br />
pautar as suas lições, não o incompatibilizaria de concorrer ao cargo a que se propunha. Estava<br />
presente D. Pedro II, que o permitiu prosseguir sua avaliação, “... episódio que igualmente<br />
enobrece o mo<strong>na</strong>rca e aquele que, dezesseis anos mais tarde, chefiaria o movimento que<br />
resultaria <strong>na</strong> República” (LINS, 1964: 305).<br />
Outros trabalhos influencia<strong>do</strong>s pelo positivismo vão surgin<strong>do</strong> no Brasil ao longo <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XIX, demonstran<strong>do</strong> assim a adesão de princípios <strong>da</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> pela parcela liberal<br />
brasileira. Por exemplo, apresenta à Escola Militar Joaquim Pereira de Sá, em 1850, uma tese<br />
sobre os princípios <strong>da</strong> Estática, em 1851 é Joaquim Mauro Saião, que escreve sobre<br />
Hidroestática, e por fim, em 1855, Augusto Dias Carneiro, sobre Termologia (GAGLIARDI,<br />
1989:42-43).<br />
Em 1865, o cita<strong>do</strong> Pereira Barreto submete à Facul<strong>da</strong>de de Medici<strong>na</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro<br />
uma tese de feição acentua<strong>da</strong>mente positivista. Tratava-se de “Teoria <strong>da</strong>s Gastralgias e <strong>da</strong>s<br />
Nevroses em Geral”. Consagra<strong>da</strong> à memória de Comte, esta tese reproduzia em suas pági<strong>na</strong>s<br />
iniciais uma máxima positivista: “O amor como princípio e a ordem por base; o progresso por<br />
fim”. A tese fora ain<strong>da</strong> dedica<strong>da</strong> a vários positivistas europeus, dentre eles Laffitte, Congreve,<br />
1 “Au grand Prètre de l’Humanitè, le profund philosophe M.A Comte, hommage de l’auteur. Brasileira<br />
Augusta”<br />
32
Audiffrent, e também a seus amigos brasileiros positivistas Ribeiro de Men<strong>do</strong>nça e Brandão<br />
Júnior (LINS, 1964:?).<br />
A partir de 1870, mais <strong>do</strong>centes e alunos de diversas instituições de ensino no Brasil:<br />
“... engajaram-se firmemente <strong>na</strong> difusão <strong>do</strong> <strong>da</strong>rwinismo, <strong>do</strong> positivismo e <strong>do</strong>s<br />
pensa<strong>do</strong>res anticlericais então em voga [...] No perío<strong>do</strong> anterior, as simpatias<br />
pelas <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>s de Augusto Comte (1798/1957) só chegaram a adquirir<br />
significação <strong>na</strong> Academia Militar (BRASIL; CONGRESSO; CÂMARA DOS<br />
DEPUTADOS, 1981:3).<br />
Para os militares positivistas, através de uma educação técnico-civil-militar, a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong><br />
oferecia a oportuni<strong>da</strong>de de uma reforma que tinha como objetivo civilizar e educar o povo<br />
brasileiro, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> país uma <strong>na</strong>ção moder<strong>na</strong> e progressista. Para tal, em 1890, Benjamin<br />
Constant promoveu uma reforma no ensino secundário que tinha como objetivo essencial<br />
transformá-lo num “... ciclo integral de formação científica e humanista nos modelos<br />
preconiza<strong>do</strong>s por Augusto Comte” (MORAES, 1997:75). Constant promoveu outra reforma,<br />
desta vez <strong>na</strong> educação militar, a qual deveria se dirigir tanto aos melhoramentos <strong>da</strong> arte <strong>da</strong> guerra<br />
quanto ao avanço <strong>da</strong> missão civiliza<strong>do</strong>ra, moral e humanitária desig<strong>na</strong><strong>da</strong> aos exércitos <strong>do</strong><br />
continente sul-americano (MORAES, 1997:74).<br />
Em sua visão, o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> deveria ser a “... corporificação <strong>da</strong> honra <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e importante<br />
coopera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> progresso como garantia <strong>da</strong> ordem e <strong>da</strong> paz públicas” (MORAES, 1997:74). Para<br />
tanto, o sol<strong>da</strong><strong>do</strong>-ci<strong>da</strong>dão de Constant, necessitaria de uma educação “... que o habilite pela<br />
formação <strong>do</strong> coração, pelo legítimo <strong>desenvolvimento</strong> <strong>do</strong>s sentimentos afetivos, pela racio<strong>na</strong>l<br />
expansão <strong>da</strong> inteligência, e bem conhecer os seus deveres não só militares como principalmente<br />
sociais” (MORAES, 1997:75).<br />
Do mesmo mo<strong>do</strong>, os profissio<strong>na</strong>is liberais que haviam aderi<strong>do</strong> ao positivismo<br />
interpretavam a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de Comte com espírito progressista, imbuin<strong>do</strong>-se de ideais de reforma<br />
social no Brasil. Exemplo disso é o próprio Pereira Barreto, o qual havia se empenha<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
propagan<strong>da</strong> <strong>do</strong> positivismo em solo brasileiro. Numa carta <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 14 de dezembro de 1864 e<br />
envia<strong>da</strong> ao positivista Pierre Laffitte, transparece a vontade de Pereira Barreto de implantar o<br />
positivismo no Brasil:<br />
33
“No que diz respeito aos interesses positivistas, não posso ain<strong>da</strong> falar-lhe exprofesso.<br />
Mas já pude ver que a <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> regenera<strong>do</strong>ra não encontrará aqui muita<br />
oposição. As câmaras legislativas estão no auge <strong>do</strong> descrédito e o clero, em<br />
desordem, só continua a subsistir pela tolerância <strong>da</strong> população que não encontra<br />
coisa melhor. Os padres são ignorantes e de sórdi<strong>da</strong> falta de vergonha. Só fazem<br />
destruir os bons resulta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> influência <strong>do</strong>s jesuítas. O povo está<br />
ver<strong>da</strong>deiramente priva<strong>do</strong> de qualquer direção moral. É impossível ao governo<br />
fazer penetrar sua ação até o interior. E, apesar desse completo aban<strong>do</strong>no, a<br />
população é de uma <strong>do</strong>çura incomparável, de uma franqueza e de uma<br />
hospitali<strong>da</strong>de patriarcais. Não há polícia e quase não há crimes. Até o momento<br />
pude conversar um pouco sobre o Positivismo com meu pai, que concor<strong>da</strong> com as<br />
nossas idéias sem restrição (LINS,1964:47-48).<br />
A propagan<strong>da</strong> <strong>do</strong> positivismo em diversos países espalha<strong>do</strong>s pelo mun<strong>do</strong> afora parece ter<br />
si<strong>do</strong> um tópico relevante para Comte e outros companheiros positivistas. Para esse fim, o filósofo<br />
planejava realizar “salões positivistas”, ou seja, reuniões <strong>na</strong> casa de particulares, <strong>na</strong>s quais, <strong>na</strong><br />
presença <strong>do</strong> mestre, se discutiria sobre os diversos tópicos <strong>da</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> bem sobre as estratégias de<br />
“conversão” de novos adeptos. Segun<strong>do</strong> uma carta envia<strong>da</strong> ao Dr. Audiffrant em 29 de março de<br />
1857, Comte assume ver em Nísia Floresta, e mais precisamente, em sua filha, presidentes em<br />
potencial desses salões positivistas:<br />
“Durante vossa visita de outono, comunicar-vos-ei especialmente as fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
esperanças que me inspiram, para nosso mais decisivo progresso, duas novas<br />
discípulas meridio<strong>na</strong>is, uma nobre viúva brasileira, e, sobretu<strong>do</strong> sua dig<strong>na</strong> filha,<br />
contan<strong>do</strong> respectivamente 47 e 22 anos. Estão em Paris há sete meses e tenho<br />
motivo de esperar que aqui se fixarão, de mo<strong>do</strong> a poderem presidir o ver<strong>da</strong>deiro<br />
salão positivista que nos seria tão precioso. Ambas são eminentes pelo coração e<br />
suficientes quanto ao espírito. Acha-se, contu<strong>do</strong>, a mãe de tal mo<strong>do</strong> imbuí<strong>da</strong> de<br />
hábitos <strong>do</strong> <strong>século</strong> dezoito, que pouco devemos esperar <strong>da</strong> plenitude de sua<br />
conversão, embora as suas simpatias remontem ao meu curso de 1851, cuja<br />
influência ela não pôde, entretanto, receber senão através de uma única <strong>da</strong>s<br />
sessões. Sua filha, porém, comporta uma incorporação completa, que a mãe<br />
secun<strong>da</strong>rá sem rivali<strong>da</strong>de disfarça<strong>da</strong>” (LINS, 1964:21).<br />
Durante os últimos anos <strong>do</strong> Império, a Escola Militar era ple<strong>na</strong>mente positivista, e<br />
passou a ser mais um centro de estu<strong>do</strong>s de matemática, filosofia e letras <strong>do</strong> que de discipli<strong>na</strong>s<br />
militares (MORAES, 1997:77). De certo mo<strong>do</strong>, é <strong>na</strong>tural que “... fosse nessas escolas o lugar<br />
onde o Positivismo esteve melhor representa<strong>do</strong> e mais ativo, pois eram escolas de ciências exatas<br />
e <strong>na</strong>turais, modelos <strong>do</strong> pensamento objetivo de Comte” (LINS, 1964:306).<br />
34
O desprestígio <strong>da</strong> classe militar com o fim <strong>da</strong> Guerra <strong>do</strong> Paraguai parece ter leva<strong>do</strong> jovens<br />
militares a se afastar <strong>do</strong> ideal bélico, e, assim, se aproximar <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de ciências exatas.<br />
(MORAES, 1997:74). Neste perío<strong>do</strong>, os militares passaram a receber determi<strong>na</strong>ções que além de<br />
denegrir a imagem <strong>da</strong> corporação, como por exemplo, caçar escravos fugitivos - tarefa<br />
normalmente entregue aos “capitães <strong>do</strong> mato”. Além disso, o próprio princípio escravagista se<br />
opunha diretamente àqueles outros preconiza<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de Comte, de teor altruísta. Com<br />
isso, os atritos entre o Exército (agora mais organiza<strong>do</strong> e numeroso) e o Império se intensificaram<br />
“... até beirar o rompimento de fato entre alguns setores <strong>da</strong> oficiali<strong>da</strong>de e o Governo monárquico<br />
por volta de 1887” (TEIXEIRA, 1978:267).<br />
Outros profissio<strong>na</strong>is liberais que haviam aderi<strong>do</strong> ao positivismo também interpretaram a<br />
<strong>do</strong>utri<strong>na</strong> com espírito progressista, e imbuíram-se de ideais que tinham como foco uma reforma<br />
social no Brasil. Um exemplo disso foi a preferência pelas idéias <strong>do</strong> positivismo “religioso” por<br />
alguns liberais brasileiros engaja<strong>do</strong>s <strong>na</strong> dissemi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> no país, como é o caso de<br />
Miguel Lemos. Em seu primeiro ano em Paris (1877), onde esteve para concluir o curso<br />
politécnico, Miguel Lemos decepcio<strong>na</strong>ra-se com Littré, segun<strong>do</strong> ele um “erudito seco” e sem<br />
“ação social”, “... um paciente investiga<strong>do</strong>r de vocábulos, sem entusiasmo, sem fé, absorvi<strong>do</strong> <strong>na</strong>s<br />
minúcias de uma erudição estéril” (BRASIL; CONGRESSO; CÂMARA DOS DEPUTADOS,<br />
1981:4).<br />
Nsse tempo, Lemos entrara em contato com a obra fi<strong>na</strong>l de Comte, Sistema Política<br />
Positiva, onde o filósofo concebeu a “Religião <strong>da</strong> Humani<strong>da</strong>de” (BRASIL; CONGRESSO;<br />
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1981:4).<br />
Ten<strong>do</strong> diversos estabelecimentos de ensino no Brasil a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o positivismo como<br />
<strong>do</strong>utri<strong>na</strong> nortea<strong>do</strong>ra, grande parte <strong>da</strong>queles que desempenharam funções de destaque e projeção<br />
social entre mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> (médicos, professores de ciências<br />
matemáticas e biológicas, membros <strong>do</strong> funcio<strong>na</strong>lismo público, militares, entre outros) foram<br />
positivistas, e senão, alunos de positivistas.<br />
1.10 Algumas considerações sobre o Modernismo no Brasil<br />
35
O movimento modernista teve inicio em 1922 e propunha a socie<strong>da</strong>de brasileira um<br />
projeto de âmbito <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, que visava, num primeiro momento, criar uma “literatura brasileira”,<br />
e posteriormente - projeto mais ambicioso, criar uma cultura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l (MORAIS, 1978:73).<br />
Estes anos “... são simbólicos <strong>na</strong> história política e cultural brasileira, por i<strong>na</strong>ugurarem<br />
a gênese <strong>do</strong> Brasil Moderno, com a introdução de procedimentos, hábitos, ângulos de visão,<br />
diagnósticos que orientaram o mobilizaram várias gerações” (LAHUERTA, 1997:93). O tema<br />
<strong>da</strong> organização e unificação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l prevalece entre a intelectuali<strong>da</strong>de brasileira neste momento,<br />
e ampliam-se as tentativas de compreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira (LAHUERTA, 1997:96).<br />
Instaura-se neste perío<strong>do</strong> “... uma crise de ‘identi<strong>da</strong>de social’ entre a intelectuali<strong>da</strong>de,<br />
levan<strong>do</strong> o conjunto <strong>do</strong>s homens cultos a problematizar sua condição com enorme radicali<strong>da</strong>de”<br />
(LAHUERTA, 1997:94-96). A idéia de “missão”, presente entre os intelectuais brasileiros desde<br />
os primeiros anos <strong>da</strong> República, se aprofun<strong>da</strong> dentro <strong>do</strong> processo histórico vivencia<strong>do</strong> ao longo<br />
<strong>do</strong>s anos 20, fazen<strong>do</strong> com que a base <strong>do</strong>s questio<strong>na</strong>mentos se desse sob um ângulo que, buscan<strong>do</strong><br />
o “brasileiro”, recolocasse com maior intensi<strong>da</strong>de o tema <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e <strong>do</strong> popular (LAHUERTA,<br />
1997: 95).<br />
“Para esse esforço [a modernização e <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização <strong>do</strong> Brasil] é chama<strong>da</strong> a<br />
inteligência brasileira. O estu<strong>do</strong> de nossos problemas, a análise profun<strong>da</strong> de<br />
nossas cama<strong>da</strong>s sociais, a in<strong>da</strong>gação <strong>do</strong>s seus desejos e necessi<strong>da</strong>des, a<br />
psicologia exata <strong>do</strong> povo são elementos de verificação indispensáveis para<br />
qualquer obra construtora neste senti<strong>do</strong> [...]. Para a realização dessa obra<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l é que o país reclama o esforço de to<strong>do</strong>s os homens de inteligência e<br />
ação” (ALMEIDA, 1928: 3).<br />
Essas transformações verifica<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920 se des<strong>do</strong>bram <strong>na</strong> Revolução<br />
de 30 e no Esta<strong>do</strong> Novo, implantan<strong>do</strong> um modelo de produção cultural até então jamais visto <strong>na</strong><br />
história brasileira. Tais transformações no seio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de fazem surgir uma identi<strong>da</strong>de<br />
intelectual “... que se define pela tentativa de construir, como se fossem termos intercambiáveis,<br />
a <strong>na</strong>ção, o povo e o moderno” (LAHUERTA, 1997: 95).<br />
Os modernistas convocam a socie<strong>da</strong>de brasileira, representa<strong>da</strong> por seus “homens de<br />
inteligência e ação”, para o estu<strong>do</strong> de seus problemas, para “... a análise profun<strong>da</strong> de nossas<br />
cama<strong>da</strong>s sociais, a in<strong>da</strong>gação <strong>do</strong>s seus desejos e necessi<strong>da</strong>des, a psicologia exata <strong>do</strong> povo”<br />
(ALMEIDA, 1928:3), os quais são “... elementos de verificação indispensáveis para qualquer<br />
obra construtora neste senti<strong>do</strong>” (ALMEIDA, 1928: 3).<br />
36
Para a realização desta tarefa que visava a criação de uma cultura <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l unifica<strong>da</strong>, os<br />
modernistas aban<strong>do</strong><strong>na</strong>ram as especulações em torno <strong>do</strong> “atraso”, fazen<strong>do</strong> com que os conceitos<br />
de “raça” e “meio”, utiliza<strong>do</strong>s anteriormente à exaustão por evolucionistas como Silvio Romero e<br />
Capistrano de Abreu, fossem paulati<strong>na</strong>mente substituí<strong>do</strong>s pelo conceito de “cultura”, o qual,<br />
aparentemente, minimiza as contradições sociais, permitin<strong>do</strong> com que a raça branca, negra e<br />
indíge<strong>na</strong>, pudessem, juntas, formar um dia o povo “brasileiro” (LAHUERTA, 1997: 96).<br />
Portanto, há neste momento, simultaneamente, uma mu<strong>da</strong>nça de paradigma científico<br />
entre os pensa<strong>do</strong>res <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira e uma mu<strong>da</strong>nça de perspectiva em relação à reali<strong>da</strong>de<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l: aban<strong>do</strong><strong>na</strong>-se uma perspectiva “realista-pessimista” (exemplifica<strong>do</strong> por pensa<strong>do</strong>res,<br />
como Silvio Romero, que conde<strong>na</strong>vam a priori a possibili<strong>da</strong>de de criação de uma civilização no<br />
Brasil) em prol de uma perspectiva “construtivista”, que visava, antes de tu<strong>do</strong>, a criação de uma<br />
cultura “brasileira”. Esta mu<strong>da</strong>nça de perspectiva foi possível, segun<strong>do</strong> Moraes, devi<strong>do</strong> à<br />
revalorização e incorporação <strong>do</strong> “primitivismo” <strong>na</strong> arte moder<strong>na</strong> inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, o que fez com que<br />
elementos relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao “atraso” fossem reinterpreta<strong>do</strong>s e vistos como traços distintivos de<br />
cultura (MORAES, 1998).<br />
2. Objeto e contexto (1900-1954)<br />
Neste capítulo estu<strong>da</strong>remos o contexto particular <strong>do</strong> objeto, ou seja, o que se tem<br />
publica<strong>do</strong>, quais os principais autores, que meios dispuseram para divulgação de seus escritos,<br />
qual o público de tais escritos, que realizações sobre a história de São Paulo podem ser<br />
encontra<strong>da</strong>s neste momento etc.<br />
2.1 O objeto em biografias<br />
A biografia é a principal forma de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> historiografia musical tradicio<strong>na</strong>l<br />
(PEREIRA, 1996:40). Segun<strong>do</strong> Dwight Allen, em Philosophies of music history, a origem <strong>do</strong><br />
37
iografismo <strong>na</strong> historiografia musical se deve aos racio<strong>na</strong>listas <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, os quais<br />
julgaram os músicos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> como “inventores” <strong>da</strong> arte e ciência musical, e mais,<br />
considera<strong>do</strong>s responsáveis pelo “<strong>desenvolvimento</strong> constante” e pelo “progresso” <strong>da</strong> arte musical,<br />
em função de seus poderes racio<strong>na</strong>is e de seu esforço consciente (ALLEN, 1962: 85). Allen<br />
lembra ain<strong>da</strong> que, ao levar o “terror” à França, o racio<strong>na</strong>lismo havia se posto em ver<strong>da</strong>deiro<br />
descrédito, causan<strong>do</strong>, de tal mo<strong>do</strong>, uma revitalização <strong>da</strong> fé cristã, e assim, crian<strong>do</strong> um ambiente<br />
favorável para que os historia<strong>do</strong>res recorressem à expla<strong>na</strong>ções de ordem super<strong>na</strong>tural, onde a<br />
idéia de gênio poderia se desenvolver ple<strong>na</strong>mente (ALLEN, 1961:87).<br />
José Honório Rodrigues nos apresenta importantes considerações para compreendermos o<br />
caráter <strong>do</strong> gênero biográfico. Em primeiro lugar, o autor dizer este ser um gênero origi<strong>na</strong>lmente<br />
associa<strong>do</strong> à poesia e à prosa, e em segun<strong>do</strong> lugar, que há uma estreita conexão entre a biografia e<br />
o elogio, chegan<strong>do</strong> mesmo esta a ser caracteriza<strong>da</strong> pelo autor como um tipo de literatura<br />
comemorativa (RODRIGUES, 1978:204). O autor exemplifica suas considerações com uma série<br />
de tipos de escritos biográficos produzi<strong>do</strong>s entre várias civilizações desde a Antigui<strong>da</strong>de até os<br />
dias de hoje.<br />
Além disso, o autor relata que no Brasil houve sempre um pre<strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> biografia de<br />
perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de sobre a própria história política, e que durante muito tempo nossa história política<br />
foi escrita em torno de figuras centrais como D. João, D. Pedro I, José Bonifácio, D. Pedro II,<br />
Joaquim Nabuco, Rui Barbosa etc (RODRIGUES, 1978:206). Segun<strong>do</strong> Rodrigues, através <strong>da</strong>s<br />
biografias a historiografia brasileira difundiu a idéia de “heróis” vincula<strong>do</strong>s ao processo de<br />
“criação” <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção. Segun<strong>do</strong> o autor, “... os heróis aparecem <strong>na</strong>s ativi<strong>da</strong>des <strong>do</strong>mésticas ou<br />
superestruturais <strong>da</strong> política, sem que esta última se coordene com as bases econômicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (RODRIGUES, 1978:206).<br />
Nilo Odália, por sua vez, cita o caso <strong>do</strong> renoma<strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r brasileiro de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XIX, Francisco de Varnhagen, o qual, no intuito de sedimentar a uni<strong>da</strong>de territorial <strong>da</strong><br />
<strong>na</strong>scente <strong>na</strong>ção brasileira, “... lança mão <strong>do</strong> recurso altamente sensibilizante <strong>da</strong> criação de<br />
heróis” (ODÁLIA, 1997:57). Do mesmo mo<strong>do</strong>, a historiografia paulista <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
procurou forjar uma imagem heróica <strong>do</strong> bandeirante, então “... considera<strong>do</strong> exatamente um elo<br />
fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> constituição e permanência <strong>do</strong> povo brasileiro e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, em última<br />
instância, de sua uni<strong>da</strong>de geográfica e política” (DAVIDOFF, 1982:86).<br />
38
Dentre os músicos que atuaram em São Paulo, Carlos Gomes foi o que mais teve<br />
biografias publica<strong>da</strong>s, o que certamente se deve à sua reputação inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l enquanto<br />
compositor de óperas. Conforme uma bibliografia sobre o compositor disponível <strong>na</strong> pági<strong>na</strong><br />
eletrônica <strong>do</strong> “Núcleo de Informação Automatiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> Divisão de Música e Arquivo Sonoro <strong>da</strong><br />
Fun<strong>da</strong>ção Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l”, sua vi<strong>da</strong> tem si<strong>do</strong> registra<strong>da</strong> e <strong>na</strong>rra<strong>da</strong> em diversas publicações<br />
desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX. Em 1870, por exemplo, Luiz Guimarães publica, no Rio de<br />
Janeiro, A. Carlos Gomes; perfil biographico por L.Guimarães Junior. Em 1882, José Veríssimo<br />
publica seu Carlos Gomes; escorço. Já no <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, Luigi Chiaffarelli, renoma<strong>do</strong> professor de<br />
piano instala<strong>do</strong> em São Paulo desde fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, publica uma biografia <strong>do</strong> compositor,<br />
resulta<strong>do</strong> de uma conferência realiza<strong>da</strong> em 1909 e intitula<strong>da</strong> Carlos Gomes. Por sua vez,<br />
Archimedes Pereira Guimarães, membro <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico <strong>da</strong> Bahia, publica,<br />
em 1936, outra conferência sobre o compositor, sob o título de Antonio Carlos Gomes. Há o<br />
trabalho de Tau<strong>na</strong>y, Dois artistas máximos: José Maurício e Carlos Gomes, sem <strong>da</strong>ta. Carlos<br />
Pentea<strong>do</strong> de Resende, em 1954, publica O compositor D’O Guarany e os seus biógrafos:<br />
voltan<strong>do</strong> ao passa<strong>do</strong> – um pouco de história – erros <strong>na</strong>s biografias de Carlos Gomes – resposta<br />
a sr. Jorumá Brito - além de erros, plágios.<br />
Uma série de outros escritos produzi<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> confirma o prestígio <strong>do</strong><br />
compositor, considera<strong>do</strong> então o mais antigo músico paulista de renome e valor (FUNDAÇÃO<br />
BIBLIOTECA NACIONAL, 2007).<br />
Outros compositores de renome vincula<strong>do</strong>s a São Paulo também foram alvos de<br />
biografias, como é o caso de Alexandre Levy e Henrique Oswald. Gelásio Pimenta, por exemplo,<br />
publica Alexandre Levy, em 1911, e outra publicação sobre o compositor saiu em 1930, pela Casa<br />
Levy, a qual então era proprie<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s membros <strong>da</strong> família <strong>do</strong> compositor.<br />
Henrique Oswald teve dentre suas biografias o trabalho de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende,<br />
Moci<strong>da</strong>de de Henrique Oswald, publica<strong>do</strong> em 1948 <strong>na</strong> revista Colégio. Em 1951, o mesmo autor<br />
publica Dois meninos prodígio de outrora em São Paulo, tratan<strong>do</strong> <strong>da</strong> biografia de Henrique<br />
Oswald e Eugênio Dengremont (RESENDE, 1951).<br />
Além <strong>da</strong>s perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des acima relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s, outro compositor, ain<strong>da</strong> mais antigo que os<br />
anteriores, se tornou um novo objeto de interesse <strong>do</strong>s historiógrafos <strong>da</strong> música de São Paulo a<br />
partir de 1930 - trata-se de André <strong>da</strong> Silva Gomes. Neste ano, Fúrio Franceschini, então mestre de<br />
capela <strong>da</strong> Sé de São Paulo, encontrou no Arquivo <strong>da</strong> Cúria Metropolita<strong>na</strong> de São Paulo um<br />
39
manuscrito <strong>do</strong> compositor português André <strong>da</strong> Silva Gomes, o qual viveu em São Paulo desde a<br />
segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII até o início <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX. Esta obra foi apresenta<strong>da</strong> <strong>na</strong>quele<br />
ano em um concerto promovi<strong>do</strong> pela Socie<strong>da</strong>de de Cultura Artística de São Paulo, em 16 de<br />
dezembro de 1930, ten<strong>do</strong> desperta<strong>do</strong> grande interesse pela figura <strong>do</strong> compositor (OLIVEIRA,<br />
1956:19).<br />
Da<strong>da</strong> a grande escassez de informações, André <strong>da</strong> Silva Gomes foi considera<strong>do</strong> o mais<br />
antigo compositor a atuar em São Paulo, além disso, pelo fato de vir <strong>na</strong> comitiva <strong>do</strong> Bispo de São<br />
Paulo, Dom Manuel <strong>da</strong> Ressurreição, foi considera<strong>do</strong> um músico “consagra<strong>do</strong>” pelos<br />
historiógrafos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Silva Gomes passou a ser considera<strong>do</strong> o “cria<strong>do</strong>r” <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé de<br />
São Paulo, fato que foi repeti<strong>do</strong> por diversos autores em uma série de trabalhos. Carlos Pentea<strong>do</strong><br />
de Resende, por exemplo, nos diz que este músico veio com a missão de “... criar e reger nesta<br />
ci<strong>da</strong>de o côro de música <strong>da</strong> Sé Catedral” (RESENDE, 1954: 233); Clóvis de Oliveira, por sua<br />
vez, afirma que este fora “... o primeiro mestre de capela e o fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> côro <strong>da</strong> Sé Catedral de<br />
São Paulo; foi o primeiro músico de real valor a fixar-se em São Paulo e a iniciar a tradição<br />
musical <strong>da</strong> terra bandeirante” (OLIVEIRA, 1956: 18); João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho também<br />
afirma que Silva Gomes foi “diretor” <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé de São Paulo, por ele recém fun<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
(CALDEIRA FILHO, 1956: 129).<br />
Apesar de se consistirem basicamente de biografias, podemos perceber certas diferenças<br />
no teor <strong>do</strong>s discursos, as quais variam de acor<strong>do</strong> com o perfil <strong>do</strong> biografa<strong>do</strong> e as idéias que se<br />
quer comunicar. Essa diferença aponta, ao nosso ver, para três tipos de abor<strong>da</strong>gens <strong>do</strong> objeto: em<br />
primeiro lugar, <strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong> gênio (biografias sobre grandes homens); em segun<strong>do</strong> lugar,<br />
<strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong> “herói <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (historiografia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista); e em terceiro lugar, <strong>na</strong>rrativas sobre<br />
os “ilustres conterrâneos” (<strong>na</strong>rrativas regio<strong>na</strong>listas).<br />
Para este momento nos coube ape<strong>na</strong>s apresentar uma visão geral <strong>do</strong> objeto. As análises<br />
sobre as relações entre biografa<strong>do</strong>s e tendências <strong>da</strong> historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo serão<br />
aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s posteriormente no terceiro capítulo <strong>da</strong> dissertação.<br />
Assim, temos André <strong>da</strong> Silva Gomes, Carlos Gomes, Alexandre Levy e Henrique Oswald<br />
como os músicos de maior destaque relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s a historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo neste<br />
momento, e por sua vez, são o objeto <strong>do</strong>s historiógrafos. Fica-nos a pergunta: como tais<br />
compositores eram compreendi<strong>do</strong>s neste perío<strong>do</strong>, ou seja, como era avalia<strong>da</strong> a contribuição<br />
destes compositores por nossos historiógrafos, como e porquê tais historiógrafos chegaram a suas<br />
40
conclusões a despeito <strong>do</strong> pequeno número de informações, e por fim, de que maneira tais<br />
considerações evidenciam as preferências e tendências <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de no momento <strong>da</strong> produção<br />
<strong>do</strong>s escritos?<br />
2.2 O objeto <strong>na</strong>s “histórias <strong>da</strong> música brasileira”<br />
Uma vez que a história de São Paulo está conti<strong>da</strong> <strong>na</strong> história <strong>do</strong> Brasil, podemos encontrar<br />
nos livros de “história <strong>da</strong> música brasileira” certos escritos sobre a ativi<strong>da</strong>de musical <strong>na</strong> região<br />
paulista. Os primeiros trabalhos <strong>do</strong> gênero que temos noticia são A música no Brasil (1908) de<br />
Guilherme de Mello, História <strong>da</strong> Música Brasileira (1926), de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, e por fim, Storia<br />
della musica nel Brasile <strong>da</strong>i tempi coloniali sino ai nostri giorni (1549-1925) (1926), de Vicenzo<br />
Cernicchiaro.<br />
Tais trabalhos foram cria<strong>do</strong>s numa época de grande ausência de informações precisas<br />
sobre a ativi<strong>da</strong>de musical em nosso país, e se constituem de um mo<strong>do</strong> geral de uma série de fatos<br />
relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s à música e aos músicos brasileiros, e que, alinha<strong>do</strong>s aos “grandes acontecimentos”<br />
de nossa história geral, vinham a afirmar a tendência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista então em voga (PEREIRA,<br />
1995:36). Em tais trabalhos, o reconhecimento de certos fatos enquanto “históricos”, e o<br />
julgamento <strong>da</strong> contribuição pessoal de ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s compositores abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s tor<strong>na</strong>va-se<br />
importante ao nosso ver para reconhecimento de uma espécie de “consciência” musical <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
O mais antigo <strong>do</strong>s trabalhos deste gênero de que temos notícia é A música no Brasil de<br />
Guilherme de Mello. Foi publica<strong>do</strong> em 1908, portanto, quan<strong>do</strong> a República contava ape<strong>na</strong>s cerca<br />
de vinte anos de vi<strong>da</strong>. No dizer de Avelino Pereira, este trabalho “... traz o reflexo <strong>da</strong> esperança<br />
que o novo regime fez <strong>na</strong>scer <strong>na</strong> intelectuali<strong>da</strong>de brasileira <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, toca<strong>da</strong> pela discussão <strong>da</strong><br />
questão <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (PEREIRA, 1995:36).<br />
De fato, ele <strong>na</strong>sceu num momento em que o país vivenciava uma série de transformações,<br />
que tinham como objetivo tor<strong>na</strong>r o Brasil uma <strong>na</strong>ção moder<strong>na</strong> e progressista. A política<br />
econômica implanta<strong>da</strong> pelo presidente Afonso Pe<strong>na</strong>, que governou entre 1906 e 1909, orientou-se<br />
para a valorização <strong>do</strong> café, então o principal produto brasileiro no merca<strong>do</strong> inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Foram<br />
promovi<strong>da</strong>s melhorias no Exército e <strong>na</strong> Marinha, a imigração foi incentiva<strong>da</strong> e o país teve sua<br />
41
famosa participação <strong>na</strong> Conferência de Paz de Haia, em 1907, sen<strong>do</strong> representa<strong>do</strong> por Rui<br />
Barbosa. O “progresso” <strong>da</strong> República podia ser verifica<strong>do</strong> em diversos setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e<br />
para divulgá-lo, o Governo Federal promoveu a Exposição Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Rio de Janeiro, em<br />
comemoração à Abertura <strong>do</strong>s Portos (BASTOS; SILVA, 1983:229).<br />
Quase duas déca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> publicação de A música no Brasil surge, em 1926, o trabalho de<br />
Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, História <strong>da</strong> Música Brasileira, O pode ser considera<strong>do</strong> como o principal porta-<br />
voz <strong>da</strong> tendência estético-ideológica <strong>do</strong> movimento modernista. “Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> [...] foi um <strong>do</strong>s<br />
principais defensores <strong>da</strong> tendência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-modernista <strong>na</strong> música brasileira durante os anos<br />
vinte e trinta” (PEREIRA, 1995:38).<br />
O livro de Almei<strong>da</strong> teve duas edições, a <strong>primeira</strong>, como se disse, publica<strong>da</strong> em 1926, foi<br />
considera<strong>da</strong> pelo autor um livro “impressionista” (MARIZ, 1983:96). Sua segun<strong>da</strong> edição,<br />
corrigi<strong>da</strong> e aumenta<strong>da</strong>, publica<strong>da</strong> em 1942, obteve repercussões positivas <strong>na</strong> crítica especializa<strong>da</strong>,<br />
tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se, segun<strong>do</strong> Mário de Andrade, “... o livro base que nos faltava, ponto indispensável de<br />
parti<strong>da</strong> para os estu<strong>do</strong>s e ensaios de caráter monográfico, que agora tem onde se estribar”<br />
(ANDRADE, 1963:354).<br />
Tal escolha recebeu o apoio de Mário de Andrade pelo fato <strong>do</strong> autor “... ter <strong>da</strong><strong>do</strong> à nossa<br />
música popular importância igual a que deu para a música erudita” (ANDRADE, 1963:354). A<br />
justificativa de Almei<strong>da</strong> para tal escolha é o fato de o autor constatar então que a música<br />
brasileira deveria ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> em suas “origens” (MARIZ, 1983:96).<br />
Essa igual<strong>da</strong>de <strong>da</strong> música popular frente à erudita corresponde à ideologia <strong>do</strong> movimento<br />
modernista, a partir <strong>da</strong> qual era preciso <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lizar a música brasileira “... pela regra eter<strong>na</strong> de<br />
transpor eruditamente a obra anônima <strong>do</strong> povo” (ANDRADE, 1963:354).<br />
Assim, o que temos aponta<strong>do</strong> é que, conforme vários autores, grande parte <strong>da</strong> pesquisa<br />
histórico-musical pratica<strong>da</strong> ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> no Brasil vinculou-se, conforme apontou<br />
Avelino Pereira, a uma ideologia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista e elegeu como uma de suas metas a criação uma<br />
história “oficial” <strong>da</strong> música brasileira. Esta se prestaria, em primeiro lugar, a decifrar os fatos e<br />
elementos latentes de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de “brasileira”, e em segun<strong>do</strong> lugar, indicar os caminhos<br />
estéticos “modernos” aos novos compositores (PEREIRA, 1995:10).<br />
A tendência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista de afirmação de uma música <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l parece trazer consigo o<br />
desejo de se determi<strong>na</strong>r precisamente a suposta origem desta música, bem como seus cria<strong>do</strong>res,<br />
seu <strong>desenvolvimento</strong> etc, o que acaba inevitavelmente por apresentar, além <strong>da</strong>s biografias de<br />
42
nossos “homens ilustres”, a <strong>na</strong>rrativa <strong>do</strong>s fatos musicais considera<strong>do</strong>s “oficiais”, ou seja, a<br />
<strong>na</strong>rrativa <strong>do</strong>s acontecimentos relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s à criação <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de brasileira onde houve<br />
presença de música.<br />
Dentre tais fatos, há <strong>do</strong>is que particularmente interessam ao nosso trabalho por terem se<br />
<strong>da</strong><strong>do</strong> em São Paulo. Em primeiro lugar, a ativi<strong>da</strong>de musical jesuítica vincula<strong>da</strong> ao Colégio e à<br />
Fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de São Paulo, e em segun<strong>do</strong> lugar, os acontecimentos e figuras relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s<br />
à Independência <strong>do</strong> Brasil.<br />
2.3 O objeto em trabalhos de compilação de informações<br />
Podemos perceber uma modesta preocupação com a organização <strong>da</strong> pesquisa histórico-<br />
musical sistemática no Brasil desde as <strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>. Luís Heitor Corrêa de<br />
Azeve<strong>do</strong>, com seu Inventário <strong>do</strong>s periódicos musicais no Brasil e sua Bibliografia <strong>da</strong> música<br />
brasileira, de certo mo<strong>do</strong>, procura responder a essa necessi<strong>da</strong>de de organização <strong>da</strong> pesquisa<br />
musical em nosso país.<br />
A mesma preocupação pode ser nota<strong>da</strong> nos trabalhos de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende,<br />
especialmente preocupa<strong>do</strong> com a organização <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre a história <strong>da</strong> música de São<br />
Paulo. Em relação aos trabalhos que mostram tal preocupação destacamos: Fragmentos para uma<br />
história <strong>da</strong> música em São Paulo (1954) e Cronologia Musical de São Paulo (1954).<br />
Resende nos apresenta como um <strong>do</strong>s escritores que mais se mostrou preocupa<strong>do</strong> com a<br />
organização <strong>da</strong> pesquisa histórica sistemática em música em São Paulo. Nos <strong>do</strong>is trabalhos acima<br />
cita<strong>do</strong>s, o autor elege objetivos semelhantes àqueles que de certo mo<strong>do</strong> motivaram a criação <strong>do</strong><br />
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: procurar, compilar e sistematizar informações que<br />
possam importar ao estudioso <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música em São Paulo.<br />
Esta tendência compilatória <strong>na</strong> historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo toma maior corpo a<br />
partir de fins <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 com os trabalhos de Curt Lange, e especialmente, Régis Duprat.<br />
No entanto, por atuarem em um perío<strong>do</strong> posterior à delimitação proposta para este trabalho, tais<br />
autores não serão abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s, e assim, esta tendência é melhor representa<strong>da</strong> pelos trabalhos de<br />
43
Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, especialmente aqueles produzi<strong>do</strong>s no ano <strong>da</strong>s comemorações <strong>do</strong> IV<br />
Centenário de São Paulo.<br />
Os trabalhos de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende acima cita<strong>do</strong>s, e outros como Tradições<br />
Musicais dea Facul<strong>da</strong>de de Direito de São Paulo e Dois meninos prodígio de outrora em São<br />
Paulo podem exemplificar a tendência historiográfica que chamamos “regio<strong>na</strong>lista”, pois o<br />
enfoque é a reconstrução <strong>da</strong> memória musical regio<strong>na</strong>l, e não a afirmação de uma música<br />
“<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”.<br />
2.4 Os autores e obras<br />
Vejamos a seguir algumas considerações sobre os principais autores que <strong>na</strong> <strong>primeira</strong><br />
<strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> contribuíram para o <strong>desenvolvimento</strong> <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
musical em São Paulo. Tais considerações se tor<strong>na</strong>rão importantes, posteriormente, para a<br />
compreensão <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> de suas contribuições e <strong>da</strong> perspectiva a partir <strong>da</strong> qual tais escritores<br />
entendiam sua tarefa.<br />
Dentre os autores selecio<strong>na</strong><strong>do</strong>s destacamos Guilherme de Mello e Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, como<br />
os precursores <strong>da</strong> historiografia <strong>da</strong> música brasileira, Mário de Andrade, como o principal<br />
ideólogo <strong>do</strong> movimento modernista e <strong>da</strong> historiografia a este vincula<strong>da</strong>, João <strong>da</strong> Cunha Caldeira<br />
Filho, como um <strong>do</strong>s principais críticos musicais atuantes <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> e<br />
como autor de uma publicação sobre a história <strong>da</strong> música de São Paulo no O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo,<br />
Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, com um <strong>do</strong>s primeiros autores que demonstraram uma preocupação<br />
com a organização <strong>da</strong> pesquisa histórico-musical sobre São Paulo, e por fim, Clóvis de Oliveira,<br />
autor de alguns trabalhos de pequeno alcance sobre a música <strong>na</strong> região e editor <strong>do</strong> periódico<br />
Resenha Musical, que por sua vez trouxe algumas publicações sobre o assunto.<br />
2.4.1 Guilherme de Mello<br />
44
Parcas são as informações que dispomos sobre Guilherme de Melo, sen<strong>do</strong> ele conheci<strong>do</strong><br />
como o autor <strong>da</strong> <strong>primeira</strong> “história <strong>da</strong> música brasileira”. Seu trabalho A música no Brasil foi<br />
publica<strong>do</strong> em 1908 <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de Salva<strong>do</strong>r, onde o autor permaneceu até 1928, quan<strong>do</strong> assumiu,<br />
no Rio de Janeiro, o cargo de bibliotecário interino no Instituto Nacio<strong>na</strong>l de Música<br />
(ENCICLOPÉDIA, 1998:500).<br />
Guilherme de Melo estu<strong>do</strong>u no Colégio de Órfãos São Joaquim por dez anos, onde<br />
substituiu seu antigo professor de música <strong>na</strong> função de mestre de ban<strong>da</strong>, em 1892. Mello<br />
desempenhou ain<strong>da</strong> uma série de ativi<strong>da</strong>des liga<strong>da</strong>s ao ensino musical em Salva<strong>do</strong>r, fun<strong>da</strong>n<strong>do</strong> no<br />
Colégio uma Schola Cantorum, “... tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se responsável pela formação de diversos músicos<br />
baianos” (ENCICLOPÉDIA, 1998:500).<br />
Avelino Simões nos diz que no trabalho de Guilherme de Mello transparece “... a<br />
esperança que o novo regime fez <strong>na</strong>scer <strong>na</strong> intelectuali<strong>da</strong>de brasileira <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, toca<strong>da</strong> pela<br />
discussão <strong>da</strong> questão <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (PERERA, 1997:36). A contribuição de Guilherme de Mello<br />
para a escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música brasileira reside <strong>na</strong> tentativa de construir, a partir de um<br />
escasso número de fontes, uma ampla visão <strong>do</strong> <strong>desenvolvimento</strong> de uma música brasileira,<br />
indican<strong>do</strong> com a modinha a existência de uma música de caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Durante o perío<strong>do</strong> em que viveu (1867-1932) o Brasil fora alvo de uma grande influência<br />
de teorias evolucionistas européias, como o positivismo de Comte e o evolucionismo de Spencer<br />
e, além disso, à época <strong>da</strong> publicação de A música no Brasil, o país vivenciava uma série de<br />
transformações, as quais tiveram como objetivo tor<strong>na</strong>-lo uma <strong>na</strong>ção progressista. A política<br />
econômica implanta<strong>da</strong> pelo presidente Afonso Pe<strong>na</strong>, por exemplo, que governou entre 1906 e<br />
1909, orientou-se para a valorização <strong>do</strong> café, então o principal produto brasileiro no merca<strong>do</strong><br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l; foram promovi<strong>da</strong>s melhorias no Exército e <strong>na</strong> Marinha, a imigração foi incentiva<strong>da</strong><br />
e o país teve sua famosa participação <strong>na</strong> Conferência de Paz de Haia, em 1907, sen<strong>do</strong><br />
representa<strong>do</strong> por Rui Barbosa. Para divulgar o “progresso” <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira, o Governo<br />
Federal promoveu a Exposição Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Rio de Janeiro, em comemoração à Abertura <strong>do</strong>s<br />
Portos (BASTOS; SILVA, 1983:229).<br />
Guilherme de Mello escrevia, portanto, num momento de grande influência de um<br />
pensamento evolucionista no Brasil, e assim, para ele o “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” seria produto <strong>da</strong>s lentas e<br />
“orgânicas” transformações sociais - <strong>da</strong>í sua valorização <strong>da</strong> modinha e sua crítica à influência <strong>da</strong><br />
ópera italia<strong>na</strong>. Além disso, a despeito <strong>da</strong> criação de uma imagem heróica <strong>do</strong> índio e a denúncia <strong>da</strong><br />
45
escravidão e a posterior abolição em fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, a despeito disso, a visão evolucionista<br />
implicava, necessariamente, em identifica-los – índio e negro – como raças inferiores, o que, por<br />
si só, traz uma série de implicações para a análise e julgamento <strong>do</strong>s escritos de tal autor.<br />
2.4.2 Mário de Andrade<br />
Exceto por alguns escritos, como a biografia <strong>do</strong> padre Jesuíno <strong>do</strong> Monte Carmelo, Mário<br />
de Andrade pouco contribuiu no campo <strong>da</strong> historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo, e assim, ao<br />
nosso ver, sua importância se encontra muito mais em suas críticas á historiografia tradicio<strong>na</strong>l e<br />
em suas considerações sobre temas consagra<strong>do</strong>s, como por exemplo, a música entre os jesuítas e<br />
a contribuição de certos compositores <strong>na</strong> criação de uma música “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”.<br />
Como se sabe, Mário de Andrade foi um <strong>do</strong>s principais ideólogos <strong>do</strong> movimento<br />
modernista e um <strong>do</strong>s principais intelectuais brasileiros de sua geração. Assim, não é de se<br />
suspeitar a forte presença de suas idéias <strong>na</strong> escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música brasileira. Caldeira Filho<br />
afirmou que “... sem ser compositor, situa-se ele com grande relevo entre os construtores <strong>da</strong><br />
música brasileira” (CALDEIRA FILHO, 1954a:131).<br />
Mário criticava as configurações <strong>da</strong> historiografia musical tradicio<strong>na</strong>l afirman<strong>do</strong> ser esta<br />
excessivamente “individualizante”, e deste mo<strong>do</strong>, não passar “... de uma enumeração de músicos<br />
e suas biografias” (ANDRADE, 1963:360-361). Além disso, o autor preconizava a necessi<strong>da</strong>de<br />
de se reformar não ape<strong>na</strong>s os méto<strong>do</strong>s dessa literatura, mas talvez até seu objeto (ANDRADE,<br />
1963:362).<br />
Esta crítica de Mário de Andrade ao “individualismo” provém de seu vínculo com o<br />
movimento modernista, o qual esteve preocupa<strong>do</strong> com a questão <strong>da</strong> criação de uma música de<br />
caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e função social. Os modernistas, de um mo<strong>do</strong> geral, viam a música <strong>do</strong>s artistas<br />
brasileiros europeiza<strong>do</strong>s destituí<strong>da</strong> de caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, e mais, sem uma função social, pois, em<br />
razão de serem construí<strong>da</strong>s a partir de temática e elementos musicais estrangeiros, eram<br />
incapazes de fazer com que os brasileiros se identificassem culturalmente sob um mesmo<br />
conjunto de valores.<br />
46
A aceitação <strong>do</strong> “primitivo” enquanto traço distintivo de uma coletivi<strong>da</strong>de evidencia esta<br />
mu<strong>da</strong>nça de paradigma e os novos objetivos <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong>de brasileira no momento em<br />
questão. A valorização <strong>do</strong> popular por Mário de Andrade chega a tal ponto <strong>do</strong> autor afirmar que<br />
os exemplos <strong>da</strong> arte erudita e <strong>da</strong> popular:<br />
“... podem ser profun<strong>da</strong>mente distintos como concepção e mesmo funcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de,<br />
e mais ain<strong>da</strong> como civili<strong>da</strong>de. Mas não há razão de ordem crítica nenhuma que<br />
faça uma obra prevalecer sobre a outra, nem sequer sob o ponto de vista <strong>da</strong><br />
beleza” (ANDRADE, 1963:355).<br />
Esta valorização reflete de certo mo<strong>do</strong> a questão <strong>da</strong> funcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de social. Por exemplo,<br />
em uma crítica à segun<strong>da</strong> edição de História <strong>da</strong> Música Brasileira de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, Mário<br />
afirma ser uma <strong>da</strong>s origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des <strong>do</strong> livro o fato <strong>do</strong> autor “... ter <strong>da</strong><strong>do</strong> à nossa música popular<br />
importância igual a que deu para a música erudita” (ANDRADE, 1963:354). Além disso,<br />
segun<strong>do</strong> o autor “... a obra popular não perde nunca a funcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de social, ao passo que a<br />
obra erudita não só a desencaminha com freqüência, como muitas vezes a ignora” (ANDRADE,<br />
1963:355).<br />
A questão <strong>da</strong> igual importância <strong>da</strong> música popular em relação à música erudita <strong>na</strong> obra de<br />
Almei<strong>da</strong> aponta<strong>da</strong> por Mário de Andrade reflete o engajamento destes autores em relação aos<br />
objetivos <strong>do</strong> movimento modernista, ou seja, criar uma obra “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” através <strong>da</strong> utilização<br />
erudito <strong>do</strong> popular, ou ain<strong>da</strong>, <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lizar a nossa produção musical “... pela regra eter<strong>na</strong> de<br />
transpor eruditamente a obra anônima <strong>do</strong> povo” (ANDRADE, 1963:354).<br />
Enfim, a grande ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> à pesquisa folclórica, a qual serviria de base para a criação de<br />
