O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
2 impressão de receber de repente um sopro de gelo. Diziam que o minuano vinha dumas<br />
montanhas geladas do Chile e da Argentina. Pois Luzia parecia mesmo uma montanha coberta de<br />
geada. É bonita - refletiu Bibiana - isso ninguém pode negar. Mas é uma boniteza má, uma<br />
boniteza de pecado. Bolívar precisa domar essa potranca no primeiro dia do casamento, senão<br />
está perdido.<br />
- ... e o ano passado eu quis fazer marmelada branca mas não pude acertar direito o ponto -<br />
prosseguia a esposa do magistrado, com seu peito magro de tísica a arquejar.<br />
Bibiana voltou para ela uns olhos onde havia um tépido interesse e sorriu para dar a<br />
entender à interlocutora que a escutava. Mas, na verdade, naquele momento ela estava era<br />
sentindo o Sobrado. Não! Ela estava sentindo seu chão. A casa de seu pai ficava naquele mesmo<br />
lugar onde agora estava o Sobrado. Faz de conta que esta é a nossa varanda. Ali está a parede<br />
empenada, que vovó dizia que estava grávida. Ali a mesa, com as cadeiras; lá naquele canto, a<br />
talha. Papai está pitando, sentado na cadeira de balanço. Eu até vejo a fumaça do cigarrão dele. A<br />
mamãe está fazendo croché perto da mesa. Eu estou aqui e o capitão Rodrigo, que chegou há<br />
pouco, pediu licença e está picando fumo pra fazer um crioulo. Por que será que papai não fala<br />
com ele? Birras de velho. Não faz mal: com o tempo ele vai acabar gostando do genro. Ninguém<br />
resiste àqueles olhos de gavião. Eu até nem posso olhar direito pra eles: fico meio zonza. É por<br />
isso que estou olhando só pras botas do capitão. E ele vai dizendo coisas, contando histórias da<br />
sua vida: guerras, viagens, brigas, guerras, viagens, brigas... Todos escutam. Noite de Finados.<br />
Alguém está cantando na venda do Nicolau. A voz é a do capitão. Mas ele não pode estar lá na<br />
venda e aqui em casa ao mesmo tempo. Por que não pode? O capitão Rodrigo pode tudo. O<br />
padre Lara chega, diz boa-noite, senta-se, chiando como um gato velho. Coitado! Está enterrado<br />
perto da sepultura da vovó. Decerto de noite os dois ficam ali no cemitério conversando sobre os<br />
vivos, rindo-se deles... O capitão Rodrigo já acendeu o cigarro. Papai olha o relógio como quem<br />
quer dar a entender que é tarde. Então meu noivo se levanta, vai embora e eu fico pensando nele<br />
e nas coisas que tenho que fazer amanhã. Pular da cama às cinco, tirar leite, encher lingüiça, dar<br />
milho pras galinhas, matar formigas pra elas não estragarem as plantas... Com essa cintura fina a<br />
Luzia parece uma formiga, uma saúva grande. Mas formiga se esmaga com o pé. E sapo também.<br />
E os olhos de Bibiana se voltam para Aguinaldo.<br />
Depois passeiam lentos e avaliadores em torno da sala. Aquele espelho grande de moldura<br />
dourada é muito bonito, deve ter custado um dinheirão. E um dia ainda quero ver naquele vidro<br />
o Aguinaldo dentro dum caixão de defunto, com quatro velas acesas do lado. