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O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive

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O júri foi dos mais movimentados em toda a vida de Santa Fé desde que ela fora elevada a<br />

cabeça de comarca. Entre os juizes de fato estavam Bento Amaral, Aguinaldo Silva e Juvenal<br />

Terra. O promotor foi implacável. Achava que um crime daquela natureza não podia ficar<br />

impune; tinha de ser punido com a máxima severidade - "...para que, senhores jurados, não<br />

fique estabelecido um precedente horrível que haveria de trazer a inquietude e o pavor<br />

permanentes a todos os senhores de escravos, a todas as casas, a todas as famílias". E<br />

continuou: "O depoimento do sr. Bolívar Cambará, pessoa que nos merece a maior<br />

confiança, deixa o caso claro como um cristal. Na noite do crime o negro o procurou e estava<br />

com as roupas ensangüentadas. Que dúvida pode ainda subsistir? Era o sangue das vítimas<br />

inocentes, pois se fosse o sangue do próprio escravo, como ele parecia insinuar, por que se<br />

recusou Severino a mostrar suas feridas ao homem junto do qual buscava proteção?”<br />

Severino foi declarado culpado por todos os juizes, menos por Juvenal Terra, que mais<br />

tarde afirmou a amigos: "Esse negro eu conheço desde menino. Brincou com o Florêncio e o<br />

Bolívar. Não é capaz de matar uma mosca. Homem e cavalo eu conheço pelo jeito de olhar".<br />

Bolívar revolveu-se na cama e ficou deitado de bruços, com os braços dobrados e os<br />

punhos cerrados debaixo do peito, sentindo o bater furioso do coração. Pensou no coração do<br />

Severino a pulsar naquele pobre peito escuro e lanhado. Decerto àquela hora o negro estava<br />

acordado na sua cela, esperando o clarear do dia de sua morte. Mas quem Bolívar via em<br />

pensamentos na cadeia não era o Severino homem feito, mas sim o menino que brincava com ele<br />

e Florêncio debaixo da figueira da praça. E esse menino agora ia morrer só por causa dumas<br />

palavras que seu amigo Boli dissera às autoridades...<br />

Bolívar procurou pensar em Luzia, esforçou-se por se convencer a si mesmo de que tudo<br />

estava bem: ele ia casar com a mulher que amava, com a mais linda moça de Santa Fé: um dia<br />

seria o senhor do Sobrado... Mas era inútil. Seu mal-estar continuava: aquela aflição, aquele peso<br />

no peito, a sensação de que algo de horrível estava por acontecer... E a lembrança de Luzia<br />

agravava essa sensação. E, sem compreender como, Bolívar odiou a noiva. Odiou-a por tudo<br />

quanto sentia por ela, odiou-a porque ela era bela, rica e inteligente. E odiou-a principalmente por<br />

causa de seus caprichos de mocinha mimada. Ele lhe pedira, lhe suplicara quase, que transferisse<br />

a festa do noivado para outro dia qualquer, a fim de que a cerimônia não coincidisse com a hora<br />

do enforcamento de Severino. Luzia batera pé: "Não, não e não!" O padre Otero interviera,<br />

dizendo que não era direito estarem se divertindo no Sobrado enquanto um cristão morria ali na<br />

praça. Mas Luzia não cedera. Achava que não havia nenhuma razão para modificar seus planos.<br />

Já tinham preparado tudo: os convites estavam feitos, os doces prontos... Se as autoridades<br />

quisessem, que transferissem a execução. E Aguinaldo, que sempre acabava fazendo as vontades<br />

da neta, deu-lhe todo o apoio: "Luzia é a dona da casa e da festa. Ela é quem manda".<br />

Bolívar sentia o pulsar do próprio sangue no ouvido que apertava contra a fronha. Seu<br />

coração batia com tanta força que parecia sacudir a cama, a casa, o mundo. E batia de medo -<br />

medo do que ia acontecer depois que o dia raiasse...<br />

De repente Bolívar descobriu por que sentia aquilo. Era a impressão de que ele, e não<br />

Severino, é que ia ser enforcado. Aquela era a sua última noite. Não podia dormir. Era inútil<br />

tentar. O pavor da morte mantinha-o de olhos abertos.<br />

Atirou as pernas para fora da cama e levantou-se. Como era seu hábito, dormia vestido.<br />

Apanhou as botas e começou a caminhar na direção da porta, procurando não fazer barulho. E<br />

quando se viu a andar pé ante pé na casa silenciosa, teve a impressão de que era um ladrão ou de<br />

que ia matar alguém... E num segundo passou-lhe pela mente uma idéia confusa e horrenda: Ele,<br />

Bolívar, tinha assassinado os dois tropeiros. Severino estava inocente. Agora se lembrava. A<br />

machadinha, os dois homens ressonando no quarto escuro. Depois o estralar dos ossos<br />

daquelas cabeças, como côcos que se partem. Bolívar respirava com dificuldade. Tinha os<br />

olhos fechados e procurava espantar aquela idéia. “Devo estar louco por pensar essas<br />

barbaridades”.

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