uma música <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, parece ter agi<strong>do</strong> como um desestímulo ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> música pratica<strong>da</strong><br />
tradicio<strong>na</strong>lmente entre os compositores brasileiros diversas regiões <strong>do</strong> país. Tal fato deve ser<br />
considera<strong>do</strong> para a análise <strong>do</strong> <strong>desenvolvimento</strong> de uma historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo.<br />
2.4.3 Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong><br />
A principal contribuição a historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo por Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> se<br />
encontra em História <strong>da</strong> música no Brasil (1926), no Compêndio de História <strong>da</strong> música no Brasil<br />
47
(1948) e Carlos Gomes. No dizer de Mário de Andrade, História <strong>da</strong> Música Brasileira se tor<strong>na</strong>ra<br />
“... o livro base que nos faltava, ponto indispensável de parti<strong>da</strong> para os estu<strong>do</strong>s e ensaios de<br />
caráter monográfico, que agora tem onde se estribar” (ANDRADE, 1963:354).<br />
Como grande parte <strong>do</strong>s homens de letras de sua época, foi advoga<strong>do</strong> e jor<strong>na</strong>lista,<br />
colaboran<strong>do</strong> em diversos jor<strong>na</strong>is e revistas como o “Merca<strong>do</strong>r Mercantil” e “América Brasileira”,<br />
<strong>da</strong> qual foi re<strong>da</strong>tor-chefe (ENCICLOPEDIA, 1998:18).<br />
Em 1926, ano <strong>da</strong> publicação de sua História <strong>da</strong> música brasileira, Almei<strong>da</strong> foi nomea<strong>do</strong><br />
diretor <strong>do</strong> Lycèe Français <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e desempenhou ali ativi<strong>da</strong>des administrativas e<br />
pe<strong>da</strong>gógicas. Posteriormente, ingressou no Ministério <strong>da</strong>s Relações Exteriores, onde por vários<br />
anos chefiou o serviço de informações e o serviço de <strong>do</strong>cumentação <strong>do</strong> Itamaraty<br />
(ENCICLOPEDIA, 1998:18).<br />
Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> dedicou grande parte de suas pesquisas ao folclore. Entre 1948 e 1951,<br />
por exemplo, promoveu “Sema<strong>na</strong>s <strong>do</strong> Folclore” e o “I Congresso Brasileiro <strong>do</strong> Folclore”. Por sua<br />
sugestão foi cria<strong>da</strong>, em 1947, a “Comissão Nacio<strong>na</strong>l de Folclore”. Segun<strong>do</strong> o próprio autor, o<br />
modernismo levou-lhe à música brasileira, e esta, ao folclore.<br />
2.4.4 João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho<br />
Grande parte <strong>da</strong>s contribuições de Caldeira Filho em periódicos e em livros refere-se à<br />
análise, interpretação e apreciação musical, e especialmente, <strong>da</strong> música contemporânea. A partir<br />
de 1932 inicia sua carreira de crítico musical no Correio de São Paulo, publican<strong>do</strong> críticas neste<br />
periódico até 1937. Escreveu também em periódicos como a Folha <strong>da</strong> Noite, entre 1933 e 1935,<br />
O Esta<strong>do</strong> de São Paulo entre 1935 e 1981, e Anhembi, entre 1951 e 1962 (GIOS, 1989:118).<br />
Ao contrário <strong>da</strong> grande maioria <strong>do</strong>s historiógrafos de seu tempo, Caldeira Filho possuía<br />
ampla formação musical, ten<strong>do</strong> completa<strong>do</strong> o curso de piano <strong>do</strong> Conservatório Dramático e<br />
Musical de São Paulo, em 1924, onde teve como professor de história <strong>da</strong> música e estética Mário<br />
de Andrade, e Savino de Benedictis, harmonia. Em 1927 viajou a Paris para, <strong>na</strong> Sorbonne, tomar<br />
aulas de história <strong>da</strong> música com André Pirro e música antiga com Wan<strong>da</strong> Lan<strong>do</strong>wska<br />
(ENCICLOPÉDIA,1998).<br />
48
De volta ao Brasil passou a exercer intensa ativi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>cente, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> aulas no<br />
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, no Conservatório Estadual de Canto<br />
Orfeônico, no Instituto Musical de São Paulo e no Conservatório Musical de Santos, atual<br />
Facul<strong>da</strong>de de Música <strong>do</strong> Conservatório Musical de Santos (ENCICLOPÉDIA,).<br />
As principais contribuições <strong>do</strong> autor à historiografia <strong>da</strong> música de São Paulo se encontram<br />
em duas publicações: a <strong>primeira</strong>, publica<strong>da</strong> no suplemento literário de O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo como<br />
parte <strong>da</strong>s comemorações <strong>do</strong> IV Centenário <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de é um panorama <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />
música de São Paulo intitula<strong>do</strong> A música em São Paulo; a segun<strong>da</strong>, publica<strong>da</strong> sob o mesmo título,<br />
no livro organiza<strong>do</strong> por Er<strong>na</strong>ni Bruno São Paulo, espírito, povo, instituições, em 1968.<br />
Caldeira Filho tornou-se membro <strong>da</strong> Associação Paulista de Críticos de Arte e membro-<br />
fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>da</strong> Academia Brasileira de Música. Em 1937 é nomea<strong>do</strong>, por concurso público,<br />
professor de canto orfeônico <strong>do</strong> Instituto de Educação Caetano de Campos, aposentan<strong>do</strong>-se em<br />
1964.<br />
Dentre suas publicações destacam-se: Palestras sobre as so<strong>na</strong>tas de Beethoven, São<br />
Paulo, s.e; História <strong>da</strong> Pe<strong>da</strong>gogia Musical, s.e; Música Contemporânea e Música no Brasil, São<br />
Paulo, 1942, s.ed; Os compositores, São Paulo, 1961; s.ed; Apreciação Musical. São Paulo, 1971,<br />
s.ed. (ENCICLOPÉDIA, 1998).<br />
2.4.5 Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende<br />
Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende estu<strong>do</strong>u no Colégio São Bento de 1933 à 1937, e<br />
posteriormente, <strong>na</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, forman<strong>do</strong>-se em 1946<br />
(ENCICLOPEDIA, 1998: 673).<br />
Dentre suas publicações estão Cronologia Musical Paulista, Dois meninos prodígio de<br />
outrora em São Paulo (1952), Tradições musicais <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito de São Paulo (1954),<br />
e O compositor D´O Guarany e os seus biógrafos: voltan<strong>do</strong> ao passa<strong>do</strong> – um pouco de história –<br />
erros <strong>na</strong>s biografias de Carlos Gomes (1952).<br />
49
A partir de 1940 escreveu ensaios para o jor<strong>na</strong>l Dom Casmurro, <strong>do</strong> Rio de Janeiro, e<br />
também para revistas e jor<strong>na</strong>is de São Paulo, como O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, Correio Paulistano e<br />
Folha de São Paulo (ENCICLOPEDIA, 1998: 674).<br />
As publicações de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende nos mostram o interesse <strong>do</strong> autor pela<br />
organização e sistematização <strong>da</strong> pesquisa <strong>do</strong>cumental sobre a música de São Paulo. Dois de seus<br />
trabalhos se propõem desti<strong>na</strong>m a esta tarefa: a Cronologia Musical Paulista e Fragmentos para<br />
uma história <strong>da</strong> música em São Paulo, ambos de 1954, ano <strong>do</strong> Quarto Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de<br />
São Paulo.<br />
2.4.6 Clóvis de Oliveira<br />
Grande parte <strong>da</strong>s contribuições de Clóvis de Oliveira para a escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música<br />
de São Paulo se encontra <strong>na</strong> revista Resenha Musical, que circulou entre 1938 e 1945, <strong>da</strong> qual era<br />
editor Atenden<strong>do</strong> à um público pouco especializa<strong>do</strong>, a revista trazia diversos artigos sobre os<br />
mais diversos assuntos relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s à música, como por exemplo, críticas de concertos,<br />
biografias de compositores e intérpretes em destaque <strong>na</strong>quele momento, e também biografias de<br />
compositores consagra<strong>do</strong>s.<br />
Mais recentemente, Clóvis de Oliveira tem si<strong>do</strong> lembra<strong>do</strong> como o autor de uma<br />
monografia sobre André <strong>da</strong> Silva Gomes, com a qual recebeu o segun<strong>do</strong> prêmio em um concurso<br />
promovi<strong>do</strong> pela prefeitura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, em 1946. O departamento não honrou seu compromisso de<br />
publicar as monografias premia<strong>da</strong>s, e assim, Oliveira publicou-a por sua própria conta, em 1954,<br />
servin<strong>do</strong> para as comemorações <strong>do</strong> IV Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de São Paulo, em 1954<br />
(OLIVEIRA, 1954).<br />
Clóvis de Oliveira havia se forma<strong>do</strong> em piano pelo Conservatório Dramático e Musical de<br />
São Paulo em 1930, e, posteriormente, em Direito, pela Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de<br />
Janeiro, em 1945. Foi professor de música em diversas instituições, como no próprio<br />
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, entre 1931 e 1934, no Conservatório Musical<br />
de Araraquara, entre 1935 a 1940, e por fim, no Conservatório Musical Carlos Gomes em 1940<br />
50
(BONORA, 1990:27). Entre 1942 e 1975, ano de sua morte, ocupou cargos burocráticos em<br />
diversas associações industriais de São Paulo (BONORA,1990:28).<br />
2.5 Os periódicos literários e musicais no Brasil<br />
Periódicos exclusivamente musicais existem <strong>na</strong> Europa desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVII.<br />
(STEVENSON, 1934:1). Neste mesmo momento, uma outra série de periódicos de cunho<br />
literário passou a publicar suplementos conten<strong>do</strong> peças musicais. Posteriormente, a partir <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XVIII, surgiu um número significativo de periódicos dedica<strong>do</strong>s especialmente à música<br />
(OLIVEIRA, 1992:4).<br />
O Grove´s Dictio<strong>na</strong>ry of Music and Musicians cita como exemplos de periódicos<br />
literários o “Mercure Galant”, fun<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>na</strong> França, em 1672, por Donneau de Visè. Na Alemanha,<br />
destaca-se o “Mo<strong>na</strong>thliche Unterredungen”, edita<strong>do</strong> por E.W. Tentzel, que circulou de 1680 à<br />
1707. Na Inglaterra, o The Gentleman’s Jour<strong>na</strong>l, or The Monthly Miscellany, by Way of Letters to<br />
a Gentleman in the Country, consisting of News, History, Philosophy, Poetry, Musick (1691/2–4),<br />
edita<strong>do</strong> por Peter Motteux.<br />
No caso brasileiro, os periódicos musicais carregam a marca de em geral terem uma curta<br />
duração (ANTONIO, 1992:243) (STEVENSON,1934:2). (AZEVEDO, 1939:4).<br />
O primeiro periódico musical, segun<strong>do</strong> Irati Antônio, é Gazeta Musical <strong>do</strong> Brasil: Jor<strong>na</strong>l<br />
científico, crítico e literário, publica<strong>do</strong> em 1860 por João Jacques Soland de Chirol. Este trazia<br />
peças musicais, notícias sobre eventos musicais <strong>na</strong> Europa e no Rio de Janeiro e biografias de<br />
compositores brasileiros, como José Maurício Nunes Garcia e Antônio Carlos Gomes<br />
(ANTONIO, 1992:238).<br />
Posteriormente, surgem outros periódicos como a Revista musical e de bellas artes,<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos compositores Arthur Napoleão e Leopol<strong>do</strong> Miguéz, e que circulou no Rio de<br />
Janeiro de 1879 a 1880 trazen<strong>do</strong> artigos sobre história <strong>da</strong> música, notícias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> musical,<br />
biografias de compositores e suplementos com partituras. Outros periódicos vão surgin<strong>do</strong> a partir<br />
<strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, como por exemplo, Arte Musical (1891-1893), Gazeta Musical (1891-<br />
51
1893) O Lyrico (1895), Revista Musical (1887-1888) e Música para To<strong>do</strong>s (1896-)<br />
(ANTONIO,1992:243).<br />
Como decorrência <strong>da</strong>s transformações sociais ocorri<strong>da</strong>s no país no início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>,<br />
dentre elas a crescente urbanização e industrialização, podemos observar um significativo<br />
aumento <strong>do</strong> número de periódicos dedica<strong>do</strong>s exclusivamente à divulgação de matérias, artigos e<br />
notícias sobre a vi<strong>da</strong> musical <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Este é o caso de periódicos tais quais a Gazeta Artística:<br />
música, litteratura e bellas Artes (1909-1914), Correio Musical Brasileiro (1921-), Ariel (1923-<br />
1929), Musica (1923-1926), Música Eclesiástica. (1936-?), Noticiário Ricordi (1938-1942),<br />
Boletim <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Filarmônica de São Paulo (1939-), Resenha Musical entre outros (1938-<br />
1945) (ANTONIO,1992:243).<br />
Durante o mesmo perío<strong>do</strong>, uma série de revistas de cunho literário também trazia em seus<br />
exemplares textos sobre os mais diversos assuntos em arte, e dentre eles, história <strong>da</strong> música.<br />
Dentre elas destacam-se A Cigarra, A Garoa, Miscellanea: Revista Sema<strong>na</strong>l Illustra<strong>da</strong>,<br />
Illustração Brasileira, Revista <strong>do</strong> Brasil, Os Debates, Ariel, Revista <strong>do</strong> Brasil, América<br />
Brasileira, Estética, A Revista, Revista Novíssima, Revista de Antropofagia, Klaxon, Movimento,<br />
Movimento Brasileiro etc (LOPEZ, 1991).<br />
Não podemos deixar de destacar a importância <strong>da</strong> imprensa jor<strong>na</strong>lística no que toca a<br />
publicação de críticas de concertos, de notícias sobre a vi<strong>da</strong> musical no país e, eventualmente, de<br />
textos sobre história <strong>da</strong> música brasileira. Dentre eles destacamos O Comércio, o Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />
Commercio, A Gazeta, o Correio Paulistano, Diário Nacio<strong>na</strong>l, o Diário de S.Paulo, O Esta<strong>do</strong> de<br />
S.Paulo¸ Diário de notícias, Diários Associa<strong>do</strong>s, Diário Nacio<strong>na</strong>l, Folha <strong>da</strong> Manhã, A Manhã<br />
etc (LOPEZ, 1991).<br />
Embora este significativo número de periódicos possa sugerir que houve uma grande<br />
circulação de escritos sobre história <strong>da</strong> música no Brasil, as configurações sociais específicas <strong>do</strong><br />
perío<strong>do</strong>, especialmente durante as três <strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, não colaboraram para<br />
que se criasse um montante de textos sobre a história <strong>da</strong> música de São Paulo, e mesmo <strong>da</strong><br />
história <strong>da</strong> música <strong>do</strong> Brasil. O público para qual tais escritos se dirigiam era em geral leigo,<br />
destituí<strong>do</strong> de conhecimento musical e ávi<strong>do</strong> por se inteirar <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cultural<br />
brasileira <strong>na</strong>scente. Podemos deduzir isto facilmente a partir de uma consideração de Luis Heitor<br />
Correia de Azeve<strong>do</strong>, em 1932, onde o autor diz fi<strong>na</strong>lmente surgir um tipo de periódico que não se<br />
52
dirigia ao grande público, mas que pretendia divulgar as contribuições <strong>da</strong> <strong>na</strong>scente musicologia<br />
no Brasil:<br />
“Em 1932 aparece a Revista <strong>da</strong> Associação Brasileira de Música, que realiza um<br />
tipo diferente de periódico musical: a revista de alta cultura, sem estampas, sem<br />
concessões ao público, austera como um livro de estu<strong>do</strong>s”. (AZEVEDO, 1939: 4).<br />
Robert Stevenson corrobora tal informação, afirman<strong>do</strong> que desde o início de suas<br />
publicações, a Revista Brasileira de Música incluiu em suas publicações “... artigos de tão alto<br />
nível que mereceram ser indexa<strong>do</strong>s [...] no A Guide to Latin American Music”<br />
(STEVENSON,1934:2).<br />
Deste mo<strong>do</strong> criou-se um quadro em que, não haven<strong>do</strong> um público especializa<strong>do</strong>, e sen<strong>do</strong><br />
os periódicos a principal via de divulgação de textos musicais, não haverá estímulo para a<br />
pesquisa histórico-musical sistemática no Brasil.<br />
De qualquer mo<strong>do</strong>, durante to<strong>do</strong> este perío<strong>do</strong> e em meio a to<strong>da</strong>s estas questões vários<br />
autores publicaram, em jor<strong>na</strong>is e revistas, artigos sobre diversos aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> musical,<br />
inclusive sobre história <strong>da</strong> música. Mário de Andrade, por exemplo, publica em diversos jor<strong>na</strong>is,<br />
dentre eles, o Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Comércio, o Correio Paulistano, Diário de São Paulo, Folha <strong>da</strong> Noite<br />
etc (LOPEZ, 1991:13-15). Caldeira filho, por sua vez, teve seus textos publica<strong>do</strong>s em jor<strong>na</strong>is<br />
paulistas como o Correio Paulistano, a Folha <strong>da</strong> Noite e O Esta<strong>do</strong> de S. Paulo (GIOS,<br />
1989:118). Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende também publica em O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, no Correio<br />
Paulistano, <strong>na</strong> revista Colégio etc.<br />
3. Temas e idéias em torno <strong>do</strong> objeto<br />
Neste momento faremos nossas reflexões sobre as diversas idéias e tendências<br />
relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s à historiografia <strong>da</strong> prática musical em São Paulo. Procuraremos pelas semelhanças e<br />
diferenças entre o discurso <strong>do</strong>s vários autores, articulan<strong>do</strong> suas opiniões com o material<br />
desenvolvi<strong>do</strong> nos capítulos precedentes.<br />
53
3.1 Aspectos <strong>da</strong> historiografia sobre a atuação <strong>do</strong>s jesuítas<br />
Dois outros textos por nós utiliza<strong>do</strong>s referem-se exclusivamente a atuação musical <strong>do</strong>s<br />
jesuítas em São Paulo, tratam-se de A musica em Sâo Paulo (1954), de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira<br />
Filho, e Fragmentos para uma História <strong>da</strong> Música em São Paulo (1954). Ambos foram<br />
produzi<strong>do</strong>s ten<strong>do</strong> em vista as comemorações <strong>do</strong> IV Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de São Paulo (1554-<br />
1954). Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende afirma que “... a história <strong>da</strong> música em São Paulo tem início<br />
com a presença em seu território <strong>do</strong>s humildes e gloriosos jesuítas” (RESENDE, 1954b:197).<br />
João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, em A música em São Paulo, de 1954, por sua vez, nos diz que “...<br />
a prática de música em S.Paulo começa a existir com o ensino ministra<strong>do</strong> pelos jesuítas”<br />
(CALDEIRA FILHO, 1954a: 129).<br />
Evidentemente, como foram os jesuítas que iniciaram a colonização <strong>do</strong> Brasil, o ensino de<br />
música nos Colégios é relata<strong>do</strong> em diversos trabalhos que se referem a catequese <strong>do</strong>s índios<br />
(MELLO, 1926:7), (CERNICCHIARO, 1926:71), (ALMEIDA, 1926:188), (SANTOS, 1939:7),<br />
(BITTENCOURT, 1945: 20), (AZEVEDO, 1956:10).<br />
Samuel Arcanjo, que foi professor <strong>do</strong> Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e<br />
membro <strong>do</strong> Conselho de Orientação Artística de São Paulo, afirmou em mea<strong>do</strong>s <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />
1930: “... com a música singela <strong>da</strong>s Igrejas e <strong>da</strong>s peças teatrais lançaram os jesuítas as raízes <strong>da</strong><br />
cultura musical brasileira” (SANTOS, 1939:7). O autor, portanto, estende o âmbito <strong>da</strong> atuação<br />
<strong>do</strong>s jesuítas para além <strong>da</strong> catequese ao dizer que estes lançaram as raízes <strong>da</strong> “cultura brasileira”.<br />
Tal opinião aponta para o fato de ter se tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong> corrente a noção de que os jesuítas iniciaram<br />
uma “tradição” musical no Brasil, assim como o ensino <strong>da</strong>s artes em geral e <strong>da</strong> literatura. Vale<br />
lembrar que, no Brasil, desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, a ação <strong>do</strong>s jesuítas foi interpreta<strong>da</strong> como<br />
benéfica entre os “progressistas”, ou seja, aqueles que passaram a a<strong>do</strong>tar as teorias evolucionistas<br />
européias <strong>na</strong> crítica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira. Entre estes se encontra Luis Pereira Barreto, o qual<br />
em carta ao positivista Pierre Laffite, explicava que o Positivismo não encontraria resistência no<br />
Brasil, pois, os padres de seu tempo eram “... ignorantes e de sórdi<strong>da</strong> falta de vergonha. Só fazem<br />
destruir os bons resulta<strong>do</strong>s <strong>da</strong> influência <strong>do</strong>s jesuítas” (LINS,1964:47-48).<br />
Grande parte destes textos possui tom acentua<strong>da</strong>mente apologético, onde o jesuíta é<br />
considera<strong>do</strong> um ver<strong>da</strong>deiro “herói” <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Na <strong>primeira</strong> edição de sua História <strong>da</strong> Música<br />
54
Brasileira, de 1926, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> afirma que os padres <strong>da</strong> Companhia de Jesus foram<br />
“homens extraordinários”, de “almas magnânimas” (ALMEIDA, 1926:188); “humildes e<br />
gloriosos” (RESENDE, 1954:197). Além de “eruditos”, haviam aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> sua terra em prol <strong>do</strong><br />
pelo ideal cristão (CALDEIRA FILHO, 1954:129).<br />
A tendência em tratar os jesuítas enquanto “grandes homens”, ao nosso ver, decorre <strong>da</strong><br />
própria caracterização tradicio<strong>na</strong>l destes pela historiografia brasileira, onde eles recebem muitas<br />
vezes epíteto de “forma<strong>do</strong>res <strong>da</strong> Brasil”. Deste mo<strong>do</strong>, tal qual o bandeirante, o jesuíta foi<br />
considera<strong>do</strong> como um “civiliza<strong>do</strong>r” pela historiografia geral e musical produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong><br />
<strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.<br />
Isso talvez se deva ao fato de que, entre fins <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, e sob a<br />
perspectiva <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de brasileira, o jesuíta teria si<strong>do</strong> considera<strong>do</strong> como o<br />
primeiro representante <strong>da</strong> raça branca a pisar em solo brasileiro, raça esta considera<strong>da</strong> “superior”,<br />
“desenvolvi<strong>da</strong>”, que forneceu a base <strong>da</strong> cultura, costumes e instituições brasileiras, e que<br />
juntamente com as raças “inferiores” (índios e negros), veio a construir nossa “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de”.<br />
Vale mencio<strong>na</strong>r que a fragili<strong>da</strong>de desta questão foi trata<strong>da</strong> por alguns autores a partir de<br />
mea<strong>do</strong>s de anos de 1960, os quais entenderam que a influência <strong>da</strong> música jesuítica restringia-se<br />
ape<strong>na</strong>s ao âmbito <strong>da</strong> catequese e era direcio<strong>na</strong><strong>da</strong> exclusivamente aos índios. Por tal motivo, não<br />
se poderia falar em uma “tradição” jesuítica no campo <strong>da</strong> composição musical brasileira<br />
(KIEFER, 1976:11), (LANGE, 1966:42).<br />
Uma vez difundi<strong>do</strong>s os fun<strong>da</strong>mentos evolucionistas, de maneira mais intensa em diversos<br />
estabelecimentos de ensino a partir de 1870 2 , <strong>na</strong>turalmente, o jesuíta europeu <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVI foi<br />
interpreta<strong>do</strong>, a priori, durante to<strong>da</strong> a <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, como um indivíduo de uma<br />
“cultura” e de uma “raça” superiores.<br />
Disso decorre uma série de considerações que, ao nosso ver, tem como eixo a evidência<br />
de um pensamento evolucionista <strong>na</strong> historiografia musical sobre os jesuítas.<br />
3.1.1 Cristianismo e civilização <strong>na</strong> historiografia sobre a atuação <strong>do</strong>s jesuítas<br />
2 Ver tópico 1.9<br />
55
Antes de avançarmos é importante destacar os apontamentos de Dwight Allen em relação<br />
à aproximação muitas vezes encontra<strong>da</strong> <strong>na</strong> historiografia musical, desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX,<br />
entre a ideologia cristã e a própria idéia de “civilização”. Allen cita Kiesewetter (Historia of<br />
Modern Music of Western Music), o qual afirma que a música moder<strong>na</strong> começou seu<br />
<strong>desenvolvimento</strong> orgânico e <strong>na</strong>tural desde as assembléias <strong>do</strong>s cristãos (ALLEN, 1969:88).<br />
Kiesewetter citava ain<strong>da</strong> o caso <strong>da</strong> música grega, que não pôde se desenvolver até alcançar a<br />
maturi<strong>da</strong>de, ao contrário <strong>da</strong> música forma<strong>da</strong> <strong>na</strong> tradição cristã, que foi desti<strong>na</strong><strong>da</strong> ao progresso e à<br />
perfeição (ALLEN, 1969:88).<br />
Allen cita ain<strong>da</strong> o escritor Victor Hugo, que explicou a causa <strong>da</strong> decadência <strong>da</strong> religião<br />
grega e <strong>da</strong> ascensão <strong>do</strong> cristianismo <strong>da</strong> seguinte maneira: “Uma religião espiritual, suplantan<strong>do</strong> o<br />
material e externo paganismo, cria o seu caminho no coração <strong>da</strong> antiga socie<strong>da</strong>de, mata-a, e<br />
deposita, <strong>na</strong>quele cadáver de decrépita civilização, o germe <strong>da</strong> moder<strong>na</strong> civilização” (ALLEN,<br />
1969:88).<br />
No Brasil, tal questão foi trata<strong>da</strong> por Mário de Andrade, segun<strong>do</strong> o qual, com o<br />
Cristianismo um novo ideal de civilização <strong>na</strong>sce, provin<strong>do</strong> não mais <strong>do</strong> conceito de Socie<strong>da</strong>de,<br />
