Trabalhadores - Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro
Trabalhadores - Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro
Trabalhadores - Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Quinzena<br />
O problema, porém, é que já náo<br />
parece que os conflitos, mesmo <strong>de</strong><br />
dasse, rasguem as socieda<strong>de</strong>s se-<br />
gundo o mo<strong>de</strong>lo da guerra, que foi<br />
usado por Marx - e, noutro contexto,<br />
ainda recentemente, por Michel Fo-<br />
cault. Uma guerra se <strong>de</strong>fine porque<br />
nela não existe entre os inimigos essa<br />
comunida<strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> interesses<br />
que permite enten<strong>de</strong>r as divergências<br />
existentes como secundárias e passí-<br />
veis <strong>de</strong> solução pacífica. E era assim<br />
a luta <strong>de</strong> classes na Europa até pelo<br />
menos o começo <strong>de</strong> nosso século -<br />
assim como, é preciso dizê-lo, ainda é<br />
o caso no Brasil. Não há outra expli-<br />
cação para a extrema dificulda<strong>de</strong> com<br />
que se tenta, <strong>de</strong> tempos em tempos,<br />
repetir os acordos <strong>de</strong> Moncloa, aquele<br />
pacto social que permitiu à Espanha<br />
livrar-se do franquismo.<br />
Mas nos países capitalistas avan-<br />
çados, constata-se hoje entre patrões<br />
e empregados um certo número <strong>de</strong><br />
temas <strong>de</strong> convergência. Uma frase<br />
como a <strong>de</strong> Marx aos operários, "nada<br />
ten<strong>de</strong>s a per<strong>de</strong>r senão os vossos gri-<br />
lhões", lá soa falsa. Eles passaram,<br />
sim, a ter o que per<strong>de</strong>r em caso <strong>de</strong><br />
convulsão social (por sinal, uma metá-<br />
fora orgânica); e não apenas suas ca-<br />
sas e dinheiro, ou o lazer controlado<br />
pela televisão e outros aparelhos<br />
i<strong>de</strong>ológicos - mas a própria existência<br />
<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> na qual as regras<br />
vigentes lhes garantem certos ga-<br />
nhos.<br />
É esse um dos fatores que tomam<br />
o mo<strong>de</strong>lo da luta <strong>de</strong> classes ina<strong>de</strong>-<br />
quado para pensar uma socieda<strong>de</strong><br />
como a do capitalismo avançado. Ela<br />
conseguiu resolver, mais ou menos,<br />
tanto o problema da miséria quanto,<br />
mais recentemente, o dos conflitos <strong>de</strong><br />
valores: 1968, que foi uma rebelião da<br />
juventu<strong>de</strong> contra uma socieda<strong>de</strong> fe-<br />
chada, que reprimia o sexo e a vida,<br />
acabou se revelando um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sa-<br />
fio, que a forçou a mudar e absorver<br />
muito do que a contestava. Penso<br />
que é em função disto que Francisco<br />
Weffort aponta as falhas do marxismo<br />
para pensar o mundo <strong>de</strong> hoje: o Atlân-<br />
tico Norte soube <strong>de</strong>finir um tipo <strong>de</strong><br />
socieda<strong>de</strong> na qual o conflito é aceito,<br />
até mesmo como condição normal do<br />
modo <strong>de</strong> viver-se junto, mas sem que<br />
necessariamente se tome antagônico.<br />
Ora, isso coloca dois problemas sé-<br />
rios para nós. Em primeiro lugar, o<br />
marxismo ficou presa <strong>de</strong> seu mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> conflito racional - a tal ponto que<br />
para ele ou o conflito cin<strong>de</strong> irremedia-<br />
velmente a socieda<strong>de</strong>, como no caso<br />
do capitalismo, ou só resta à socieda-<br />
<strong>de</strong> o caminho <strong>de</strong> não ter mais confli-<br />
tos e paradoxalmente tornar-se har-<br />
mônica, como seria i<strong>de</strong>almente o so-<br />
cialismo (que, assim, se tomou inca-<br />
paz, lá on<strong>de</strong> teve esse nome, <strong>de</strong> lidar<br />
com qualquer conflito que surgisse!).<br />
O paradoxo não é pequeno, porque<br />
faz os marxistas se tomarem meio<br />
tomistas, e talvez seja por isso que<br />
alguns católicos a<strong>de</strong>riram ao socia-<br />
lismo marxista, nele encontrando a<br />
harmonia que <strong>de</strong>sejariam para o so-<br />
cial (como por exemplo no fim do<br />
"País do Carnaval", romance precur-<br />
sor <strong>de</strong> Jorge Amado). São <strong>de</strong>ficiên-<br />
cias da teoria<br />
O segundo problema se coloca pa-<br />