mas no conceito de Humani<strong>da</strong>de (ANDRADE,1963:24).<br />
“Só mesmo o a reali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> indivíduo, que o exame de consciência cristão<br />
evidenciava, traz a idéia de Humani<strong>da</strong>de; ao passo que a eficiência <strong>do</strong> homemcoletivo<br />
de <strong>da</strong>ntes despertava só a de Socie<strong>da</strong>de, o que não é a mesma coisa. Os<br />
homens antigos possuíram noção níti<strong>da</strong> de socialização porém tiveram idéias<br />
imperfeitas, quase sempre vagas e divagantes, sobre o que seja humanização e<br />
igual<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>” (ANDRADE,1963:25).<br />
Segun<strong>do</strong> o autor, inicia-se com isso uma nova fase <strong>na</strong> “evolução musical”, a fase<br />
melódica, em que “... os sons não têm mais como base fun<strong>da</strong>mental de união, a relação durativa<br />
que entre eles possa existir, mas a relação puramente sonora” (ANDRADE, 1969:25). Em outras<br />
palavras, segun<strong>do</strong> o autor, com o cristianismo a música deixa de interessar pelos “efeitos<br />
fisiológicos” impulsio<strong>na</strong><strong>do</strong>s pelo ritmo, relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s a coesão <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de social, e passa a<br />
interessar por seus aspectos espirituais e intelectuais (ANDRADE, 1969:25).<br />
Deste mo<strong>do</strong>, parece evidente o paralelo entre a historiografia musical em questão e a<br />
historiografia musical européia de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX o paralelo sobre a idéia <strong>do</strong> Cristianismo<br />
enquanto um fenômeno “civiliza<strong>do</strong>r”.<br />
56
Um exemplo desta opinião <strong>na</strong> historiografia relacio<strong>na</strong><strong>da</strong> aos jesuítas encontra-se <strong>na</strong><br />
passagem seguinte, de Caldeira Filho: “Assim, a civilização <strong>do</strong> Pla<strong>na</strong>lto <strong>do</strong> Piratininga acor<strong>do</strong>u<br />
ao som <strong>da</strong> música, e <strong>da</strong> música <strong>da</strong> Igreja católica” (CALDEIRA FILHO, 1954:129). Parece<br />
evidente, como se vê, que segun<strong>do</strong> o autor a “civilização” em São Paulo surge “ao som” <strong>da</strong> Igreja<br />
Católica.<br />
Ao contrário <strong>do</strong>s outros colonos que vieram para o Brasil no intuito de ganhar a vi<strong>da</strong>, os<br />
jesuítas vieram com a tarefa de cristianizar os povos “bárbaros”, fato que, sob a perspectiva de<br />
um país católico, cuja historiografia tradicio<strong>na</strong>lmente louva seus “heróis”, e, a despeito de<br />
qualquer atitude crítica, foi interpreta<strong>do</strong> como altruísmo e heroísmo <strong>da</strong> parte <strong>do</strong>s padres <strong>da</strong><br />
Companhia de Jesus. Neste senti<strong>do</strong>, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> afirma que eles foram “... abnega<strong>do</strong>s<br />
forma<strong>do</strong>res de nosso país, <strong>do</strong>s raros que aportavam aqui sem cobiça, mas com corações abertos<br />
e almas magnânimas” (ALMEIDA, 1926:188). Além disso, vieram para a América “...<br />
conquistar novos servos para Deus” (ALMEIDA, 1926:189).<br />
Em outra passagem, Caldeira Filho, por sua vez, refere-se aos “autos dramáticos” como<br />
peças “... desti<strong>na</strong><strong>da</strong>s a mol<strong>da</strong>r a alma rude <strong>do</strong> índio segun<strong>do</strong> os princípios eternos <strong>da</strong><br />
espirituali<strong>da</strong>de cristã” (CALDEIRA FILHO, 1954:129). Ora, a caracterização <strong>da</strong> alma <strong>do</strong> índio<br />
como “rude”, de um la<strong>do</strong>, e <strong>do</strong>s “princípios eternos” <strong>da</strong> espirituali<strong>da</strong>de cristã, sugere claramente a<br />
divisão <strong>da</strong>s raças huma<strong>na</strong>s em “superiores” e “inferiores”, de acor<strong>do</strong> com as teorias<br />
evolucionistas européias.<br />
Como se vê, as questões aqui apontam para a investigação <strong>da</strong>s evidências evolucionistas<br />
<strong>na</strong> historiografia musical sobre os jesuítas.<br />
3.1.2 Evidências evolucionistas <strong>na</strong> historiografia musical sobre os jesuítas<br />
Segun<strong>do</strong> Guilherme de Mello, em passagem também cita<strong>da</strong> por Caldeira Filho em A<br />
música em São Paulo (CALDEIRA FILHO, 1954:129), com os jesuítas “... a <strong>primeira</strong> exibição<br />
<strong>da</strong> arte musical brasileira basea<strong>da</strong> no sistema diatônico-cromático <strong>do</strong>s povos cultos” (MELLO,<br />
1908: 7). Ao nosso ver, o autor parece querer situar historicamente a <strong>primeira</strong> vez em que, no<br />
Brasil, se utilizou um sistema musical <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> “civiliza<strong>do</strong>”, o único então capaz de criar obras<br />
musicais “absolutas”, que figurem no rol <strong>da</strong>s grandes realizações musicais <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />
57
Vale lembrar que a questão <strong>do</strong> termo “absoluto” pede aqui maior <strong>desenvolvimento</strong>. Para<br />
grande parte <strong>do</strong>s autores pré-modernistas e modernistas, o termo “absoluto” poderia tomar o<br />
mesmo senti<strong>do</strong> de “universal”, ou seja, aquilo que se tor<strong>na</strong>sse um patrimônio comum de to<strong>da</strong> a<br />
humani<strong>da</strong>de, algo que, por diversos fatores, ultrapassa os limites de sua especifici<strong>da</strong>de local para<br />
figurar no rol <strong>da</strong>s grandes manifestações <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Vejamos como exemplo o trecho que<br />
se segue, de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> sobre Carlos Gomes:<br />
“... estava talha<strong>do</strong> para ser o cria<strong>do</strong>r <strong>da</strong> música brasileira, não no senti<strong>do</strong> de uma<br />
arte regio<strong>na</strong>l, que é sempre menor, mas com a grandeza <strong>do</strong>s motivos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is,<br />
senti<strong>do</strong>s através <strong>da</strong> cultura, porque, no fi<strong>na</strong>l, a arte é aquele depoimento <strong>do</strong><br />
coração humano, que deve <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>r o tempo e o espaço, ser perpétuo e universal”<br />
(ALMEIDA, 1926: 85).<br />
Para o autor, portanto, <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que a arte <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> o tempo e espaço e se fun<strong>da</strong> em<br />
“motivos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is” (elementos constituí<strong>do</strong>s a partir <strong>da</strong> idéia de povo e costume), aí sim,<br />
fi<strong>na</strong>lmente, a arte pode tor<strong>na</strong>r-se “perpétua e universal”. Em suma, somente sen<strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l a<br />
música brasileira poderia tor<strong>na</strong>r-se universal, absoluta.<br />
Mário de Andrade também pode nos aju<strong>da</strong>r a esclarecer o assunto. Ao dirigir a leitores<br />
ingleses, afirma que a música <strong>do</strong>s indíge<strong>na</strong>s “... além de melodicamente pobre, não era uma arte<br />
livre permitisse as manifestações espontâneas <strong>da</strong> imagi<strong>na</strong>ção cria<strong>do</strong>ra” (ANDRADE, 1963:17).<br />
De acor<strong>do</strong> como foi dito no tópico anterior (3.1.1), foi corrente entre os autores <strong>da</strong><br />
<strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> que a música <strong>do</strong>s indíge<strong>na</strong>s, antes de se prestar à expressão <strong>do</strong><br />
intelecto humano e ao deleite estético individual, em suma, não foi livre, pois, tinha<br />
funcio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de social e cunho religioso (ANDRADE, 1963:17).<br />
Como se pode ver, tais questões começam a indicar existência de duas músicas no Brasil:<br />
uma “civiliza<strong>da</strong>” e outra “primitiva”, o que parece se constituir uma <strong>da</strong>s principais problemáticas<br />
<strong>da</strong> historiografia musical brasileira <strong>na</strong>s <strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, a problemática entorno<br />
<strong>da</strong> própria definição de seu objeto, ou seja, <strong>do</strong> quê seria feita, de fato, a música “brasileira”. A<br />
tarefa <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res seria, portanto, identificar o papel <strong>do</strong>s respectivos “agentes” <strong>na</strong> criação <strong>da</strong><br />
música “brasileira”.<br />
No âmbito <strong>da</strong> historiografia musical inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, o evolucionismo proporcionou o<br />
surgimento de novas abor<strong>da</strong>gens e novos objetos, no Brasil, porém, ele parece a<strong>da</strong>ptar-se à<br />
58
problemática <strong>da</strong> contribuição <strong>da</strong>s três raças <strong>na</strong> formação <strong>do</strong> povo brasileiro, que por sua vez, se<br />
des<strong>do</strong>bra <strong>na</strong> historiografia através <strong>da</strong> investigação sobre a criação de uma música “brasileira”.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, é interessante observar a permanência <strong>do</strong> que chamamos evidências<br />
evolucionistas, <strong>na</strong> historiografia sobre a prática musica em São Paulo, mesmo quan<strong>do</strong> tais<br />
pressupostos passam a ser paulati<strong>na</strong>mente substituí<strong>do</strong>s, durante as <strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
<strong>XX</strong>, a partir <strong>da</strong> assimilação de pressupostos provenientes <strong>da</strong> antropologia pelos intelectuais<br />
liga<strong>do</strong>s ao movimento modernista.<br />
O primeiro aspecto desse traço evolucionista, ao nosso ver, se manifesta através <strong>do</strong> jogo<br />
de oposições o jesuíta (“civiliza<strong>do</strong>”, “culto”, “cristão” etc) e o indíge<strong>na</strong> (“selvagem”, “inculto”,<br />
“pagão” etc). A partir desse jogo, portanto, se desenvolve uma série de considerações que nos<br />
apontam para a existência <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> traço evolucionista <strong>na</strong> historiografia sobre os jesuítas<br />
produzi<strong>da</strong> no perío<strong>do</strong> em questão.<br />
Retomemos a citação anterior de Guilherme de Mello, segun<strong>do</strong> o qual, com a música <strong>do</strong>s<br />
autos se dá “... a <strong>primeira</strong> exibição <strong>da</strong> arte musical brasileira basea<strong>da</strong> no sistema diatônico-<br />
cromático <strong>do</strong>s povos cultos” (MELO, 1908: 7).<br />
Como se pode ver anteriormente, Guilherme de Mello escreveu em um perío<strong>do</strong> de intensa<br />
propagan<strong>da</strong> positivista no Brasil, onde foi produzi<strong>da</strong> uma série de trabalhos fun<strong>da</strong>menta<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s<br />
teorias evolucionistas européias, enfim, o sistema musical ”culto” trazi<strong>do</strong> pelos jesuítas, era<br />
reflexo <strong>do</strong> próprio estágio avança<strong>do</strong> de sua cultura européia. Assim, reconhecer o sistema<br />
musical <strong>do</strong>s jesuítas como “culto” (cultiva<strong>do</strong>) implica, necessariamente, em reconhecer o sistema<br />
musical <strong>do</strong>s índios como “inculto” (não cultiva<strong>do</strong>). Lembramos, que segun<strong>do</strong> o pressuposto<br />
evolucionista, o “simples” (inculto) evolui para o “complexo” (culto).<br />
Outro artigo que nos oferece importantes considerações para a compreensão <strong>da</strong> questão é<br />
A música em São Paulo, de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, publica<strong>do</strong> no suplemento literário de<br />
O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo, em 25 de janeiro de 1954, para as comemorações <strong>da</strong> IV Centenário <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de. Neste trabalho o autor pretende identificar os jesuítas como homens de “lábios eruditos”,<br />
pertencentes à uma cultura superior, caracterizan<strong>do</strong>-os como responsáveis pela criação de uma<br />
“civilização”. Por outro la<strong>do</strong>, o índio, segun<strong>do</strong> o autor, possui “mãos desajeita<strong>da</strong>s”, uma<br />
“garganta rude” e tangem “instrumentos grosseiros”, feitos pelos próprios índios:<br />
“A garganta rude <strong>do</strong> selvagem e os lábios eruditos <strong>do</strong>s padres cantavam<br />
acompanha<strong>do</strong>s por instrumentos grosseiros tangi<strong>do</strong>s pelas mãos desajeita<strong>da</strong>s <strong>do</strong>s<br />
59
pequenos brasís, realizan<strong>do</strong> a <strong>primeira</strong> manifestação musical <strong>da</strong> história de S.<br />
Paulo” (CALDEIRA FILHO, 1954:129).<br />
O jogo de oposições entre, de um la<strong>do</strong>, “lábios eruditos” e “princípios eternos <strong>da</strong><br />
espirituali<strong>da</strong>de cristã”, atribuí<strong>do</strong>s ao jesuíta, e, de outro, “garganta rude”, “instrumentos<br />
grosseiros” e “mãos desajeita<strong>da</strong>s”, atribuí<strong>do</strong>s ao índio, nos sugere, portanto, a idéia de que, tanto<br />
em relação a conformação biológica quanto a espirituali<strong>da</strong>de, o índio se encontra num estágio<br />
evolutivo inferior em relação ao jesuíta, e além disso, necessita deste para “progredir”.<br />
Outro aspecto que se manifesta esse traço evolucionista <strong>na</strong> historiografia em questão,<br />
trata-se <strong>da</strong>s considerações em torno <strong>da</strong> suposta “boa receptivi<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> música européia pelos<br />
indíge<strong>na</strong>s. Grande parte <strong>do</strong>s autores que trataram sobre a atuação musical <strong>do</strong>s jesuítas chama a<br />
atenção para este fato.<br />
Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, por exemplo, nos diz que: “Perceben<strong>do</strong> esse <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> música sobre o<br />
gentio, os jesuítas empregaram-<strong>na</strong> para a catequese” (ALMEIDA, 1926: 189-190). O autor<br />
prossegue dizen<strong>do</strong> que os acentos <strong>da</strong> música trazi<strong>da</strong> pelos jesuítas empolgavam os indíge<strong>na</strong>s “...<br />
que, desde a <strong>primeira</strong> missa, se deixaram enleiar pelas suas melodias” (ALMEIDA, 1926:189).<br />
Caldeira Filho, por sua vez, nos diz que o “pen<strong>do</strong>r” <strong>do</strong>s indíge<strong>na</strong>s para a música <strong>do</strong>s jesuítas foi o<br />
fator responsável pelo êxito <strong>da</strong> catequese (CALDEIRA FILHO, 1954:129). Segun<strong>do</strong> Luiz Heitor<br />
Correia de Azeve<strong>do</strong>, em 150 anos de música no Brasil, afirma que “O indíge<strong>na</strong> era sensível ao<br />
canto e à música <strong>do</strong>s instrumentos” (AZEVEDO, 1956:10).<br />
Vicenzo Cernicchiaro afirma que a incli<strong>na</strong>ção “i<strong>na</strong>ta” <strong>do</strong>s indíge<strong>na</strong>s brasileiros, bem<br />
como seu “sentimento musical” e seu “talento instrumentista”, foi objeto de admiração de muitos<br />
viajantes (CERNICCHIARO, 1926:18). O autor vai além e afirma que entre as raças<br />
“selvagens”, ou “primitivas”, a raça indíge<strong>na</strong> brasileira tem vantagem em relação à<br />
“intelectuali<strong>da</strong>de comum ao gosto <strong>na</strong>tivo” (CERNICCHIARO, 1926:18).<br />
O que estes textos parecem difundir é a idéia de que, por mais “distante” que estivessem<br />
os índios <strong>do</strong>s jesuítas em termos “evolutivos”, havia “algo” que os atraía e os ligava àquela<br />
música. Segun<strong>do</strong> Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>: “Havia uma influência indefinível e instintiva que atuava<br />
sobre a sensibili<strong>da</strong>de grosseira <strong>do</strong>s índios e aqueles cantos e aqueles hinos lhes pareciam vozes<br />
celestiais” (ALMEIDA, 1926:189).<br />
O fun<strong>da</strong>mento dessas opiniões no tocante a historiografia musical brasileira encontram-se<br />
justamente <strong>na</strong>s <strong>primeira</strong>s “histórias” <strong>da</strong> música brasileira. E neste senti<strong>do</strong>, são úteis as<br />
60
considerações de Cernicchiaro, por expressarem de mo<strong>do</strong> claro as idéias pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntes a esse<br />
respeito sobre o assunto.<br />
Vicenzo Cernicchiaro nos diz que to<strong>da</strong> arte, ou melhor, os “afetos” característicos <strong>da</strong>s<br />
diversas manifestações artísticas, são determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s pelo meio e pela raça, os quais determi<strong>na</strong>m<br />
também os “tratos característicos” e a “idéia social e religiosa” <strong>do</strong>s diversos povos<br />
(CERNICCHIARO, 1926:7).<br />
Conforme visto anteriormente, os conceitos de “meio” e “raça” foram largamente<br />
utiliza<strong>do</strong>s pelos pensa<strong>do</strong>res evolucionistas brasileiros, especialmente por permitirem, dentro de<br />
certos limites, explicar a formação de uma “raça”, e conseqüentemente, um povo em nosso país.<br />
O autor considera que em ca<strong>da</strong> raça huma<strong>na</strong> se encontra o fun<strong>da</strong>mento de to<strong>da</strong>s as outras<br />
manifestações artísticas, por isso, segun<strong>do</strong> ele, “... a música interessa igualmente a to<strong>do</strong> espírito<br />
humano de grau superior ou inferior, no <strong>desenvolvimento</strong> e perfeição <strong>da</strong> arte que o circun<strong>da</strong>”<br />
(CERNICCHIARO, 1926:27) 3 .<br />
O autor se refere a um “fun<strong>da</strong>mento comum” às diferentes raças, ou seja, de que criaturas<br />
<strong>da</strong> mesma ”espécie”, mas distintas pela raça, estariam sujeitas às mesmas “leis” de evolução.<br />
Se de certo mo<strong>do</strong>, é presumível que os autores que escreveram no momento de “vigência”<br />
<strong>da</strong> influência <strong>da</strong>s teorias evolucionistas no Brasil (como os autores pré-modernistas, que<br />
produziram entre cerca de 1870-1920), é também curioso perceber a presença desses<br />
fun<strong>da</strong>mentos justamente <strong>na</strong> obra <strong>do</strong>s intelectuais modernistas, os quais ao menos em tese<br />
aban<strong>do</strong><strong>na</strong>ram a perspectiva “biológica” de seus antecessores e passaram a a<strong>do</strong>tar uma perspectiva<br />
“antropológica”, a qual implicava <strong>na</strong> interpretação <strong>do</strong> primitivo enquanto traço distintivo de<br />
cultura, e por extensão, <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de. Nos parece que Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> encontra-se justamente<br />
neste caso, ao la<strong>do</strong> de Mário de Andrade.<br />
Em A música no Brasil, também publica<strong>do</strong> em “Anglo-Brazilian Chronicle”, Mário de<br />
Andrade afirma que, os índios brasileiros, “... apesar <strong>do</strong> estágio primário de civilização que<br />
possuíam, faziam muita música” (ANDRADE, 1963:17).<br />
Ten<strong>do</strong> em vista as considerações acima, parece certo podermos falar em evidências de um<br />
pensamento evolucionista associa<strong>do</strong> a historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
sobre os jesuítas.<br />
3 “... la musica debba interessare in pari ogni spirito umano di gra<strong>do</strong> inferiori o superiori, nello svolgimento e<br />
perfezione dell’arte che lo circun<strong>da</strong>”.<br />
61
3.2 Aspectos <strong>da</strong> historiografia sobre André <strong>da</strong> Silva Gomes<br />
Os textos sobre André <strong>da</strong> Silva Gomes são bastante escassos no perío<strong>do</strong> em questão.<br />
Dente os trabalhos sobre utiliza<strong>do</strong>s nesta pesquisa dedica<strong>do</strong>s ao compositor e que, ao nosso ver,<br />
tiveram certo alcance em seu contexto, destacamos: O regente <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé (1938) de Nuto<br />
Santa<strong>na</strong>, A música em São Paulo (1954), de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, Cronologia Musical<br />
Paulista (1954), de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende e, fi<strong>na</strong>lmente, André <strong>da</strong> Silva Gomes, o mestre<br />
de capela <strong>da</strong> Sé de São Paulo (1954), de Clóvis de Oliveira.<br />
O texto de Nuto Santa<strong>na</strong> e o de Caldeira Filho foram publica<strong>do</strong>s em O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo,<br />
enquanto o de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende e de Clóvis de Oliveira tiveram críticas positivas<br />
publica<strong>da</strong>s no jor<strong>na</strong>l <strong>da</strong> autoria de Caldeira Filho (CALDEIRA FILHO, 1954b), (CALDEIRA<br />
FILHO, 1954c).<br />
A despeito <strong>da</strong> ausência de informações sobre o compositor, bem como o passa<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de em geral, disponíveis <strong>na</strong>quele momento, André <strong>da</strong> Silva Gomes foi caracteriza<strong>do</strong> como<br />
um homem bon<strong>do</strong>so, devota<strong>do</strong> ao seu trabalho, generoso. Nuto Santa<strong>na</strong>, por exemplo, citan<strong>do</strong><br />
Antonio Egídio Martins afirma que o compositor era:<br />
“... bon<strong>do</strong>so em extremo, pois lecio<strong>na</strong>va a meninos pobres gratuitamente e criava<br />
outros que lhe eram confia<strong>do</strong>s ou enjeita<strong>do</strong>s em sua casa. Muitos desses filhos<br />
a<strong>do</strong>tivos ou alunos gratuitos tor<strong>na</strong>ram-se figuras salientes no clero”<br />
(SANTANA, 1938:4).<br />
Esta consideração parece ter se repeti<strong>do</strong> nos trabalhos de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende e de<br />
Clóvis de Oliveira. O primeiro afirma em sua Cronologia Musical de São Paulo: “Homem<br />
bon<strong>do</strong>so, devota<strong>do</strong> à sua carreira, exerceu durante mais de cinqüenta anos o cargo de mestre de<br />
capela. Costumava repartir entre os executantes e cantores o orde<strong>na</strong><strong>do</strong> que lhe cabia”<br />
(RESENDE, 1954a: 233).<br />
O interesse pelo compositor André <strong>da</strong> Silva Gomes parece ter se inicia<strong>do</strong> de uma maneira<br />
mais intensa desde que Fúrio Franceschini, antigo mestre de capela <strong>da</strong> Sé de São Paulo,<br />
encontrou um manuscrito <strong>do</strong> compositor no Arquivo <strong>da</strong> Cúria Metropolita<strong>na</strong> de São Paulo,<br />
62
tratan<strong>do</strong>-se de um hino Ave Maria Stela (OLIVEIRA, 1954:19). Este acha<strong>do</strong> rendeu um concerto<br />
promovi<strong>do</strong> pela Socie<strong>da</strong>de de Cultura Artística, em 16 de dezembro de 1930, <strong>na</strong> Igreja de Santa<br />
Ifigênia em São Paulo (OLIVEIRA, 1954:19).<br />
Durante a <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, era pequeno o número de informações sobre o<br />
compositor, o que fez com que os historiógrafos, no intuito de engrandecer-lhe a importância,<br />
cometessem uma série de pequenos equívocos. Vale destacar que, antes dessa <strong>da</strong>ta, precisamente<br />
em 1912, Antônio Egídio Martins, escreven<strong>do</strong> sobre as “lembranças e reminiscências” de São<br />
Paulo, havia feito uma referência à André <strong>da</strong> Silva Gomes, em seu trabalho São Paulo Antigo, a<br />
qual foi cita<strong>da</strong> por Nuto Santa<strong>na</strong> (SANTANA, 1938), Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende (RESENDE,<br />
1954a) e Clóvis de Oliveira (OLIVEIRA, 1954). Tamanha a falta de informações sobre o antigo<br />
compositor, que Clóvis de Oliveira insere em seu texto uma nota eluci<strong>da</strong>tiva, corrigin<strong>do</strong> a<br />
informação divulga<strong>da</strong> no programa <strong>do</strong> concerto, segun<strong>do</strong> a qual André <strong>da</strong> Silva Gomes seria<br />
“irmão” de Francisco Manuel <strong>da</strong> Silva (OLIVEIRA, 1954:19).<br />
Além disso, os textos em geral são peque<strong>na</strong>s biografias, e não fazem mais <strong>do</strong> que repetir<br />
uma série de informações, resultan<strong>do</strong> em grande redundância de informações. O trabalho mais<br />
extenso sobre o compositor dentre os aqui abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s é André <strong>da</strong> Silva Gomes, o mestre de capela<br />
<strong>da</strong> Sé de São Paulo, de Clóvis de Oliveira (58 pág<strong>na</strong>s). Mesmo assim, o autor deu igual ênfase a<br />
outros aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> biografa<strong>do</strong>, como, por exemplo, à sua atuação como professor de<br />
Gramática Lati<strong>na</strong> e como membro <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> provisório. Ao nosso ver, o texto de Clóvis de<br />
Oliveira não constitui um trabalho exclusivamente de historiografia musical, pois, de acor<strong>do</strong> com<br />
o próprio autor: “É o passa<strong>do</strong> de S. Paulo que historiamos ao realçar essa figura que só a<br />
posteri<strong>da</strong>de caberia fazer-lhe justiça e coloca-lo no lugar de honra de nossos homens ilustres”<br />
(OLIVEIRA, 1954:9). OU seja, o trabalho de Clóvis de Oliveira parece mais volta<strong>do</strong> para a<br />
história regio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> que para uma história <strong>da</strong> música <strong>na</strong> região, pois, trata superficialmente de<br />
questões musicais, e enfatiza outros aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> músico biografa<strong>do</strong>: I. O Mestre de<br />
capela; II. O Professor Régio de Gramática Lati<strong>na</strong>; III. Fatos históricos que envolveram a figura<br />
de André <strong>da</strong> Silva Gomes” (OLIVEIRA, 1954: 7).<br />
Uma <strong>da</strong>s <strong>primeira</strong>s quali<strong>da</strong>des atribuí<strong>da</strong>s a Silva Gomes por uma série de historiógrafos<br />
que escreveram no perío<strong>do</strong> em questão foi ter ele si<strong>do</strong> um “célebre” compositor. Isto parece ter<br />
si<strong>do</strong> motiva<strong>do</strong> pelo fato de que ele chegou juntamente com então novo bispo de São Paulo, Dom<br />
63
Manuel <strong>da</strong> Ressurreição, fato que relata<strong>do</strong> por Nuto Santa<strong>na</strong> (SANTANA, 1938:4), Clóvis de<br />
Oliveira (OLIVEIRA, 1954:11) e Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende (RESENDE, 1954:233).<br />
O texto mais antigo aqui em questão é, portanto, o de Nuto Santa<strong>na</strong> publica<strong>do</strong> em 1938.<br />
Vale salientar que Nuto Santa<strong>na</strong> é reconheci<strong>do</strong> como um historia<strong>do</strong>r liga<strong>do</strong> à história e<br />
“reminiscências” <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Paulo, e por tal motivo, ao contrário de grande parte <strong>do</strong>s<br />
historiógrafos <strong>da</strong> época, estava habitua<strong>do</strong> à pesquisa de arquivo. No mesmo perío<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
publicação de O mestre de capela <strong>da</strong> Sé, Nuto Santa<strong>na</strong> havia publica<strong>do</strong> <strong>do</strong>is outros trabalhos<br />
sobre os costumes e a arquitetura em São Paulo colonial, tratan<strong>do</strong>-se respectivamente de São<br />
Paulo Histórico (1938) e A igreja <strong>do</strong>s Remédios (1937) (MORAES, 1998).<br />
Nuto Santa<strong>na</strong> consultou no Arquivo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo os <strong>do</strong>cumentos sobre o<br />
recenseamento de 1777 em São Paulo, e assim, escreveu a seguinte observação, que foi cita<strong>da</strong><br />
posteriormente por Clóvis de Oliveira em André <strong>da</strong> Silva Gomes, o mestre de capela <strong>da</strong> Sé de<br />
São Paulo (OLIVEIRA, 1954:26): “Esse André <strong>da</strong> Silva Gomes, em 1777, tinha 25 anos e era<br />
casa<strong>do</strong> cm a viúva Maria Garcia de Jesus, de 37 anos. Vivia com eles uma entea<strong>da</strong> de 13 anos,<br />
de nome Joaqui<strong>na</strong>. E também uma agrega<strong>da</strong>” (SANTANA, 1938:4).<br />
Nuto Santa<strong>na</strong> descreve a série de “reminiscências” que lhe foram evoca<strong>da</strong>s pela antiga<br />
batuta pertencente a André <strong>da</strong> Silva Gomes, presente no Arquivo <strong>da</strong> Cúria Metropolita<strong>na</strong> de São<br />
Paulo:<br />
“... relembrei o perío<strong>do</strong> de longos anos em que regeu o coro e célebre André <strong>da</strong><br />
Silva Gomes. Teria si<strong>do</strong> a dele. Com ela o ilustre músico teria feito vibrar, <strong>na</strong><br />
sucessão de várias gerações, o coração católico de to<strong>do</strong>s aqueles que ali iam<br />
guia<strong>do</strong>s pelo esplen<strong>do</strong>r de sua crença” (SANTANA, 1938:4)<br />
Mais adiante, Nuto Santa<strong>na</strong> afirma algo que se consistirá um <strong>do</strong>s grandes equívocos em<br />
torno <strong>da</strong> figura de André <strong>da</strong> Silva Gomes, ou seja, que ele teria si<strong>do</strong>, por mais de trinta anos, “... o<br />
primeiro mestre de capela <strong>da</strong> sé catedral” (SANTANA, 1938:4).<br />
Essa consideração se repetirá posteriormente nos três principais textos de referência sobre<br />
o compositor: A Música em São Paulo (1954), de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho. O autor afirma<br />
que o coro <strong>da</strong> Sé teria si<strong>do</strong> forma<strong>do</strong> por André <strong>da</strong> Silva Gomes em 1774. (CALDEIRA FILHO,<br />
1954:129). Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, em sua Cronologia Musical de São Paulo (1800-1870)<br />
afirma que André <strong>da</strong> Silva Gomes chegara de Lisboa “... com a missão de criar e reger o coro de<br />
música <strong>da</strong> Sé Catedral” (RESENDE, 1954a: 233). Por sua vez, Clóvis de Oliveira afirmou que<br />
64
“... foi André <strong>da</strong> Silva Gomes o primeiro mestre de capela e o fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> coro <strong>da</strong> Sé Catedral<br />
de São Paulo; o foi o primeiro músico de real valor a fixar-se em São Paulo e a iniciar a<br />
tradição artística <strong>da</strong> terra bandeirante” (OLIVEIRA, 1954:9).<br />
Como se verificou posteriormente, André <strong>da</strong> Silva Gomes não fun<strong>do</strong>u o coro <strong>da</strong> Sé de São<br />
Paulo, tão pouco foi seu primeiro mestre de capela. De acor<strong>do</strong> com as pesquisas de Duprat se<br />
pôde verificar que a ativi<strong>da</strong>de musical <strong>na</strong> referi<strong>da</strong> Sé <strong>da</strong>ta <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVI (DUPRAT, 1995).<br />
Outra faceta <strong>do</strong> compositor referi<strong>da</strong> por seus historiógrafos é o fato de ter si<strong>do</strong> membro <strong>do</strong><br />
Governo Provisório, às vésperas <strong>da</strong> Independência <strong>do</strong> Brasil: “Em 1821 escolherem-no para,<br />
como representante <strong>da</strong> Instrução Pública, integrar o governo provisório de São Paulo ...”<br />
(SANTANA, 1938:4)<br />
Interessante a nota <strong>do</strong> autor sobre o posicio<strong>na</strong>mento político de André <strong>da</strong> Silva Gomes nos<br />
acontecimentos em torno a Independência <strong>do</strong> Brasil. Segun<strong>do</strong> ele, André <strong>da</strong> Silva Gomes “...<br />
como membro <strong>do</strong> Governo Provisório se manteve como uma <strong>da</strong>s figuras neutras durante os<br />
acontecimentos. Contu<strong>do</strong> não foi favorável à corrente <strong>do</strong>s Andra<strong>da</strong>s, com mais uns <strong>do</strong>is ou três<br />
...” (SANTANA, 1938:4). Esta mesma passagem é cita<strong>da</strong> por Clóvis de Oliveira (OLIVEIRA,<br />
1954:38). O autor dedica-lhe um capítulo inteiro sobre a atuação de André <strong>da</strong> Silva Gomes no<br />
Governo Provisório. Diz ele:<br />
“Durante a sua gestão o Governo Provisório realizou mais de cem (100) sessões,<br />
ten<strong>do</strong> André Gomes deixa<strong>do</strong> de comparecer a umas dez, ape<strong>na</strong>s. Em duas <strong>da</strong>s<br />
sessões realiza<strong>da</strong>s - <strong>na</strong>s 60 a e 65 a - foi distingui<strong>do</strong> pelos seus pares para participar<br />
de comissões especiais com o fim de estu<strong>da</strong>r assuntos relevantes para a<br />
administração” (OLIVEIRA, 1954:38-39).<br />
A participação de André <strong>da</strong> Silva Gomes no Governo Provisório foi vista posteriormente<br />
pelos historiógrafos em questão como expressão de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo, e o compositor passou a ser<br />
identifica<strong>do</strong> como um “homem ilustre” liga<strong>do</strong> à Independência <strong>do</strong> Brasil. Neste senti<strong>do</strong>, Clóvis<br />
de Oliveira afirma que André <strong>da</strong> Silva Gomes ”... era partidário <strong>da</strong> Independência <strong>do</strong> Brasil e,<br />
para tanto dedicou to<strong>do</strong> o seu entusiasmo pela causa <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” (OLIVEIRA, 1954:40).<br />
Segun<strong>do</strong> Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, o historia<strong>do</strong>r Eugenio Egas havia escrito que “...<br />
foi o maestro André <strong>da</strong> Silva Gomes quem, de afogadilho, orquestrou, ensaiou e regeu, <strong>na</strong><br />
histórica noite, o Hino <strong>da</strong> Independência” (RESENDE, 1954a: 237). Este fato foi repeti<strong>do</strong> por<br />
uma série de autores, como por exemplo, João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, que escreveu ter si<strong>do</strong><br />
65
André <strong>da</strong> Silva Gomes “... o orquestra<strong>do</strong>r e ensaia<strong>do</strong>r de música e ain<strong>da</strong> o regente <strong>da</strong> execução”<br />
(CALDEIRA FILHO, 1954:129).<br />
Devi<strong>do</strong> ao comprometimento <strong>do</strong> autor com a estética modernista, ele autor dá grande<br />
importância a este fato como se pode ver a seguir. :<br />
“Foi <strong>na</strong> Casa <strong>da</strong> Ópera de São Paulo, a <strong>do</strong> Pátio <strong>do</strong> Colégio, que, a 7 de setembro<br />
de 1822 transcorreu um <strong>do</strong>s momentos máximos <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de: pela <strong>primeira</strong><br />
vez se cantou ali., segun<strong>do</strong> vários testemunhos, o Hino <strong>da</strong> Independência e ali,<br />
ain<strong>da</strong> pela <strong>primeira</strong> vez, foi o Príncipe D. Pedro aclama<strong>do</strong> Rei <strong>do</strong> Brasil”<br />
(CALDEIRA FILHO, 1954:129).<br />
Clóvis de Oliveira se refere a tal fato de maneira mais ufanista, exaltan<strong>do</strong> as quali<strong>da</strong>des de<br />
patriota <strong>do</strong> compositor:<br />
“Com o fin<strong>da</strong>r <strong>do</strong> 7 de setembro de 1822, sob o som <strong>da</strong>s melodias executa<strong>da</strong>s pela<br />
orquestra de André <strong>da</strong> Silva Gomes, ar<strong>do</strong>roso patriota e defensor <strong>do</strong> ideal político<br />
<strong>da</strong> Independência <strong>do</strong> Brasil; sob a harmonia vocal <strong>do</strong> coração patriótico <strong>da</strong> nossa<br />
gente;sob a égide de um príncipe cheio de coragem e independente, <strong>na</strong>sceu um<br />
Brasil livre, grandioso no ideal, <strong>na</strong> riqueza e <strong>na</strong> extensão territorial”(OLIVEIRA,<br />
1954:56)<br />
Embora de menor impacto, outra faceta foi atribuí<strong>da</strong> ao compositor que é a de ter si<strong>do</strong> o<br />
inicia<strong>do</strong>r de uma suposta “tradição” musical em São Paulo. Como se viu acima, André <strong>da</strong> Silva<br />
Gomes foi visto como o primeiro compositor de valor a se estabelecer em São Paulo e a fun<strong>da</strong>r o<br />
coro <strong>da</strong> Sé. Clóvis de Oliveira, que, vale lembrar, formou-se pelo Conservatório Dramático<br />
Musical de São Paulo (então a melhor instituição de formação musical disponível em São Paulo<br />
<strong>na</strong>quele momento) e editou, desde 1938, a revista Resenha Musical, disse expressamente em seu<br />
trabalho sobre Silva Gomes que “... não havia música sacra em São Paulo. Os poucos que a<br />
praticavam <strong>na</strong> Sé e mesmo <strong>na</strong>s outras igrejas, nem sabiam, <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de, o que era música<br />
religiosa” (OLIVEIRA, 1954:12).<br />
Além disso, divulgou-se a idéia de que André <strong>da</strong> Silva Gomes teria si<strong>do</strong> professor de<br />
Manuel José Gomes, pai de Carlos Gomes, inicialmente no texto de Nuto Santa<strong>na</strong> (SANTANA,<br />
1938:4), e posteriormente em Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende (RESENDE, 1954a:233)e fi<strong>na</strong>lmente<br />
Clóvis de Oliveira (OLIVEIRA, 1954:17). Caldeira Filho foi o único que não mencionou tais<br />
66
fatos. Conseqüentemente, André <strong>da</strong> Silva Gomes, liga<strong>do</strong> à Carlos Gomes, “... indiretamente, teria<br />
contribuí<strong>do</strong> para a sua formação espiritual e artística” (SANTANA, 1938:4).<br />
Ao nosso ver, as considerações em torno de André <strong>da</strong> Silva Gomes ter si<strong>do</strong> o inicia<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />
“tradição” musical em São Paulo refletem, de um la<strong>do</strong>, a carência de informações disponíveis<br />
sobre o passa<strong>do</strong> musical <strong>da</strong> região, e de outro, a necessi<strong>da</strong>de de se determi<strong>na</strong>r os músicos ilustres<br />
de São Paulo, uma vez que outras regiões importantes no passa<strong>do</strong> brasileiro, como o Rio de<br />
Janeiro, Bahia, e mais recentemente (nos anos de 1940) Mi<strong>na</strong>s Gerais, tiveram sua produção<br />
conheci<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>s pesquisa musicológicas desenvolvi<strong>da</strong>s no país.<br />
3.3 Aspectos <strong>da</strong> historiografia sobre Carlos Gomes<br />
3.3.1 O “embaixa<strong>do</strong>r” Carlos Gomes<br />
O fato de ter si<strong>do</strong> o primeiro compositor brasileiro a conquistar fama inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l parece<br />
ter si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s motivos que fez com que Carlos Gomes passasse a ser considera<strong>do</strong> a partir de um<br />
viés <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista. A jovem República brasileira não contava ain<strong>da</strong> 50 anos quan<strong>do</strong> se deu o<br />
centenário de <strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> compositor (1836-1936), quan<strong>do</strong> foram publica<strong>do</strong>s trabalhos que<br />
evocaram a imagem de Carlos Gomes como um patriota: “... tu<strong>do</strong> fez pela grandeza <strong>da</strong> pátria, e<br />
ao seu nome juntava sempre os epítetos de brasileiro e patriota” (SEIDL, 1935:52).<br />
Já foi bastante enfatiza<strong>do</strong> aqui a presença, <strong>na</strong> historiografia, de tendências <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>listas,<br />
desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, bem com a tendência <strong>da</strong> historiografia musical (e mesmo <strong>da</strong><br />
historiografia geral) em se voltar para a <strong>na</strong>rrativa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s “grandes homens”. No entanto,<br />
gostaríamos de ressaltar aspecto diferente nesta historiografia, o qual ao nosso ver surgiu <strong>da</strong>s<br />
próprias necessi<strong>da</strong>des e dilemas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>.<br />
Gastão de Bittencourt afirma que a música brasileira deve a Carlos Gomes o<br />
reconhecimento inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l por ter produzi<strong>do</strong> obras “imortais”, e com isso, conquista<strong>do</strong> o<br />
reconhecimento <strong>do</strong>s grandes centros artísticos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> civiliza<strong>do</strong> (BITTENCOURT, 1945b:<br />
14). Nas palavras <strong>do</strong> autor: “Carlos Gomes foi uma <strong>da</strong>s máximas figuras <strong>da</strong> música brasileira e<br />
esta deve-lhe pági<strong>na</strong>s ver<strong>da</strong>deiramente imortais que levaram, exaltan<strong>do</strong>-o, o nome <strong>do</strong> Brasil por<br />
67
to<strong>do</strong>s os grandes centros artísticos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (BITTENCOURT, 1945b: 14). Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong><br />
havia escrito que o compositor paulista foi “... uma <strong>da</strong>s maiores glórias artísticas <strong>do</strong> Brasil”<br />
(ALMEIDA, 1942:388).<br />
Para Artur de Mace<strong>do</strong>, num artigo publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> revista Resenha Musical, edita<strong>da</strong> por<br />
Clóvis de Oliveira, as obras de Carlos Gomes se tor<strong>na</strong>ram “... as representantes lídimas <strong>do</strong> valor<br />
artístico <strong>da</strong> raça brasileira, desta raça boa e forte que tem coração de gigante e coração de<br />
criança cândi<strong>da</strong>, que sabe sorrir e querer bem” (MACEDO, 1940:24).<br />
Paulo Cerqueira não restringe a importância de Carlos Gomes ao Brasil, estenden<strong>do</strong>-a a<br />
to<strong>da</strong>s as <strong>na</strong>ções america<strong>na</strong>s. O autor o representa como a maior “evidência” <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de<br />
artística <strong>do</strong> brasileiro, e num âmbito mais amplo, <strong>do</strong> potencial artístico <strong>da</strong>s jovens <strong>na</strong>ções<br />
america<strong>na</strong>s: “Carlos Gomes revelou à Europa o potencial artístico <strong>da</strong>s <strong>na</strong>ções america<strong>na</strong>s.<br />
Afirmação <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de de um povo. O gênio musical brasileiro é a glória incontesta<strong>da</strong> e<br />
perene <strong>da</strong> América” (CERQUEIRA, s.d:23)<br />
Como foi observa<strong>do</strong> em tópico anterior (<strong>XX</strong>), o dilema <strong>do</strong>s intelectuais brasileiros de fins<br />
<strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX e início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> foi justamente estu<strong>da</strong>r a interação <strong>da</strong>s “três raças<br />
forma<strong>do</strong>ras” para, posteriormente, verificar a possibili<strong>da</strong>de de se estabelecer no Brasil uma<br />
“civilização”, a qual seria efetiva<strong>da</strong> através <strong>da</strong> constituição de uma <strong>na</strong>ção republica<strong>na</strong> e<br />
progressista, o que pressupunha certa uni<strong>da</strong>de cultural e racial.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, podemos perceber em alguns escritos que compõem a historiografia em<br />
questão que Carlos Gomes é freqüentemente reconheci<strong>do</strong> como o primeiro compositor brasileiro<br />
a alcançar fama inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, bem como, a levar o nome <strong>do</strong> Brasil ao rol <strong>da</strong>s grandes produções<br />
operísticas européias. Com isso, no intuito de remarcar esse aspecto particular <strong>da</strong> contribuição de<br />
Carlos Gomes, alguns historiógrafos agregaram ao nome <strong>do</strong> compositor campineiro o epíteto de<br />
“embaixa<strong>do</strong>r sonoro” (CARVALHO, 1935:11); (BITTENCOURT, 1945b: 7).<br />
Ao nosso ver, esta consideração aponta para as questões entorno <strong>do</strong> reconhecimento <strong>da</strong><br />
“<strong>na</strong>ção brasileira” no cenário inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, ou seja, em que Carlos Gomes figura como o<br />
“representante” <strong>do</strong> suposto “progresso” alcança<strong>do</strong> pela jovem <strong>na</strong>ção brasileira.<br />
A <strong>primeira</strong> menção <strong>da</strong> expressão “embaixa<strong>do</strong>r sonoro” encontramos no trabalho de Ítala<br />
Gomes Vaz de Carvalho, A vi<strong>da</strong> de Carlos Gomes, publica<strong>do</strong> em 1935, no ano anterior ao<br />
centenário de <strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> compositor. Trata-se de um trabalho de autoria <strong>da</strong> filha <strong>do</strong><br />
compositor, publica<strong>do</strong> me vista <strong>da</strong>s futuras comemorações de seu <strong>na</strong>scimento, em 1936.<br />
68
Posteriormente a encontramos em A vi<strong>da</strong> ansiosa e atormenta<strong>da</strong> de um gênio (Antônio<br />
Carlos Gomes), de Gastão de Bittencourt, publica<strong>do</strong> em 1945.<br />
Uma passagem expressiva proveniente <strong>do</strong> trabalho de Ítala Carvalho resume d certo<br />
mo<strong>do</strong> as angustias a respeito desta questão <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, e<br />
mostra com o Carlos Gomes muitas vezes utiliza<strong>do</strong> como “argumento” para a defesa <strong>do</strong><br />
progresso <strong>do</strong> nosso país:<br />
“É de grande conforto para nós, brasileiros, notar como num lugar ain<strong>da</strong> muito<br />
atrasa<strong>do</strong> como era Campi<strong>na</strong>s <strong>do</strong> início <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, entre pessoas oriun<strong>da</strong>s de<br />
uma raça recém forma<strong>da</strong>, pudessem ter apareci<strong>do</strong> duas aptidões tão<br />
extraordinárias para a música [Carlos Gomes e seu irmão Santa<strong>na</strong> Gomes]”<br />
(CARVALHO, 1935:21).<br />
Portanto, segun<strong>do</strong> as considerações desenvolvi<strong>da</strong>s acima, é possível dizer que a<br />
historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, como se tem dito, interpretou Carlos<br />
Gomes como a <strong>primeira</strong> grande evidência <strong>do</strong> “progresso” musical brasileiro, além disso, como<br />
seu primeiro “divulga<strong>do</strong>r”.<br />
3.3.2 O “cria<strong>do</strong>r” <strong>da</strong> música brasileira<br />
Outro aspecto presente <strong>na</strong> historiografia de Carlos Gomes é aquele segun<strong>do</strong> o qual o<br />
compositor figura como “cria<strong>do</strong>r” de uma música brasileira. Tal consideração, de caráter<br />
notoriamente <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista, parece evidenciar a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> historiografia musical brasileira em<br />
geral, no perío<strong>do</strong> em questão, de apresentar os compositores considera<strong>do</strong>s os “responsáveis” pela<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização <strong>da</strong> música em nosso país.<br />
No entanto, o que especificamente nos chama a atenção neste momento é a maneira pela<br />
qual os historiógrafos sustentaram sua opinião, a quais idéias se apegaram, quais foram seus<br />
argumentos apresenta<strong>do</strong>s <strong>na</strong> defesa <strong>do</strong> compositor, e fi<strong>na</strong>lmente, como podemos interpretar tal<br />
fato no contexto em questão. Ao nosso ver, tal idéia se des<strong>do</strong>brou em uma série de considerações<br />
que estão intimamente relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s à problemática em torno <strong>da</strong> definição <strong>do</strong>s elementos<br />
“brasileiros” em música.<br />
69
Exemplos dessa opinião encontram-se em diversos trabalhos, como por exemplo, os que<br />
apresentaremos a seguir. Na <strong>primeira</strong> edição <strong>da</strong> História <strong>da</strong> Música Brasileira, de Re<strong>na</strong>to<br />
Almei<strong>da</strong>: “Carlos Gomes estava talha<strong>do</strong> para ser o cria<strong>do</strong>r <strong>da</strong> música brasileira, não no senti<strong>do</strong><br />
de uma arte regio<strong>na</strong>l, que é sempre menor, mas com a grandeza <strong>do</strong>s motivos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, senti<strong>do</strong>s<br />
através <strong>da</strong> cultura” (ALMEIDA, 1926: 85). Dez anos depois, no ano <strong>do</strong> centenário <strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> compositor, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> escreve que Carlos Gomes foi “... a <strong>primeira</strong><br />
afirmação de uma música brasileira” (ALMEIDA, 1936:4). Em Carlos Gomes, Paulo Cerqueira,<br />
por exemplo, chama o compositor de “mestre de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de” (CERQUEIRA, s.d:4). Gastão de<br />
Bittencourt, por sua vez, afirmou que Carlos Gomes foi um “mestre de brasili<strong>da</strong>de”<br />
(BITTENCOURT, s.d:134)<br />
Lembramos que a produção liga<strong>da</strong> a análise musical ain<strong>da</strong> não tinha se desenvolvi<strong>do</strong> de<br />
maneira sistemática em nosso país <strong>na</strong>quele momento, e assim, parece ter si<strong>do</strong> difícil para os<br />
historiógrafos determi<strong>na</strong>r com precisão o grau de “brasili<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> obra <strong>do</strong>s diversos<br />
compositores, uma vez que não seria possível identificar os elementos estruturais considera<strong>do</strong>s<br />
característicos <strong>da</strong> música brasileira. A “brasili<strong>da</strong>de” <strong>do</strong> compositor deveria, portanto, ser atesta<strong>da</strong><br />
de uma outra maneira. Deste mo<strong>do</strong>, as <strong>primeira</strong>s caracterizações de Carlos Gomes enquanto<br />
“cria<strong>do</strong>r” <strong>da</strong> música brasileira, ao nosso ver, enfatizam a idéia de uma suposta “influência” <strong>da</strong><br />
<strong>na</strong>tureza como determi<strong>na</strong>nte para a especifici<strong>da</strong>de de seu temperamento e, conseqüentemente, de<br />
sua música.<br />
É importante considerar que a idéia <strong>da</strong> exuberância <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza brasileira e sua suposta<br />
influência sob nossos artistas brasileiros foi desenvolvi<strong>da</strong> pela historiografia e literatura<br />
brasileiras desde o Romantismo, segun<strong>do</strong> apontou Dante Moreira Leite (LEITE, 2002:219).<br />
“Uma grande parte <strong>do</strong> romantismo brasileiro, no entanto, foi vivi<strong>da</strong> num ambiente<br />
de entusiasmo pela vi<strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, de confiança no futuro <strong>do</strong> jovem país, de<br />
celebração de sua <strong>na</strong>tureza, de elogios à inspiração <strong>do</strong>s seus jovens poetas,<br />
mortos <strong>na</strong> flor <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de” (LEITE, 2002:219).<br />
Além disso, conforme anteriormente aponta<strong>do</strong> por Re<strong>na</strong>to Ortiz (<strong>XX</strong>), após mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
<strong>século</strong> XIX, a noção de “meio” - juntamente com a noção de “raça” - tornou-se, um <strong>do</strong>s<br />
principais elementos para a explicação <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l (ORTIZ, 1985:16).<br />
Naturalmente, ten<strong>do</strong> o evolucionismo encerra<strong>do</strong> (oficialmente) sua influência sistemática no<br />
pensamento brasileiro a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920 com a produção vincula<strong>da</strong> ao movimento<br />
70
modernista, não é improvável, portanto, supormos que resquícios dessa “influência” mesológica<br />
possam ain<strong>da</strong> perdurar por muito tempo <strong>na</strong> historiografia musical <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão.<br />
Especialmente, se considerarmos que, segun<strong>do</strong> apontou Luiz <strong>da</strong> Costa Lima, não houve,<br />
tradicio<strong>na</strong>lmente em nosso país, “... uma massa de leitores que levasse os escritores a modificar<br />
os padrões europeus” (LIMA, 1981:6).<br />
Na historiografia musical brasileira, tal idéia parece ter si<strong>do</strong> divulga<strong>da</strong> por Re<strong>na</strong>to<br />
Almei<strong>da</strong> desde a “Sinfonia <strong>da</strong> terra”, em sua História <strong>da</strong> Música Brasileira de 1926. Em outro<br />
momento o autor parece sintetizar <strong>da</strong> seguinte maneira a idéia de que nossa especifici<strong>da</strong>de<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l é determi<strong>na</strong><strong>da</strong> pela nossa <strong>na</strong>tureza:<br />
“Na luta infatigável e trágica, que o europeu teve de sustentar com a <strong>na</strong>tureza<br />
america<strong>na</strong>, o seu espírito se retemperou por ta forma, que as linhas diretoras <strong>do</strong><br />
caráter tiveram logo a marca deforma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> embate” (ALMEIDA, 1926:184).<br />
Como se vê, o espírito <strong>do</strong> europeu se “retemperou” no embate com o meio, a tal ponto,<br />
que as “linhas diretoras”, base <strong>do</strong> seu caráter <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, transformara-se neste embate Sobre<br />