ra nossos países, em que a luta <strong>de</strong><br />
classes conserva todo o vigor e conti-<br />
nua sendo eixo das lutas sociais e<br />
políticas. Basta ver que para a maioria<br />
dos trabalhadores os próprios valores<br />
<strong>de</strong>mocráticos pouco significam em<br />
termos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida ou se-<br />
quer <strong>de</strong> sobrevivência; que diremos<br />
então dos valores do mercado? Que<br />
convicção tem um trabalhador arro-<br />
Folha <strong>de</strong> $âo Paulo - 4.9.90<br />
i&x&Xvi^Wrv<br />
iiiiiií<br />
Politica Nacional<br />
chado em seu salário <strong>de</strong> que as re-<br />
gras do jogo econômico permitem a<br />
todos os lados alguns ganhos?<br />
A teoria da guerra <strong>de</strong> classes con-<br />
tinua valendo para explicar nossa so-<br />
cieda<strong>de</strong> e várias outras. Isso traz pro-<br />
blemas sérios não só para quem vive,<br />
mas também para quem teoriza a po-<br />
lítica. Será que existem teorias váli-<br />
das regionalmente, para uns países e<br />
não outros, em pleno tempo da mun-<br />
dialização da economia? E será que<br />
tem sentido a divisão, tão cara aos<br />
cientistas políticos, entre mo<strong>de</strong>rno e<br />
atrasado, na qual nossos países, ine-<br />
vitavelmente, recaem na categoria<br />
segunda e mais inferiorizada? Tantas<br />
questões. Tão poucas respostas, ain-<br />
da.<br />
RENATO JANINE RIBEIRO, professor <strong>de</strong> filosofia<br />
política na USP, é autor <strong>de</strong> "Ao Leitor sem Medo" e<br />
"A Etiqueta no Antigo Regime", e ainda organiza-<br />
dor <strong>de</strong> "A Sedução e suas Máscaras - ensaios so-<br />
bre D.Juan".<br />
Florestan <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
conceito <strong>de</strong> luta <strong>de</strong> classes<br />
Mouro Lopes<br />
O <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral Florestan Fer-<br />
nan<strong>de</strong>s (PT-SP), saiu a campo para<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a ortodoxia marxista e res-<br />
pon<strong>de</strong>u às "heresias" proclamadas<br />
pelo sociólogo Francisco Weffort. Há<br />
oito dias. Folha publicou entrevista<br />
<strong>de</strong> Weffort, ex-secretário-geral e ex-<br />
secretário <strong>de</strong> Relações Internacionais<br />
do PT - ele admitiu a crise na teoria<br />
marxista, questionou a valida<strong>de</strong> do<br />
conceito <strong>de</strong> luta <strong>de</strong> classes nos países<br />
mo<strong>de</strong>rnos e propôs a revisão da idéia<br />
<strong>de</strong> imperialismo. Os petistas ortodo-<br />
xos ficaram <strong>de</strong> cabelo arrepiado. No<br />
dia 30 <strong>de</strong> agosto, o cientista político,<br />
historiador e antropólogo Florestan<br />
Fernan<strong>de</strong>s recebeu a Folha em seu<br />
apartamento. Afirmou não querer<br />
"polemizar'' com Weffort. Mas res-<br />
pon<strong>de</strong>u às principais questões abor-<br />
dadas por seu companheiro <strong>de</strong> parti-<br />
do. Afirmou a atualida<strong>de</strong> dos concei-<br />
tos <strong>de</strong> imperialismo e luta <strong>de</strong> classes e<br />
disse que o marxismo vive uma crise<br />
<strong>de</strong> renovação. A seguir, um resumo<br />
da entrevista com Florestan Fernan-<br />
<strong>de</strong>s.<br />
Folha - Francisco Weffort com-<br />
partilha da idéia <strong>de</strong> uma crise na<br />
teoria marxista. O sr., pelo que se<br />
observa em seu texto, "Em <strong>de</strong>fesa<br />
do socialismo", não concorda. O<br />
sr. acredita que mesmo com os<br />
acontecimentos dos últimos anos no<br />
Leste Europeu o marxismo ainda é<br />
um edifício intacto do ponto <strong>de</strong> vis-<br />
ta teórico?<br />
Florestan Fernan<strong>de</strong>s - Eu acho<br />
que em termos intelectuais não exis-<br />
tem edifícios intactos. Até a década <strong>de</strong><br />
30 os partidos tiveram gran<strong>de</strong> influên-<br />
cia criativa nas evoluções do marxis-<br />
mo. O marxismo se ligou à prática e<br />
daí resultaram transformações que o<br />
enriqueceram. Posteriormente, sob<br />
a influência do conflito entre Segunda<br />
e a Terceira Internacionais e, princi-<br />
palmente, par causa das características<br />
da realação entre a Terceira Interna-<br />
cional e os militantes dos PCs, o tra-<br />
balho teórico dos marxistas acabou se