Carlos Gomes, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> nos diz que ele foi:<br />
“...um <strong>do</strong>s poderosos artistas <strong>do</strong> nosso país. Com origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de de estro e<br />
inspiração opulenta e varia, criou uma obra em que, por vezes, a expressão tem<br />
uma violência imprevista e admirável, quan<strong>do</strong> soam as notas exuberantes <strong>da</strong> terra<br />
america<strong>na</strong>” (ALMEIDA, 1926: 83).<br />
O trecho em que o autor nos diz que “... a expressão tem uma violência imprevista e<br />
admirável quan<strong>do</strong> soam as notas exuberantes <strong>da</strong> terra america<strong>na</strong>” parece justamente evocar a<br />
influência <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza selvagem sobre o caráter <strong>do</strong> compositor.<br />
Em Carlos Gomes, a estrela musical <strong>do</strong> Cruzeiro <strong>do</strong> Sul, publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> revista Resenha<br />
Musica, edita<strong>da</strong> em São Paulo por Clóvis de Oliveira, Artur de Mace<strong>do</strong>:<br />
“Carlos Gomes – o genial cantor <strong>da</strong>s selvas brasileiras, o homem diviniza<strong>do</strong> pela<br />
própria <strong>na</strong>tureza em que <strong>na</strong>sceu e que ele tanto amou e honrou! Carlos Gomes –<br />
esta voz que soa em nossos corações, musica<strong>da</strong> pela sua própria voz – as suas<br />
obras que se tor<strong>na</strong>ram as representantes lídimas <strong>do</strong> valor artístico <strong>da</strong> raça<br />
brasileira, desta raça boa e forte que tem coração de gigante e coração de<br />
criança cândi<strong>da</strong>, que sabe sorrir e querer bem. O Brasil inteiro sempre vibrará de<br />
orgulho justo e palpitante” (MACEDO, 1940:24-25)<br />
71
Posteriormente, em 1945, Gastão de Bittencourt, em A vi<strong>da</strong> ansiosa e atormenta<strong>da</strong> de um<br />
gênio, se refere a Carlos Gomes como um <strong>do</strong>s maiores defensores de uma música “bem”<br />
brasileira:<br />
“... que sentisse as ema<strong>na</strong>ções <strong>da</strong> terra, as reverberações <strong>da</strong> luz, a lucilação <strong>do</strong>s<br />
astros e os cantos <strong>da</strong>s aves, o me<strong>do</strong>nho rugir <strong>da</strong>s que<strong>da</strong>s d´água deslumbra<strong>do</strong>ras e<br />
grandiosas, tu<strong>do</strong>, enfim, que era em sedução e beleza a sua terra tão ama<strong>da</strong>”<br />
(BITTENCOURT, 1945b: 14).<br />
Como se vê, para Gastão de Bittencourt, Carlos Gomes, que criou uma música “bem<br />
brasileira”, havia sofri<strong>do</strong> a influência <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>do</strong> nosso meio ambiente. Assim, o autor<br />
destaca especialmente os elementos que viriam a estabelecer diferenças fun<strong>da</strong>mentais entre o<br />
Brasil e os outros países europeus: de sua “terra”, <strong>da</strong> “luz, <strong>do</strong>s “astros”, <strong>do</strong> “canto <strong>da</strong>s aves”, <strong>do</strong>s<br />
acidentes <strong>na</strong>turais etc.<br />
Parece clara, portanto, possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> permanência dessa tendência que, expressa <strong>na</strong><br />
historiografia musical em questão, tende a atribuir à influência <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza local a determi<strong>na</strong>ção<br />
<strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des “brasileiras” <strong>na</strong> música de Carlos Gomes.<br />
Este aspecto <strong>da</strong> historiografia dedica<strong>da</strong> ao compositor, ao nosso ver, pode ser, portanto,<br />
caracteriza<strong>do</strong> pelo epíteto atribuí<strong>do</strong> ao compositor por Artur de Mace<strong>do</strong>, acima mencio<strong>na</strong><strong>do</strong>: a<br />
historiografia <strong>do</strong> “cantor <strong>da</strong>s selvas brasileiras” (MACEDO, 1940:24-25).<br />
3.3.3 Crítica ao suposto <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo de Carlos Gomes<br />
Passaremos agora para os comentários em torno de reavaliação <strong>da</strong> contribuição de Carlos<br />
Gomes para a criação de uma música “brasileira”.<br />
Na medi<strong>da</strong> que foram se incrementan<strong>do</strong> os estu<strong>do</strong>s históricos musicais no Brasil,<br />
passan<strong>do</strong> estes a incluir apreciações estritamente relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s ao escrito musical - poden<strong>do</strong><br />
inclusive, eventualmente, contar com análises harmônicas -, parece ter si<strong>do</strong> difícil sustentar a<br />
idéia <strong>da</strong> contribuição ”brasileira” de Carlos Gomes. Desde então, ele tem si<strong>do</strong> questio<strong>na</strong><strong>do</strong> como<br />
um compositor ver<strong>da</strong>deiramente brasileiro, uma vez que se manteve fiel à estética italia<strong>na</strong><br />
oitocentista liga<strong>da</strong> à ópera.<br />
72
Além disso, a música brasileira que se começa a produzir de mea<strong>do</strong>s <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930,<br />
já pode contar com uma definição clara de seus “novos” elementos estruturais, especialmente<br />
pela orientação <strong>da</strong><strong>da</strong> com a produção de Villa-Lobos, e, o <strong>desenvolvimento</strong> <strong>da</strong>s pesquisas<br />
folclóricas em nosso país, que permitiu com que várias melodias tradicio<strong>na</strong>is brasileiros fossem<br />
compila<strong>da</strong>s, e posteriormente, reutiliza<strong>da</strong>s por nossos compositores.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, surgem uma série de considerações que, sem pretender desconsiderar a<br />
importância de Carlos Gomes, pretende ao menos reavaliar a sua ver<strong>da</strong>deira contribuição e sua<br />
posição no rol <strong>do</strong>s “cria<strong>do</strong>res” <strong>da</strong> música brasileira.<br />
Em História <strong>da</strong> Música, de forma simples e direta, Mário de Andrade apresenta Carlos<br />
Gomes como um compositor de óperas italia<strong>na</strong>s e, sem lhe atribui nenhuma caracterização<br />
“<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista”, descreve-o ape<strong>na</strong>s com um “gênio dramático”: “Carlos Gomes está entre os<br />
grandes melodistas <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX. Gênio dramático de força, ele concentra a expressão <strong>na</strong><br />
melodia, como era costume <strong>na</strong> ópera oitocenista” (ANDRADE, 1933:166).<br />
Mais adiante, no entanto, Mário de Andrade apresenta a questão abertamente e, apelan<strong>do</strong><br />
para a idéia <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de histórica, que se dá em função <strong>do</strong> pré-<br />
condicio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> sujeito através de suas experiências particulares, Mário de Andrade,<br />
portanto, realiza a defesa <strong>do</strong> compositor:<br />
“É opinião repisa<strong>da</strong> entre nós que Carlos Gomes não tem <strong>na</strong><strong>da</strong> de musicalmente<br />
brasileiro [...] Mesmo que assim fosse, ele tinha o lugar de ver<strong>da</strong>deiro inicia<strong>do</strong>r<br />
<strong>da</strong> música brasileira porque <strong>na</strong> época dele, o que fez a base essencial <strong>da</strong>s músicas<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, a obra popular ain<strong>da</strong> não dera entre nós a cantiga racial [...] É<br />
ridículo que consideremos como brasileiros os cantos negros, os cantos<br />
portugueses (e até ameríndios!), as Modinhas, as Habaneras e Tangos <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />
XIX, e repudiemos um gênio ver<strong>da</strong>deiro cuja preocupação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista foi<br />
intensa” (ANDRADE, 1933:168).<br />
Não se pretende dizer com isso que esta reavaliação <strong>da</strong> contribuição <strong>do</strong> compositor tenha<br />
acaba<strong>do</strong> definitivamente com a historiografia <strong>do</strong> “cantor <strong>da</strong>s selvas brasileiras”, e nem que parte<br />
<strong>do</strong>s autores havia mu<strong>da</strong><strong>do</strong> definitivamente de opinião e reavalia<strong>do</strong> suas posições. Nós podemos<br />
encontrar um exemplo dessas contradições <strong>na</strong> obra <strong>do</strong> próprio Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, o qual parece<br />
evocar em momentos diferentes tanto a influência quanto a reavaliação crítica <strong>da</strong> contribuição <strong>do</strong><br />
maestro campineiro.<br />
73
Por exemplo, ele diz ser uma <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> brasili<strong>da</strong>de de Carlos Gomes sua “...<br />
imagi<strong>na</strong>ção ardente e prodigiosa abundância melódica” (ALMEIDA, 1936:36). Além disso, que<br />
o maestro campineiro teria si<strong>do</strong>: “Uma <strong>da</strong>s maiores afirmações <strong>do</strong> espírito brasileiro”<br />
(ALMEIDA, 1942:387). Em momento, porém, o autor tor<strong>na</strong>-se mais específico, e avalia a<br />
contribuição <strong>do</strong> compositor <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />
“A glória de Carlos Gomes foi de ter comovi<strong>do</strong> a sensibili<strong>da</strong>de brasileira [sua obra]<br />
viverá como um marco <strong>na</strong> nossa música, o início de um esforço que ele mais pressentiu<br />
<strong>do</strong> que realizou” (ALMEIDA, 1936:37).<br />
Em outro momento, porém, o autor desenvolve sua idéia <strong>da</strong> contribuição de Carlos<br />
Gomes no senti<strong>do</strong> de lhe atribuir o posto de primeiro compositor brasileiro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> romântico:<br />
“O Romantismo [...] não chegara à música até que Carlos Gomes o afirmou gloriosamente”<br />
(ALMEIDA, 1942:371). Numa outra passagem, o autor argumenta que: “... Carlos Gomes não<br />
poderia fazer mais <strong>do</strong> que adivinhar, como adivinhou por vezes o nosso lirismo musical, sem lhe<br />
<strong>da</strong>r contu<strong>do</strong> maior substância” (ALMEIDA, 1942:371). Como se vê, o autor afirma que o<br />
compositor havia adivinha<strong>do</strong> nosso “lirismo”, um termo muito mais abrangente, que não se<br />
compromete a aspectos estruturais nem se apóia <strong>na</strong> suposta influência <strong>do</strong> meio sobre a obra<br />
artística. Portanto, Carlos Gomes é entendi<strong>do</strong> aqui como um “gênio” que, de acor<strong>do</strong> com as<br />
possibili<strong>da</strong>des e as circunstancias de seu tempo, colaborou a seu mo<strong>do</strong> com a “caracterização” <strong>da</strong><br />
música brasileira.<br />
Outros autores, no entanto, tem apela<strong>do</strong> para outra espécie de argumentos para a defesa <strong>da</strong><br />
contribuição de Carlos Gomes, os quais se dirigiam às opiniões simplistas segun<strong>do</strong> as quais<br />
Carlos Gomes seria, meramente, um compositor de música italia<strong>na</strong>, sem valor “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”.<br />
Tais argumentos nos remetem, para as concepções evolucionistas no senti<strong>do</strong> de tomarem<br />
as <strong>na</strong>ções européias, seus costumes e sua cultura, como modelo para o nosso “progresso”.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, o fato de Carlos Gomes ter i<strong>do</strong> à Europa especializar-se foi interpreta<strong>do</strong><br />
como uma decorrência <strong>na</strong>tural <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de civilização <strong>do</strong> nosso país e <strong>do</strong> processo de sua<br />
“formação”.<br />
“... to<strong>da</strong> <strong>na</strong>ção em vias de civilizar-se busca o seu lugar no mun<strong>do</strong> esplendi<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
Arte. O país novo precisa aprender as regras <strong>do</strong> bom-tom impostas pelos centros<br />
<strong>da</strong> Europa. A linguagem musical, vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> precária e rústica imitação sonora,<br />
74
aformoseou-se com requintes de polifonias e riquezas de colori<strong>da</strong>s. A melodia,<br />
grata conquista <strong>do</strong> camponês, <strong>do</strong> caipira, <strong>do</strong> marujo, teve o destino brilhante <strong>do</strong>s<br />
salões, para enfim encimar o edifício monumental <strong>da</strong>s sinfonias românticas. O<br />
folclore – acervo <strong>da</strong>s tradições populares - , antes de tor<strong>na</strong>r-se a fonte <strong>da</strong> arte<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, o princípio cede o passo às composições <strong>do</strong>s mestres absolutos <strong>na</strong><br />
literatura musical. O gênio que emerge <strong>da</strong> cama<strong>da</strong> popular de uma <strong>na</strong>ção<br />
nova,para merecer a admiração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, procura estu<strong>da</strong>r e penetrar a obra <strong>do</strong>s<br />
grandes compositores e, fi<strong>na</strong>lmente, com ela nivelar os próprios lavores. Assim fez<br />
Carlos Gomes”(CERQUEIRA, s.d:4)<br />
Em outra passagem, o mesmo autor sugere que a formação <strong>na</strong> ópera italia<strong>na</strong> seria,<br />
portanto, o complemento necessário que facilitaria a aceitação e repercussão <strong>da</strong> música de uma<br />
jovem <strong>na</strong>ção:<br />
“Ele demonstrou que o ver<strong>da</strong>deiro gênio música não poderia restringir-se à<br />
composição de modinhas ou à exploração de um folclore musical ain<strong>da</strong> indeciso<br />
como o de sua terra, em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> passa<strong>do</strong>; que o aprendiza<strong>do</strong> <strong>na</strong> ópera<br />
italia<strong>na</strong> era então necessário – uma espécie de complemento <strong>da</strong> cultura literária e<br />
histórica, abrin<strong>do</strong> campo mais brilhante e facilitan<strong>do</strong> maior repercussão a obra<br />
<strong>do</strong> compositor oriun<strong>do</strong> de uma <strong>na</strong>ção ain<strong>da</strong> quase desconheci<strong>da</strong> no mun<strong>do</strong><br />
civiliza<strong>do</strong>” (CERQUEIRA, s.d:6).<br />
Paulo Cerqueira, portanto, chega a tratar a atitude de Carlos Gomes, a despeito de seus<br />
interesses pessoais, como ver<strong>da</strong>deiro altruísmo, cujo alcance chegava mesmo a ultrapassar os<br />
limites de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de:<br />
“Como se poderia ser mais brasileiro, mais artista e mais valoroso? Ele ensinou<br />
que a arte musical não tem pátria e compreendeu que um povo a<strong>do</strong>lescente não<br />
pode viver <strong>da</strong> sua música sem a tradição e a cultura necessária. Por isso residiu<br />
longos anos <strong>na</strong> Itália ten<strong>do</strong> empreendi<strong>do</strong> porém várias viagens ao Brasil”<br />
(CERQUEIRA, s.d:6)<br />
Como se pode ver, podemos perceber que a reavaliação <strong>da</strong> contribuição de Carlos Gomes<br />
para a música brasileira <strong>na</strong> historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> é abor<strong>da</strong><strong>da</strong><br />
por vários autores recebe nuances diferente em função disso. No entanto, a despeito <strong>da</strong>s<br />
diferenças, tais questões se articulam dentro <strong>da</strong> problemática que ao nosso ver que caracterizou a<br />
historiografia <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão, a definição <strong>do</strong> “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” em música.<br />
75
3.4 Aspectos <strong>da</strong> historiografia sobre Alexandre Levy<br />
Alexandre Levy é normalmente descrito como um músico refi<strong>na</strong><strong>do</strong>, de boa formação<br />
musical, e que teve uma vi<strong>da</strong> de curta existência; além disso, é comumente tacha<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong><br />
várias expressões, de um <strong>do</strong>s “precursores <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo musical brasileiro”. To<strong>da</strong>s a<br />
assertivas sobre o compositor giram praticamente em torno desses três aspectos.<br />
Ao nosso ver, estes aspectos apontam novamente para a problemática em torno <strong>da</strong><br />
“música <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, uma vez que sobre o compositor foi cria<strong>da</strong> uma aura de “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista<br />
engaja<strong>do</strong>”, sem que, no entanto, fossem apresenta<strong>do</strong>s fun<strong>da</strong>mentos concretos sobre sua<br />
contribuição, os quais, poderiam provir <strong>da</strong> análise musical, ain<strong>da</strong> incipiente <strong>na</strong>quele momento, e<br />
de uma orientação estética modernista mais defini<strong>da</strong>. Além disso, as considerações que se<br />
seguirão sobre Alexandre Levy, soma<strong>da</strong>s às considerações sobre outros compositores,<br />
demonstram as contradições em torno <strong>da</strong> problemática <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l em música.<br />
Guilherme de Mello se refere a estes três aspectos <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de <strong>do</strong> compositor,<br />
ressaltan<strong>do</strong> que ele possuía “... grande poder de invenção e uma educação musica perfeita”<br />
(MELLO, 1908:311). Posteriormente, em 1926, <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> edição de História <strong>da</strong> Música no<br />
Brasil, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> concor<strong>da</strong> com a consideração de Guilherme de Mello, no entanto,<br />
acentua a quali<strong>da</strong>de de folclorista <strong>do</strong> compositor:<br />
Guilherme de Mello aprecia Levy enquanto um compositor de “educação musical<br />
perfeita”, a qual, poderia ter ser mais útil à música brasileira se não tivesse ele morri<strong>do</strong> aos 28<br />
anos de i<strong>da</strong>de (MELLO, 1908:311).<br />
Para Guilherme de Mello, que certamente teve acesso a obras de intelectuais de grande<br />
alcance <strong>na</strong>quela época que haviam a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> as teorias evolucionistas, como Sílvio Romero, a<br />
música brasileira ain<strong>da</strong> não estava definitivamente conforma<strong>da</strong>, pois, entendia esse processo de<br />
forma “orgânica”, a partir <strong>da</strong> interação de seus vários “agentes”. Isso pode ser observa<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
especificação <strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong> autor em A Música <strong>do</strong> Brasil:<br />
“... procurei achar as leis étnicas que presidiram à formação <strong>do</strong> povo, <strong>do</strong> espírito<br />
e <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong> povo brasileiro e de sua música, bem ain<strong>da</strong> como de sua<br />
etnologia; isto é, como o português sobre influência <strong>do</strong> clima americano e em<br />
contato com o índio e o africano se transformou, constituin<strong>do</strong> o mestiço ou o<br />
brasileiro propriamente dito” (MELLO, 1908:8).<br />
76
Esta afirmação nos leva a supor que, para a historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong>s <strong>primeira</strong>s<br />
déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, fortemente impreg<strong>na</strong><strong>da</strong> pelas teorias evolucionistas e representa<strong>da</strong><br />
por Guilherme de Mello, Alexandre Levy, de origem franco-israelita, foi considera<strong>do</strong> para<br />
a música brasileira (especialmente por sua ascendência francesa) o que o português foi<br />
para a cultura brasileira em geral, pois, provinha de uma raça e de uma cultura<br />
“superiores”. Se, no intuito de melhor compreender o discurso <strong>da</strong> historiografia<br />
exemplifica<strong>da</strong> por Guilherme de Mello a<strong>do</strong>tássemos a terminologia utiliza<strong>da</strong> por Silvio<br />
Romero em História <strong>da</strong> Literatura Brasileira, (ROMERO, 1959:49), Alexandre Levy<br />
seria, fi<strong>na</strong>lmente, considera<strong>do</strong> um “agente direto” <strong>da</strong> criação <strong>da</strong> música brasileira<br />
(ROMERO, 1959:49).<br />
Posteriormente, em 1926, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> traça suas considerações sobre o<br />
compositor, as quais apontam para a tendência modernista de o autor:<br />
“Tinha um espírito requinta<strong>do</strong> e <strong>da</strong>í ter trata<strong>do</strong> o folclore de um certo mo<strong>do</strong><br />
superior que não lhe tira em <strong>na</strong><strong>da</strong> o brilho, mas como que esmorece a<br />
<strong>na</strong>turali<strong>da</strong>de. Não impede, porém, que Levy tenha si<strong>do</strong> um apreciável folclorista,<br />
de forte valor musical ...” (ALMEIDA, 1926: 99-100).<br />
Na segun<strong>da</strong> edição de História <strong>da</strong> Música no Brasil, de 1942, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, novamente<br />
ressalta os três aspectos em torno <strong>da</strong> historiografia de Alexandre Levy, destacan<strong>do</strong> seu preparo<br />
musical:<br />
“Revelou-se Alexandre Levy um <strong>do</strong>s nossos mais altos engenhos musicais, mas a<br />
sua vi<strong>da</strong>, corta<strong>da</strong> aos vinte e oito anos, não lhe permitiu a realização que<br />
magnificamente prenunciou o início <strong>da</strong> sua obra” (ALMEIDA, 1942:426).<br />
Em outra passagem o autor prossegue com o argumento <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista em torno <strong>da</strong><br />
contribuição de Alexandre Levy:<br />
“... foi Alexandre Levy um <strong>do</strong>s primeiros a sentir essa ânsia por uma música<br />
brasileira, que só depois se caracterizaria como coisa nossa e livre, hauri<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
terra e unin<strong>do</strong>-se pela cultura á arte universal” (ALMEIDA, 1942: 427).<br />
A exaltação de Alexandre Levy enquanto um compositor refi<strong>na</strong><strong>do</strong>, possui<strong>do</strong>r de técnica<br />
musical (então bastante deficiente entre os compositores de seu tempo) e, sobretu<strong>do</strong>, como<br />
“precursor” <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo brasileiro, decorre <strong>do</strong> discurso <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, que<br />
valoriza <strong>do</strong>s biografa<strong>do</strong>s seus aspectos de “forma<strong>do</strong>res” <strong>da</strong> música brasileira.<br />
77
Por sua vez, em Compêndio de História <strong>da</strong> Música Brasileira, de 1933, Mário de<br />
Andrade afirma com sutil ironia que Alexandre Levy foi “... um anúncio de gênio” (ANDRADE,<br />
1933: 168). No entanto, posteriormente, em Evolução Social <strong>da</strong> Música no Brasil, de 1939, o<br />
autor admite que Alexandre Levy, ao la<strong>do</strong> de Alberto Nepomuceno, pode ser visto como uma <strong>da</strong>s<br />
“... <strong>primeira</strong>s conformações eruditas <strong>do</strong> novo esta<strong>do</strong> de consciência coletivo que se formava <strong>na</strong><br />
evolução social <strong>da</strong> nossa música” (ANDRADE, 1965:30).<br />
O prossegue em outra passagem com o mesmo teor:<br />
“... pon<strong>do</strong> de parte o frágil <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo musical de Carlos Gomes, não parece<br />
ape<strong>na</strong>s ocasio<strong>na</strong>l que justamente <strong>na</strong> terra-<strong>da</strong>-promissão paulista, recémdescoberta,<br />
surgisse o primeiro <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista musical, Alexandre Levy”<br />
(ANDRADE, 1965, 30).<br />
O historiógrafo português Gastão de Bittencourt parece apoiar a opinião quanto à<br />
importância de Levy para a definição de uma música brasileira. Em Alexandre Levy (um grande<br />
compositor paulista), ele trata o compositor como um mestre de “brasili<strong>da</strong>de”, além disso, como<br />
um “grande compositor paulista” (BITTENCOURT, s.d:). Trata-se este texto de uma conferência<br />
publica<strong>da</strong> em Temas de Música Brasileira, sem, indicação de <strong>da</strong>ta, no Rio de Janeiro, pela editora<br />
“A Noite”. Tal conferência foi realiza<strong>da</strong> <strong>na</strong> residência de Do<strong>na</strong> Emma Romero <strong>do</strong>s Santos<br />
Fonseca <strong>da</strong> Câmara Reys, em 1 de março de 1936, e se consistia <strong>da</strong> apresentação <strong>da</strong> biografia <strong>do</strong>s<br />
compositores em concertos.<br />
Deste mo<strong>do</strong>, justifica-se através de uma platéia de paulistas, a reincidência ao longo <strong>do</strong><br />
texto, a qualificação de Alexandre Levy como grande compositor “paulista”.<br />
“Compositor Paulista!<br />
Paulista!<br />
É bem grato evocar aqui o ver<strong>da</strong>deiro significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> vocábulo “paulista”<br />
Ele indica mais <strong>do</strong> que ser filho dessa famosa terra brasileira, onde o progresso é<br />
vertigem renova<strong>do</strong>ra aluci<strong>na</strong>nte [...] Paulista é ser brasileiro cem por cento; é ser<br />
luta<strong>do</strong>r intemerato, que jamais esquece o esforço ingente <strong>do</strong> bandeirante<br />
destemi<strong>do</strong> ... “ etc (BITTENCOURT, s.d:76-77).<br />
Por esse simples exemplo podemos perceber o quanto esteve sujeita ao público a<br />
historiografia musical no Brasil.<br />
78
Gastão de Bittencourt não poupa elogios à Alexandre Levy tão pouco apresenta elementos<br />
concretos sobre suas considerações sobre Levy ter contribuí<strong>do</strong> para a música brasileira. O autor<br />
qualifica Levy como um gênio, “... morto aos 28 anos de i<strong>da</strong>de. E que soberba demonstração de<br />
seu talento nos legou; que obra estupen<strong>da</strong> de cultura musical consegui realizar”<br />
(BITTENCOURT, s.d:83).<br />
Posteriormente, Gastão de Bittencourt reafirma a reputação <strong>do</strong> autor como “protetor <strong>da</strong>s<br />
artes”, segun<strong>do</strong> a expressão utiliza<strong>da</strong> por Caldeira Filho em A música em São Paulo (1954):<br />
“Não foram ape<strong>na</strong>s as obras que deixou ... foi também notável a sua ação notável<br />
no senti<strong>do</strong> de maior divulgação <strong>da</strong> boa música, foi o papel importante que<br />
desempenhou no meio artístico <strong>da</strong> sua época, que agitou de iniciativas arroja<strong>da</strong>s e<br />
de alto valor cultural” (BITENCOURT, 1945:85).<br />
Ao que parece, Gastão de Bittencourt apoiava a estética modernista de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>,<br />
chegan<strong>do</strong> a promovê-la em Portugal em uma série de conferências. Ao que parece o autor tinha<br />
simpatia pelas idéias de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, pois o cita diversas vezes em História breve <strong>da</strong> música<br />
no Brasil (1945). Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, por sua vez, prefacia Temas de Música Brasileira de<br />
Bittencourt, e se refere às quali<strong>da</strong>des <strong>do</strong> autor:<br />
“Gastão de Bittencourt é um amigo fiel <strong>da</strong> música brasileira. Ele a tem estu<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
com penetrante senso crítico, buscan<strong>do</strong> o mistério <strong>da</strong> sua sensibili<strong>da</strong>de e a gênese<br />
<strong>da</strong> sua emoção, através de eruditas conferência, com os quais a vem divulgan<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong> terra ama<strong>da</strong> de Portugal (ALMEIDA 1945:2)<br />
Ao contrário <strong>da</strong> tendência ao elogio, que caracteriza a historiografia <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em<br />
questão, um trabalho de Gelásio Pimenta, publica<strong>do</strong> em 1910, portanto, anterior aos já cita<strong>do</strong>s<br />
aqui, apresenta uma visão mais modesta <strong>da</strong> contribuição de Alexandre Levy para a história<br />
musical brasileira. Trata-se de Alexandre Levy, trabalho apresenta<strong>do</strong> ao Instituto Histórico e<br />
Geográfico de São Paulo, durante a sessão de 20 de setembro de 1910.<br />
Na introdução de seu texto, Gelásio Pimenta afirma que espera que seu trabalho possa ser<br />
útil ao “culto aos grandes homens” (PIMENTA, 1911:7-8). Posteriormente, o autor traça o perfil<br />
de Alexandre Levy sem atribuir-lhe nenhum grande epíteto de impacto. Ao contrário <strong>da</strong><br />
tendência centra<strong>da</strong> <strong>na</strong>o elogio, limita-se a dizer que Alexandre Levy “... não foi propriamente um<br />
gênio” (PIMENTA, 1911:7). No entanto, reconhece que o compositor foi um “... um artista de<br />
grande talento” (PIMENTA, 1911:8).<br />
79
O autor enfatiza que, nos tempos de Alexandre Levy, São Paulo era ain<strong>da</strong> um centro<br />
atrasa<strong>do</strong> em termos culturais, haven<strong>do</strong> grande desinteresse musical <strong>da</strong> parte <strong>do</strong> público. Deste<br />
mo<strong>do</strong>, o texto concentra-se <strong>na</strong> figura <strong>do</strong> compositor enquanto protetor <strong>da</strong>s artes, mau<br />
compreendi<strong>do</strong> pelos seus contemporâneos paulistas (PIMENTA, 1911:9).<br />
Supomos que a ausência de elementos lau<strong>da</strong>tórios no texto de Gelásio Pimenta pode estar<br />
relacio<strong>na</strong><strong>da</strong> ao fato <strong>do</strong> trabalho ter si<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> no Instituto Histórico e Geográfico de São<br />
Paulo, cuja orientação se voltava para a compilação de informações “positivas”. O texto traz<br />
ain<strong>da</strong> uma importante indicação para futuras pesquisas sobre o compositor, pois, segun<strong>do</strong><br />
Pimenta, Alexandre Levy assi<strong>na</strong>va suas colu<strong>na</strong>s no Correio Paulistano com o pseudônimo<br />
“Figarote”.<br />
João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, por sua vez, traz uma peque<strong>na</strong> biografia de Alexandre<br />
Levy em A música em São Paulo (1954). Nestes rápi<strong>do</strong>s apontamentos biográficos, Caldeira<br />
Filho não se concentra nos aspectos “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>listas” relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao compositor, mas em seu<br />
papel enquanto “protetor <strong>do</strong>s artistas”, como um artista inconforma<strong>do</strong> com a apatia <strong>do</strong> público e<br />
pelas condições musicais de São Paulo em seu tempo. Segun<strong>do</strong> Caldeira Filho, Alexandre Levy<br />
sempre “... lutou pela melhoria <strong>da</strong>s condições musicais de seu tempo” (CALDEIRA FILHO,<br />
1954a: 130).<br />
Assim, prossegue o autor:<br />
“... quantas e quantas vezes gritava contra o pouco caso que em S. Paulo se fazia<br />
<strong>do</strong>s artistas que lá iam <strong>da</strong>r concertos. Com o coração de ver<strong>da</strong>deiro amor pela<br />
arte, era o melhor protetor de to<strong>do</strong>s os artistas que pisaram o solo paulista”<br />
(CALDEIRA FILHO, 1954a: 130).<br />
Digno de nota é ênfase que dá Caldeira Filho à qualificação de Alexandre Levy como<br />
um”protetor <strong>da</strong>s artes em São Paulo”, e não em sua contribuição de Alexandre Levy para o<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo musical brasileiro. Assim, ao que nos parece, Caldeira Filho considera-o menos<br />
sobre o aspecto <strong>do</strong> “precursor <strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo brasileiro” <strong>do</strong> que quanto ao de “protetor <strong>do</strong>s<br />
artistas” (CALDEIRA FILHO, 1954a: 130). Isso pode ser uma decorrência <strong>da</strong> delimitação <strong>do</strong><br />
objeto <strong>do</strong> autor, uma vez que esta peque<strong>na</strong> biografia de Levy foi publica<strong>da</strong> em A música em São<br />
Paulo, que é um texto panorâmico que trata exclusivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de em São Paulo.<br />
80
Caldeira Filho refere-se ain<strong>da</strong> à Levy como um “romântico“, “melancólico”, desiludi<strong>do</strong><br />
com as condições musicais de seu tempo: “O <strong>século</strong> XIX fin<strong>da</strong>va sobre a lembrança melancólica<br />
<strong>da</strong> desilusão de Levy (CALDEIRA FILHO, 1954a: 130).<br />
3.5 Aspectos <strong>da</strong> historiografia sobre Henrique Oswald<br />
O primeiro trabalho aqui abor<strong>da</strong><strong>do</strong> que traça considerações sobre Henrique Oswald é<br />
História <strong>da</strong> Música no Brasil, de Guilherme de Mello. O autor apresenta uma visão romantiza<strong>da</strong><br />
<strong>do</strong> compositor, centra<strong>da</strong> no elogio <strong>do</strong> “grande homem”. Segun<strong>do</strong> Guilherme de Mello, Oswald<br />
“... representa o tipo de um sumo sacer<strong>do</strong>te <strong>da</strong> Arte, inspira<strong>do</strong> pelo nosso bon<strong>do</strong>so Deus para<br />
distribui-nos as suas bênçãos celestiais por meio <strong>da</strong> linguagem <strong>do</strong>s sons musicais” (MELLO,<br />
1908:328). Posteriormente, o autor nos diz que “... já não há mais segre<strong>do</strong>s para ele [Henrique<br />
Oswald] <strong>na</strong> ciência <strong>da</strong> harmonia, <strong>do</strong> contraponto e <strong>da</strong>s fugas” (MELLO, 1908:328).<br />
Ao nosso ver a idéia de um “sumo-sacer<strong>do</strong>te <strong>da</strong> arte”, ao nosso ver, evoca a referi<strong>da</strong><br />
compreensão romântica sobre a música e os músicos conforme aponta<strong>da</strong> por Dwight Allen, onde<br />
a música é vista como uma “ciência misteriosa”, e deste mo<strong>do</strong>, possui “leis” e “segre<strong>do</strong>s<br />
imutáveis”, os quais podiam ser “revela<strong>do</strong>s”, “descobertos”, pelos “gênios” (ALLEN, 1962:87).<br />
Na segun<strong>da</strong> edição de sua História <strong>da</strong> Música Brasileira, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> não aban<strong>do</strong><strong>na</strong> a<br />
caracterização de Henrique Oswald como um artista refi<strong>na</strong><strong>do</strong>, no entanto, ele passa enfatizar no<br />
compositor o quê poderíamos chamar de “atitude tolerante” quanto à então nova estética<br />
modernista, a qual, vale lembrar, se formava a partir <strong>da</strong> incorporação <strong>do</strong>s elementos<br />
supostamente “primitivos” oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> obra popular. Assim, Almei<strong>da</strong> diz que Henrique Oswald:<br />
“Foi sempre um espírito aberto e jamais se enquadrou, dentro <strong>da</strong>s tendências pessoais, para<br />
negar ou perturbar os valores novos” (ALMEIDA, 1942:399).<br />
Além disso, Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong> julga benéfica a atuação de Henrique Oswald. Para ele, a<br />
contribuição deste compositor, com seus hábitos e sua cultura acentua<strong>da</strong>mente europeus,<br />
equilibra, dentro de nossa música, os exageros <strong>na</strong>tivistas e primitivistas que pudessem decorrer<br />
<strong>do</strong> nosso “tropicalismo ardente”:<br />
81
“No Brasil, não absorveu as forças dinâmicas <strong>da</strong> nossa imagi<strong>na</strong>ção, a<br />
exuberância <strong>da</strong> terra. Sem que se possa dizer que tivesse reagi<strong>do</strong>, contrabalançou<br />
com a noção de equilíbrio e a sensibili<strong>da</strong>de apura<strong>da</strong> e fi<strong>na</strong> os excessos <strong>do</strong> nosso<br />
tropicalismo ardente” (ALMEIDA, 1942:402)<br />
No Compêndio de História <strong>da</strong> Música Brasileira, de 1933, Mário de Andrade assim<br />
classifica o compositor paulista:<br />
“É a mais completa figura de músico <strong>da</strong> geração dele. Une a uma perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />
de cria<strong>do</strong>r fino, sempre delica<strong>do</strong>, inimigo <strong>do</strong> áspero e <strong>do</strong> ba<strong>na</strong>l, uma técnica muito<br />
larga e perfeitamente assimila<strong>da</strong>” (ANDRADE, 1933:173)<br />
No entanto, num texto escrito anteriormente, em 1933, em função <strong>da</strong> morte <strong>do</strong><br />
compositor, Mário de Andrade critica o não comprometimento <strong>do</strong> compositor com a questão<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e coletiva, atribuin<strong>do</strong> isso ao individualismo <strong>da</strong> estética romântica: “Henrique Oswald,<br />
que podia nos <strong>da</strong>r a sua expressão particular <strong>da</strong> nossa raça, provinha dum epicurismo fatiga<strong>do</strong> e<br />
refi<strong>na</strong><strong>do</strong> por demais pra aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r suas liber<strong>da</strong>des em favor dessa conquista comum de<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de” (ANDRADE, 1963, 169).<br />
Mais adiante, Mário de Andrade continua desenvolven<strong>do</strong> a mesma questão: “Contentou-<br />
se em viver o que individualmente era, sem <strong>na</strong><strong>da</strong> aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r de si, pra se afeiar com as violentas<br />
precarie<strong>da</strong>des <strong>do</strong> povo” (ANDRADE, 1969:170).<br />
João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, por sua vez, <strong>na</strong> breve biografia dedica<strong>da</strong> ao compositor,<br />
publica<strong>da</strong> em A música em São Paulo, de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, Henrique Oswald é<br />
trata<strong>do</strong> como um menino-prodígio, posteriormente, como um compositor refi<strong>na</strong><strong>do</strong> em pleno<br />
<strong>do</strong>mínio de sua técnica e, fi<strong>na</strong>lmente, como o fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> Conservatório Nacio<strong>na</strong>l de Música<br />
(CALDEIRA FILHO, 1954a: 130). Caldeira Filho mencio<strong>na</strong> o concerto promovi<strong>do</strong> por membros<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de paulista<strong>na</strong> em benefício aos Voluntários <strong>da</strong> Pátria, concerto em que tocou Henrique<br />
Oswald quan<strong>do</strong> menino, juntamente com seu professor Gabriel Girau<strong>do</strong>n (CALDEIRA FILHO,<br />
1954a: 130). O autor cita o fato deste ter si<strong>do</strong> o primeiro concerto contrário ao antigo preceito <strong>da</strong><br />
proibição de apresentação de senhoras em concertos públicos. Tal trecho parece ter si<strong>do</strong> cita<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />
Cronologia Musical de São Paulo de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, (CALDEIRA FILHO, 1954a:<br />
130).<br />
As considerações sobre a juventude Henrique Oswald, provavelmente, tiveram base em<br />
outro livro de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, Dois meninos prodígios de outrora em São Paulo, de<br />
82
1952. Este que foi o primeiro livro publica<strong>do</strong> pelo autor, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, surgiu de duas monografias<br />
publica<strong>da</strong>s <strong>na</strong> Revista Colégio, n° 3 e 4, em 1948 (Moci<strong>da</strong>de de Henrique Oswald e O violinista<br />
Dengremont) (RESENDE, 1951:4).<br />
Ambos os biografa<strong>do</strong>s são caracteriza<strong>do</strong>s como jovens virtuoses residentes <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />
São Paulo em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX. Segun<strong>do</strong> Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, o o texto tem como<br />
objetivo “... servir de contribuição para o centenário de Henrique Oswald [e] divulgar melhor a<br />
biografia <strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong> violinista brasileiro [Eugênio Maurício Dengremont]” (RESENDE,<br />
1951:4). Este pode ser considera<strong>do</strong> um exemplo <strong>do</strong> caráter comemorativo atribuí<strong>do</strong> à biografia<br />
por José Honório Rodrigues, quan<strong>do</strong> o propósito <strong>do</strong> texto é celebrar, fazer o elogio de uma<br />
perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de morta.<br />
Em Música e músicos <strong>do</strong> Brasil, de 1950, Luiz Heitor Correa de Azeve<strong>do</strong> en<strong>do</strong>ssa as<br />
opiniões anteriores que consideram Henrique Oswald um compositor descomprometi<strong>do</strong> com a<br />
questão <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, a não ser, aludin<strong>do</strong>-a vagamente em algumas de suas obras (AZEVEDO,<br />
1950:234): Segun<strong>do</strong> o autor, Henrique Oswald foi “... um compositor viven<strong>do</strong> num perío<strong>do</strong> de<br />
intensa campanha <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista e cuja obra se conserva alheia à injunções <strong>do</strong> meio, às sugestões<br />
desta nossa consciência artística em fusão” (AZEVEDO, 1950:234).<br />
Como se viu anteriormente, durante este perío<strong>do</strong> a especifici<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l continuava a<br />
ser vista como determi<strong>na</strong><strong>da</strong> pela influência mesológica e climática, além <strong>da</strong> interação <strong>da</strong>s três<br />
raças. Assim, Luiz Heitor explica as preferências estéticas de Henrique Oswald, bem como seu<br />
temperamento, através <strong>da</strong>s noções de “meio” e “raça”:<br />
“Esse ítalo-germano, puramente francês de espírito, viven<strong>do</strong> <strong>na</strong> Itália, mas <strong>da</strong>n<strong>do</strong><br />
nomes franceses às suas músicas e, em casa [...] exprimin<strong>do</strong>-se de preferência em<br />
francês, era um homem de outro clima, de uma outra paisagem” (AZEVEDO,<br />
1950:236).<br />
Como se pode ver, ao contrário de Re<strong>na</strong>to Almei<strong>da</strong>, que havia considera<strong>do</strong> benéfica a<br />
ação de Henrique Oswald <strong>na</strong> música brasileira, no senti<strong>do</strong> de <strong>da</strong>r-lhe “equilíbrio” e refrear o<br />
“primitivismo”, Luiz Heitor Correia de Azeve<strong>do</strong> afirma que: “A influência de Oswald como<br />
artista, no meio musical brasileiro, fôra nula” (AZEVEDO, 1950:233). Esta consideração se<br />
deve, evidentemente, ao engajamento <strong>do</strong> autor <strong>na</strong> questão <strong>da</strong> criação de uma música “brasileira”<br />
que fosse basea<strong>da</strong> em nossa cultura popular. Nas palavras <strong>do</strong> autor, “... a ausência de<br />
83
características <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is <strong>na</strong> obra de um compositor não constitui nem defeito nem quali<strong>da</strong>de. O<br />
contrário sim, julgo que é quali<strong>da</strong>de, e valiosíssima” (AZEVEDO, 1950:234).<br />
No entanto, após afirmar ser “nula” a influência de Henrique Oswald <strong>na</strong> música brasileira,<br />
Luiz Heitor Correa de Azeve<strong>do</strong> afirma que a música brasileira “... sem Henrique Oswald perde<br />
uma boa parte de sua significação. Com ele conquista um posto avança<strong>do</strong> no conceito universal”<br />
(AZEVEDO, 1950:239).<br />
A despeito <strong>da</strong>s variantes <strong>na</strong> caracterização geral <strong>da</strong> relevância <strong>do</strong> compositor para a<br />
música brasileira, variantes estas encontra<strong>da</strong>s, como se viu, até em um mesmo autor, é possível<br />
afirmar que, à medi<strong>da</strong> em que se delineava mais concretamente a música moder<strong>na</strong> brasileira,<br />
Henrique Oswald foi sen<strong>do</strong> visto ca<strong>da</strong> vez mais como um <strong>do</strong>s “últimos românticos”, cuja<br />
contribuição para a criação <strong>da</strong> música <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l foi irrelevante, a despeito de sua reputação<br />
enquanto artista refi<strong>na</strong><strong>do</strong> e competente.<br />
3.6 Aspectos literários no objeto<br />
Podemos observar duas grandes expressões <strong>da</strong> relação entre a literatura e o nosso objeto.<br />
Em primeiro lugar, o uso de figuras de estilo e linguagem diversas, e em segun<strong>do</strong> lugar, o uso de<br />
dramatizações, ou seja, de tentativas de reconstrução <strong>da</strong> ce<strong>na</strong> <strong>na</strong>rra<strong>da</strong> a partir de um estilo<br />
literário.<br />
Dwight Allen observou que, com a divulgação <strong>da</strong> teoria <strong>do</strong> “grande homem”, surge <strong>na</strong><br />
Europa uma série de textos que tiveram em comum a elevação de heróis. Desde então a história<br />
<strong>da</strong> música tem si<strong>do</strong> escrita em torno <strong>do</strong>s grandes homens (ALLEN, 1969:87).<br />
No Brasil, segun<strong>do</strong> apontou Antônio Alexandre Bispo, o uso de formas espirituosas, <strong>do</strong><br />
jogo de palavras e de outros recursos utiliza<strong>do</strong>s para captar a simpatia <strong>do</strong> leitor (como o humor e<br />
a ironia) foram as principais marcas dessa influência literária <strong>na</strong> historiografia musical (BISPO,<br />
1985:22).<br />
Exemplos <strong>do</strong> primeiro caso são mais abun<strong>da</strong>ntes, como, por exemplo, perífrases [“...<br />
Carlos Gomes, o genial cantor <strong>da</strong>s selvas brasileiras” (MACEDO, 1940:13)], antíteses [A<br />
garganta rude <strong>do</strong> selvagem e os lábios eruditos <strong>do</strong>s padres (CALDEIRA FILHO, 1954:129)],<br />
84
metáforas [“... aqueles cantos e aqueles hinos lhes pareciam [aos indíge<strong>na</strong>s] vozes celestiais”<br />
(ALMEIDA, 1926:189)].<br />
Dentre os exemplos <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> caso, vale destacar a passagem em que Clóvis de Oliveira<br />
<strong>na</strong>rra sobre o momento em que André <strong>da</strong> Silva Gomes aceita o convite <strong>do</strong> bispo de São Paulo de<br />
ir morar no Brasil:<br />
“... Dom Manuel, ain<strong>da</strong> em Lisboa, convi<strong>do</strong>u o maestro e Tenente-Coronel André<br />
<strong>da</strong> Silva Gomes para acompanha-lo, e em São Paulo, criar o coro <strong>da</strong> Sé e regê-lo.<br />
André <strong>da</strong> Silva Gomes não meditou o convite. Não pensou que ia deixar Lisboa, a<br />
grande capital européia; não refletiu sobre o seu futuro com o grande músico nem<br />
sobre a possível glória que o porvir lhe prometia seguramente; não imaginou que<br />
iria ficar to<strong>do</strong> o resto de sua vi<strong>da</strong> longe <strong>da</strong> pátria, não pensou em <strong>na</strong><strong>da</strong>, <strong>na</strong><strong>da</strong>! ...”<br />
(OLIVEIRA, 1954:12).<br />
Como se vê, o trecho tem níti<strong>do</strong> interesse de chamar atenção <strong>do</strong> autor para as possíveis<br />
angústias <strong>do</strong> biografa<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong>-o num ver<strong>da</strong>deiro herói.<br />
Jolumá Brito, por sua vez, em "Carlos Gomes" - ("O Tonico de Campi<strong>na</strong>s"), de 1936,<br />
dramatiza a ocasião em que Carlos Gomes, em São Paulo, decide ir ao Rio de Janeiro se<br />
apresentar ao Impera<strong>do</strong>r D. Pedro I:<br />
“ Depois <strong>do</strong> concerto houve congresso república onde se hospe<strong>da</strong>ra Antonio<br />
Carlos. O piano o champagne os ditos espirituosos, o calor, <strong>do</strong> entusiasmo<br />
contagioso transtor<strong>na</strong>ra as suas cabeças e os corações <strong>da</strong>quela chusma de<br />
rapazes:<br />
- Para o Rio, Carlos<br />
- Vai, Antonio Carlos.<br />
-Vai, Gomes.<br />
- Vou mesmo – bra<strong>do</strong>u ele com o olhar abrasa<strong>do</strong> e o rosto fulgurante” (BRITO,<br />
1936:27).<br />
Paulo Cerqueira, por sua vez, também apresenta um trecho em que dramatiza os últimos<br />
momentos de vi<strong>da</strong> de Carlos Gomes:<br />
“Os seus lábios trêmulos murmuram o <strong>do</strong>ce nome Adeli<strong>na</strong>... Passa-lhe pela mente<br />
a lembrança <strong>do</strong>s dias venturosos de noiva<strong>do</strong> e de casamento, m Milão, com<br />
Adeli<strong>na</strong> Peri, jovem e culta musicista, que lhe deu cinco filhos, alegria <strong>do</strong> seu lar<br />
[...] Já velho, a lembrança de um passa<strong>do</strong> de glórias lhe aquecia o coração aflito”<br />
(CERQUEIRA, s.d:22)<br />
85
Uma outra evidência dessa influência literária ao nosso ver é a identificação <strong>do</strong> artista<br />
biografa<strong>do</strong> como herói. No Brasil, vários autores se referiam aos perso<strong>na</strong>gens <strong>da</strong> história de nossa<br />
música como heróis cria<strong>do</strong>res, forma<strong>do</strong>res <strong>da</strong> música brasileira. Por exemplo, para Re<strong>na</strong>to<br />
Almei<strong>da</strong>, os jesuítas eram “... abnega<strong>do</strong>s forma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> nosso país...” (ALMEIDA, 1926:188); e<br />
Carlos Gomes, por sua vez, “... estava talha<strong>do</strong> para ser o cria<strong>do</strong>r <strong>da</strong> música brasileira...”<br />
(ALMEIDA, 1926:85). Na visão de Clóvis de Oliveira, o fato de ser “bom católico” e de possuir<br />
um “ânimo forte” permitiu a André <strong>da</strong> Silva Gomes aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r, segun<strong>do</strong> ele, sua carreira de<br />
glórias em Lisboa e aceitar o convite <strong>do</strong> bispo de São Paulo para, fi<strong>na</strong>lmente “... encetar a tarefa<br />
cultural que imortalizou o seu nome ligan<strong>do</strong>-o a história de São Paulo e, quiçá, a <strong>do</strong> Brasil”<br />
(OLIVEIRA, 1954:13).<br />
Este traço literário parece ter si<strong>do</strong> condicio<strong>na</strong><strong>do</strong> pelo próprio sistema de produção e<br />
divulgação <strong>da</strong> historiografia musical, demasia<strong>da</strong>mente restrito a imprensa jor<strong>na</strong>lística, e por tanto<br />
volta<strong>do</strong> a um público leigo.<br />
3.7 Historiografia <strong>do</strong>s “heróis”<br />
Dwight Allen apontou para o fato de que o “grande homem” foi o conceito pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte<br />
<strong>na</strong> historiografia musical <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX (ALLEN, 1969:87). Ele dá o exemplo de Georg<br />
Kiesewetter, autor de History of the Modern Music of Western Music, para o qual “... o grande<br />
homem ditava a época” (ALLEN, 1969:87). O “grande homem” a que se refere Allen é também<br />
o homem público, reconheci<strong>do</strong> e admira<strong>do</strong> por multidões devi<strong>do</strong> a suas quali<strong>da</strong>des geniais<br />
(ALLEN, 1969:87).<br />
Encontramos alguns paralelos desta tendência <strong>na</strong> própria historiografia geral brasileira.<br />
Conforme apontou José Honório Rodrigues, no Brasil, a produção histórica tem se caracteriza<strong>do</strong><br />
pela ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong>s “homens ilustres” e em sua respectiva contribuição no<br />
engrandecimento <strong>da</strong> <strong>na</strong>ção. “Na historiografia brasileira pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong> a busca pelo fato pessoal, a<br />
ação pessoal e seus efeitos positivos ou negativos” (RODRIGUES, 1969:30). O autor explica esta<br />
configuração a partir <strong>da</strong>s incli<strong>na</strong>ções <strong>da</strong> “mentali<strong>da</strong>de básica” luso-brasileira:<br />
“Um <strong>do</strong>s traços <strong>do</strong> caráter luso-brasileiro está <strong>na</strong> ênfase que no mun<strong>do</strong> lusobrasileiro<br />
se coloca <strong>na</strong>s relações pessoais e simpáticas e não <strong>na</strong>s impessoais. Ora,<br />
esse perso<strong>na</strong>lismo de tão nefastas conseqüências políticas haveria de conduzir ao<br />
86
iografismo histórico, ao estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>des e <strong>do</strong>s heróis, ti<strong>do</strong>s como os<br />
condutores e elabora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> história ...” (RODRIGUES, 1978:33).<br />
No entanto, para além de uma incli<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> caráter <strong>da</strong>s relações, o elogio ao “grande<br />
homem” foi incentiva<strong>do</strong> no Brasil por intelectuais, como Sílvio Romero, segun<strong>do</strong> o qual: “O<br />
amor pelos nossos grandes homens, o culto de nosso passa<strong>do</strong>, o entusiasmo pelo presente, serão<br />
perenes fontes de eter<strong>na</strong> inspiração” (ROMERO,1911:31).<br />
Percebemos esta incli<strong>na</strong>ção <strong>na</strong> historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
sobre São Paulo, especialmente em relação ao tom apologético.<br />
Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, por exemplo, espera que sua monografia Dois meninos<br />
prodígios de outrora em São Paulo, possa “... servir de contribuição para o centenário de<br />
Henrique Oswald [...] e divulgar melhor a biografia <strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong> violinista Dengremont”<br />
(RESENDE, 1951:3).<br />
Fator determi<strong>na</strong>nte para este configuração é a questão <strong>da</strong> “uni<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, e<br />
conseqüentemente, <strong>da</strong> criação de uma música “brasileira”, questão pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte durante to<strong>da</strong> a<br />
<strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> entre os principais escritores <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, e que, fi<strong>na</strong>lmente,<br />
condicionou a escrita <strong>da</strong> história <strong>da</strong> música à procura <strong>do</strong>s supostos “forma<strong>do</strong>res” <strong>da</strong> música<br />
brasileira. Segun<strong>do</strong> Dante Moreira Leite, essa procura decorre <strong>da</strong> exigência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista por uma<br />
continui<strong>da</strong>de histórica e um passa<strong>do</strong> comum, o qual “... freqüentemente se aproxima <strong>do</strong> mito”<br />
(LEITE, 2002:45).<br />
Deste mo<strong>do</strong>, justifica-se a biografia enquanto mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte <strong>na</strong> historiografia<br />
musical em questão.<br />
3.8 O impacto <strong>do</strong> centenário de <strong>na</strong>scimento de Carlos Gomes (1836-1936)<br />
Como se pôde ver anteriormente, a maior parte <strong>do</strong>s escritos sobre Carlos Gomes<br />
produzi<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong> em questão foi publica<strong>da</strong> ten<strong>do</strong> em vista o centenário de Carlos Gomes.<br />
Isto aponta <strong>do</strong>is fatos principais, o de não haver pesquisas sistemáticas sobre o compositor <strong>na</strong><br />
<strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, e que tal produção, para usar a expressão de José Honório<br />
Rodrigues, trata-se de uma literatura “comemorativa” (RODRIGUES, 1978:204).<br />
87
Ao nosso ver, além <strong>da</strong> ausência de pesquisa musical sistemática e científica no Brasil <strong>na</strong>s<br />
<strong>primeira</strong>s déca<strong>da</strong>s <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, tal fato foi uma decorrência <strong>da</strong> preponderância <strong>da</strong> questão<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l no perío<strong>do</strong> em questão, pois, conforme estu<strong>da</strong><strong>do</strong>, as considerações <strong>do</strong>s autores circulam<br />
em torno, principalmente, <strong>da</strong> contribuição de Carlos Gomes <strong>na</strong> formação de uma musica<br />
“<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”.<br />
3.9 O impacto <strong>da</strong>s comemorações <strong>do</strong> Quarto Centenário de São Paulo (1554-1954)<br />
As comemorações em torno <strong>do</strong> Quarto Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de de São Paulo estimularam<br />
significativamente o surgimento de publicações sobre a música <strong>na</strong> região. Em 1954, Carlos<br />
Pentea<strong>do</strong> de Resende publica O compositor d´O Guarany, Fragmentos para uma história <strong>da</strong><br />
música em São Paulo, Tradições musicais <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito de São Paulo, Cronologia<br />
Musical de São Paulo (1800-1870). Este último, segun<strong>do</strong> João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho, esta<br />
Cronologia é “... obra completa no momento quanto às fontes atualmente conheci<strong>da</strong>s”<br />
(CALDEIRA FILHO, 1954:8). O próprio Caldeira Filho publica no dia 25 de janeiro de 1954 o<br />
artigo A música em São Paulo, no suplemento literário de O Esta<strong>do</strong> de S. Paulo, artigo cujo<br />
mérito, ao nosso ver, é se constituir uma <strong>da</strong>s <strong>primeira</strong>s tentativas de se abor<strong>da</strong>r a totali<strong>da</strong>de <strong>do</strong><br />
<strong>desenvolvimento</strong> musical <strong>na</strong> ci<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />
Segun<strong>do</strong> o autor, <strong>na</strong>quele momento, três grandes aspectos chamam a atenção <strong>do</strong><br />
estudioso que deseja traçar um panorama <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> musical em São Paulo: o musicológico, o <strong>da</strong><br />
composição e o <strong>da</strong> educação (CALDEIRA FILHO, 1954:131). E assim, neste texto, o autor<br />
identifica em vários momentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> musical em São Paulo os principais indivíduos que teriam<br />
contribuí<strong>do</strong> para o <strong>desenvolvimento</strong> e conhecimento <strong>da</strong> música “brasileira”. Embora mantenha<br />
seu teor apologético em relação às perso<strong>na</strong>gens cita<strong>da</strong>s, o autor representa um momento em que a<br />
música de São Paulo passa, muito modestamente, a se constituir um objeto autônomo de interesse<br />
e estu<strong>do</strong>.<br />
Além <strong>da</strong>s contribuições de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende e Caldeira Filho, destaca-se, no<br />
mesmo ano de 1954, a monografia de Clóvis de Oliveira André <strong>da</strong> Silva Gomes, o mestre de<br />
capela <strong>da</strong> Sé de São Paulo. Embora se trate de uma <strong>primeira</strong> biografia de um compositor que<br />
atuou em São Paulo entre a transição <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII e XIX, o autor deu igual ênfase a outros<br />
88
aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> biografa<strong>do</strong>, não se pretenden<strong>do</strong> escrever, ao que parece, um trabalho<br />
exclusivamente de historiografia musical.<br />
Nas palavras <strong>do</strong> próprio autor: “É o passa<strong>do</strong> de S. Paulo que historiamos ao realçar<br />
essa figura que só a posteri<strong>da</strong>de caberia fazer-lhe justiça e coloca-lo no lugar de honra de<br />
nossos homens ilustres” (OLIVEIRA, 1954:9).<br />
Com se pode observar, <strong>do</strong>s seis trabalhos publica<strong>do</strong>s por Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende<br />
abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s nesta pesquisa, cinco deles foram publica<strong>do</strong>s em 1954. Além desses, destacamos o<br />
artigo de Caldeira Filho A música em São Paulo, e de Clóvis de Oliveira O mestre de capela <strong>da</strong><br />
Sé de São Paulo, que também foram escritos ten<strong>do</strong> em vista as comemorações <strong>do</strong> Quarto<br />
Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de.<br />
Tal fato nos leva a crer que a historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
sobre a prática musical em São Paulo nos <strong>século</strong>s XVI-XIX possui caráter circunstancial e<br />
comemorativo.<br />
3.10 O esboço de uma mu<strong>da</strong>nça paradigmática<br />
Podemos perceber duas grandes linhas <strong>da</strong> pesquisa histórica em música, as quais ao<br />
apresentam maior ou menor grau de envolvimento com a questão <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. A <strong>primeira</strong> delas, cuja<br />
meto<strong>do</strong>logia parece ter si<strong>do</strong> basicamente a pesquisa bibliográfica, é caracteriza<strong>da</strong> pela procura<br />
<strong>do</strong>s supostamente considera<strong>do</strong>s forma<strong>do</strong>res <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, ou simplesmente, <strong>do</strong>s “homens<br />
ilustres”, ou pela afirmação de uma música brasileira basea<strong>da</strong> <strong>na</strong> fusão <strong>da</strong>s três raças (branca,<br />
amarela e negra, com a preponderância <strong>da</strong> <strong>primeira</strong>).<br />
Guilherme de Mello, representante desta tendência, sintetiza sua concepção de pesquisa<br />
histórica em música <strong>na</strong> seguinte passagem:<br />
“Há <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s, diz Edmond Scherrer, de escrever a história artística e literária<br />
de um povo: pender para considerações gerais, referir os efeitos às causas,<br />
distinguir, classificar; ou então tomar por alvo este mun<strong>do</strong> de artistas e escritores<br />
<strong>do</strong> meio que tão grandes coisas produziu, procurar surpreender estes homens em<br />
sua vi<strong>da</strong> de to<strong>do</strong> dia, desenhan<strong>do</strong>-lhes a fisionomia e recolher as picantes<br />
ane<strong>do</strong>tas ao seu respeito. Foi, pois, <strong>na</strong> observância destes mo<strong>do</strong>s que procurei<br />
achar as leis eter<strong>na</strong>s que presidiram à formação <strong>do</strong> gênio, <strong>do</strong> espírito, e <strong>do</strong><br />
89
caráter <strong>do</strong> povo brasileiro e de sua música, bem ain<strong>da</strong> como de sua etnologia; isto<br />
é, como o povo português, sob a influência <strong>do</strong> clima americano, em contato com o<br />
índio e o africano se transformou, constituin<strong>do</strong> o mestiço ou o brasileiro<br />
propriamente dito” (MELO, 1908:8).<br />
Grande parte <strong>da</strong> produção historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
insere-se <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> linha, devi<strong>do</strong> a preponderância <strong>da</strong> questão <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e ao pré-<br />
condicio<strong>na</strong>mento <strong>da</strong> historiografia brasileira em geral de ser realiza<strong>da</strong> em torno de grandes<br />
homens. Segun<strong>do</strong> José Honório Rodrigues: “Na historiografia brasileira pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong> a busca pelo<br />
fato pessoal, a ação pessoal e seus efeitos positivos ou negativos” (RODRIGUES, 1969:30).<br />
Além disso, o autor justifica o caso <strong>da</strong> tendência <strong>da</strong> historiografia para a crônica em<br />
detrimento <strong>da</strong> história: “Nos países mais modestos <strong>na</strong> sua força econômica, insuficientes <strong>na</strong><br />
educação, com uma minoria <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte alie<strong>na</strong><strong>da</strong>, não só é insignificante a produção <strong>do</strong> fato e<br />
atos, como realmente não produzem história, mas crônica” (RODRIGUES, 1969:32).<br />
A partir <strong>do</strong>s trabalhos compilatórios de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, podemos perceber<br />
uma maior preocupação com a pesquisa musical em São Paulo. Como se viu anteriormente, três<br />
trabalhos <strong>do</strong> autor se prestam a compilar informações, como por exemplo, Cronologia Musical de<br />
São Paulo, Fragmentos para uma história <strong>da</strong> música em São Paulo, transição de uma perspectiva<br />
jor<strong>na</strong>lístico-literária para uma perspectiva científica. Assim, a segun<strong>da</strong> perspectiva, a que<br />
chamamos compilatória, apresenta, ao nosso ver, uma maior preocupação meto<strong>do</strong>lógica com o<br />
levantamento, organização e divulgação de informações sobre o passa<strong>do</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Além disso,<br />
ela se apresenta como uma tentativa, ain<strong>da</strong> bastante modesta, de alargamento <strong>do</strong> objeto, através<br />
<strong>do</strong> interesse pela música de anterior ao <strong>século</strong> XIX. Inclui-se nesta segun<strong>da</strong> perspectiva o<br />
trabalho Carlos Pentea<strong>do</strong> de Rezende, o qual, pareceu ser o historiógrafo mais preocupa<strong>do</strong> com a<br />
organização de pesquisas mais amplas e sistematiza<strong>da</strong>s sobre o passa<strong>do</strong> musical <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São<br />
Paulo.<br />
A transição de uma perspectiva jor<strong>na</strong>lística para uma compilatória, que falamos acima,<br />
não se deu, evidentemente, de forma radical e mesmo de forma consciente entre seus autores.<br />
Havia ape<strong>na</strong>s uma preocupação maior com o levantamento e organização de novas informações,<br />
como por exemplo, Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, que dizia em Fragmentos para uma História <strong>da</strong><br />
Música em São Paulo: “Compendiei e sistematizei, ano por ano, uma infini<strong>da</strong>de de fatos e<br />
notícias que se achavam dispersas em publicações <strong>da</strong>s mais diferentes origens”. (RESENDE,<br />
1954:195). Além disso, a crítica sobre o objeto biográfico já vinha sen<strong>do</strong> realiza<strong>da</strong>, por exemplo,<br />
90
por Mário de Andrade, para o qual, com as biografias fazia-se “... uma história <strong>do</strong>s músicos, e<br />
não, <strong>da</strong> música” (ANDRADE, 1963:360-361).<br />
Ao nosso ver estas novas preocupações com a compilação e a organização de informações<br />
não representam uma “evolução científica” <strong>na</strong> historiografia musical <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, pois o que se<br />
procurava resolver era a carência e a inexatidão <strong>da</strong>s informações disponíveis; além disso, o<br />
caráter literário, que não pertence à linguagem específica de uma ciência, ain<strong>da</strong> era uma<br />
característica desejável em um texto historiográfico-musical neste momento. Caldeira Filho, por<br />
exemplo, nos diz no prefácio de Dois meninos prodígios de outrora em São Paulo (1951), de<br />
Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende, que o autor, além de possuir “discernimento crítico” e “criteriosa<br />
honesti<strong>da</strong>de”, “... é suficientemente artista para <strong>da</strong>r à sua exposição cui<strong>da</strong><strong>da</strong> forma literária”<br />
(CALDEIRA FILHO, 1951:3).<br />
Os trabalhos de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende referência de Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende no<br />
trabalho Fragmentos para uma história <strong>da</strong> música em São Paulo (1954), que, vale lembrar, em<br />
relação ao gênero, é semelhante à Cronologia Musical Paulista, <strong>do</strong> mesmo autor, também<br />
publica<strong>do</strong> em 1954, ano <strong>da</strong>s comemorações <strong>do</strong>s 400 anos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Paulo (1554-1954).<br />
Outras evidências apontam para o surgimento de uma nova perspectiva meto<strong>do</strong>lógica a<br />
partir <strong>do</strong> início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950, quan<strong>do</strong> se começava a esboçar a pesquisa sistemática em São<br />
Paulo com Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende.<br />
Graças a interessante polêmica entre Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende e Jolumá Brito em torno<br />
de Carlos Gomes, podemos perceber, no discurso <strong>do</strong> primeiro, uma perspectiva a partir <strong>da</strong> qual se<br />
delineava uma nova noção de pesquisa histórico-musical sobre São Paulo, orienta<strong>da</strong> para a busca<br />
de provas, fatos, <strong>do</strong>cumentos, diferentemente <strong>da</strong> historiografia fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no elogio <strong>do</strong>s grandes<br />
“heróis” <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, a <strong>na</strong> crônica <strong>da</strong> autoria de supostas autori<strong>da</strong>des:<br />
“... em história o que vale é sempre a melhor prova, o melhor <strong>do</strong>cumento. Os fatos<br />
individuais e sociais de outrora podem e devem ser revistos à luz de novos<br />
elementos, desde que em torno deles pairem dúvi<strong>da</strong>s e incorreções. É missão <strong>do</strong><br />
historia<strong>do</strong>r procurar a Ver<strong>da</strong>de, onde quer que ela esteja. Descoberta, apura-la,<br />
esquadrinha<strong>da</strong>, será ti<strong>da</strong> em conta, com definitiva, enquanto 'não' surgir alguém,<br />
ou um novo <strong>do</strong>cumento, que prove o contrario. A História é, assim, uma ciência<br />
eminentemente perfectível. Não há historia<strong>do</strong>r que não tenha cometi<strong>do</strong>, pelo<br />
menos uma vez, em sua carreira, um equívoco, um erro, uma omissão. Errar não é<br />
privilegio, nem des<strong>do</strong>uro de ninguém: faz parte <strong>da</strong> nossa frágil condição huma<strong>na</strong>”<br />
(RESENDE, 1954d).<br />
91
Em outro momento, ao criticar a obra de Jolumá Brito, Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende deixa<br />
transparecer a necessi<strong>da</strong>de então senti<strong>da</strong> pelos historiógrafos de se inserirem no texto elementos<br />
eluci<strong>da</strong>tivos como notas de ro<strong>da</strong>-pé e indicação bibliográfica:<br />
“Acontece, to<strong>da</strong>via, que o Sr. Jorumá Brito não é historia<strong>do</strong>r. Levou, afirma ele,<br />
cerca de dez anos pesquisan<strong>do</strong> a vi<strong>da</strong> de Carlos Gomes, para enfim lançar, em<br />
1936, pela Livraria Editora Record, de S. Paulo, o seu livro "Carlos Gomes" - ("O<br />
Tonico de Campi<strong>na</strong>s"). Trata-se de um romance, ou melhor, de uma <strong>na</strong>rrativa<br />
romancea<strong>da</strong>, com um prefácio lau<strong>da</strong>tório, sem notas ao pé <strong>da</strong> pági<strong>na</strong>, sem<br />
citações e sem bibliografia fi<strong>na</strong>l. A obra teve o mérito de servir às comemorações<br />
<strong>do</strong> cente<strong>na</strong> rio de <strong>na</strong>scimento de Carlos Gomes”(RESENDE, 1954:) .<br />
Em outro trabalho, o autor afirma que as notas de ro<strong>da</strong>pé encontra<strong>da</strong>s em seu trabalho: “...<br />
minuciosas em demasia, dirão alguns – eluci<strong>da</strong>m e garantem a autentici<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s fatos e<br />
comentários <strong>do</strong> texto, fornecen<strong>do</strong>, outrossim, subsídios necessários aos estudiosos” (RESENDE,<br />
1954e: 12).<br />
Em outro momento, o autor passa a enfatizar a necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> acúmulo de material<br />
factual para se construir a história musical em São Paulo, apresentan<strong>do</strong> a idéia que se tor<strong>na</strong>rá,<br />
posteriormente, a tônica <strong>da</strong> pesquisa musicológica no Brasil (DUPRAT, 1972:101):<br />
“Nomes, <strong>da</strong>tas, pequenos fatos, tu<strong>do</strong> isso bagatelas, lê levarmos em consideração<br />
os grandes lineamentos <strong>da</strong> historia social ou individual. Mas é com tijolos que se<br />
constroem os grandes edifícios. E se os tijolos forem frágeis, inconsistentes, ou<br />
ape<strong>na</strong>s mal coloca<strong>do</strong>s, ai <strong>do</strong>s edifícios!” (RESENDE, 1954d).<br />
Em Tradições musicais <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito de São Paulo, mais uma vez, Carlos<br />
Pentea<strong>do</strong> de Resende apresenta tal perspectiva basea<strong>da</strong> <strong>na</strong> busca de uma suposta “ver<strong>da</strong>de<br />
histórica”:<br />
“Este não é um livro de imagi<strong>na</strong>ção, escrevi-o basean<strong>do</strong>-me em pesquisa próprias<br />
e em fontes seguras. A ver<strong>da</strong>de histórica foi colhi<strong>da</strong> nos jor<strong>na</strong>is de época,<br />
publicações acadêmicas, revistas antigas, cartas e <strong>do</strong>cumentos e também através<br />
de uns poucos depoimentos pessoais” (RESENDE, 1954e: 11-12).<br />
Como se vê tais considerações apontam para a tentativa de uma maior organização <strong>da</strong>s<br />
pesquisas musicais sobre São Paulo e para a tentativa de se vencer a ausência de informações<br />
disponíveis sobre o passa<strong>do</strong> musical <strong>da</strong> região.<br />
92
4. Considerações fi<strong>na</strong>is<br />
A análise <strong>da</strong>s várias facetas <strong>do</strong> objeto nos leva a afirmar que grande parte <strong>da</strong> historiografia<br />
em questão apresenta relação com a problemática <strong>da</strong> musica “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”. Exceto pela<br />
historiografia sobre a atuação jesuítica e o episódio <strong>do</strong> Hino <strong>da</strong> Independência, os demais temas<br />
relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s a historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong> sobre <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
musical em São Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e <strong>XX</strong> constituem-se de objetos biográficos, <strong>do</strong>s quais<br />
grande parte se concentra em torno <strong>do</strong>s seguintes compositores: André <strong>da</strong> Silva Gomes, Carlos<br />
Gomes, Alexandre Levy, e Henrique Oswald.<br />
Nosso estu<strong>do</strong> nos leva a conclusão de que a pre<strong>do</strong>minância desta configuração é<br />
justifica<strong>da</strong> pela própria história <strong>da</strong> pesquisa histórica no Brasil, marca<strong>da</strong> pela busca de elementos<br />
biográficos, pequenos fatos, e pela <strong>na</strong>rrativa sobre a vi<strong>da</strong> de “homens ilustres”. Também foi<br />
observa<strong>do</strong> um paralelo entre esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de e a historiografia européia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> segun<strong>da</strong><br />
<strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX, marca<strong>da</strong> pelo “grande homem”.<br />
Dentre as tendências <strong>do</strong> pensamento brasileiro que ao nosso ver se repercutiram no objeto<br />
em questão destacamos o “evolucionismo”, especialmente presente <strong>na</strong> historiografia musical<br />
sobre a atuação <strong>do</strong>s jesuítas, e que se evidencia a partir <strong>do</strong> uso de conceitos como “primitivo”,<br />
“inferior”, “selvagem” etc, consideran<strong>do</strong> o negro e o índio como indivíduos de “raças inferiores”,<br />
e o português como “raça” superior. Tais considerações acabam por evidenciar a ideologia<br />
<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte no momento caracteriza<strong>da</strong> sobretu<strong>do</strong> pelo etnocentrismo <strong>da</strong>s teorias raciais.<br />
Foi possível observar <strong>na</strong> historiografia <strong>do</strong>s jesuítas certas aproximações entre a idéia de<br />
civilização com a idéia de cristianização, e em conseqüência disso, de formação <strong>do</strong> povo e <strong>da</strong><br />
cultura brasileiros basea<strong>da</strong> <strong>na</strong> cultura européia.<br />
Também liga<strong>do</strong> às tendências evolucionistas através <strong>da</strong> idéia <strong>da</strong> influência mesológica<br />
sobre os indivíduos, é possível identificar no objeto em questão a presença de um “<strong>na</strong>turalismo”<br />
<strong>na</strong> caracterização <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des “brasileiras” <strong>do</strong>s compositores supostamente responsáveis pela<br />
criação de uma música “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”. Segun<strong>do</strong> esta concepção, os artistas brasileiros seriam<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is “a medi<strong>da</strong> em que se “influenciassem” pela <strong>na</strong>tureza brasileira. Antonio Alexandre<br />
93
Bispo, que se refere a esse fenômeno por “imperativo ambiental” (BISPO, 1983:22), enfatiza os<br />
aspectos literários deste fenômeno. No entanto, segun<strong>do</strong> demonstra<strong>do</strong> neste trabalho, o referi<strong>do</strong><br />
fenômeno foi motiva<strong>do</strong> pela exigência de se explicar e justificar os elementos “<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is” <strong>da</strong><br />
contribuição <strong>do</strong>s diversos compositores abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s.<br />
De acor<strong>do</strong> com o estu<strong>da</strong><strong>do</strong>, <strong>na</strong> transição <strong>do</strong> <strong>século</strong> XIX para o <strong>século</strong> <strong>XX</strong>, a pesquisa<br />
histórica em nosso país limitou-se a estu<strong>do</strong>s circunstanciais. Observamos um paralelo com o<br />
objeto ao perceber que grande parte <strong>do</strong>s trabalhos produzi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong>,<br />
sobre a prática musical em São Paulo entre os <strong>século</strong>s XVI e XIX, gravita em torno de <strong>da</strong>tas<br />
comemorativas, como por exemplo, o centenário de <strong>na</strong>scimento de Carlos Gomes (1836-1936) e<br />
(MARQUES JÚNIOR, 1936), (SEIDL, 1935), (VIERA, 1936), (CARVALHO, 1935), (BRTITO,<br />
1936), (ALMEIDA, 1936). Dois seis trabalhos publica<strong>do</strong>s por Carlos Pentea<strong>do</strong> de Resende<br />
abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s neste trabalho, cinco foram publica<strong>do</strong>s em 1954. Além disso, A música em São Paulo,<br />
de João <strong>da</strong> Cunha Caldeira Filho e O mestre de capela <strong>da</strong> Sé de São Paulo, de Clóvis de Oliveira,<br />
também foram escritos ten<strong>do</strong> em vista as comemorações <strong>do</strong> Quarto Centenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de.<br />
Tal fato nos leva a crer que a historiografia produzi<strong>da</strong> <strong>na</strong> <strong>primeira</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XX</strong><br />
sobre a prática musical em São Paulo nos <strong>século</strong>s XVI-XIX possui caráter circunstancial e<br />
comemorativo.<br />
Foi possível perceber o surgimento, a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 de uma incipiente<br />
deman<strong>da</strong> por estu<strong>do</strong>s históricos em São Paulo que se baseassem em critérios meto<strong>do</strong>lógicos<br />
“objetivos”, especialmente através <strong>da</strong> a<strong>do</strong>ção <strong>da</strong> pesquisa arquivística em sua meto<strong>do</strong>logia, e pela<br />
busca de fatos “positivos”. Esta tendência é mais bem representa<strong>da</strong> <strong>na</strong> historiografia por Carlos<br />
Pentea<strong>do</strong> de Resende.<br />
O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> objeto em questão mostrou ser possível utilizar-se <strong>da</strong> forma de análise<br />
proposta, que estu<strong>da</strong> o objeto não ape<strong>na</strong>s sob a perspectiva <strong>da</strong> autoria, mas também de seus<br />
contextos geral e particular. Neste senti<strong>do</strong>, a meto<strong>do</strong>logia utiliza<strong>da</strong> permitiu-nos identificar<br />
paralelos entre o objeto e o pensamento brasileiro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão, possibilitan<strong>do</strong> a<br />
reflexão sobre parte <strong>da</strong> história <strong>da</strong> historiografia musical em nosso país.<br />
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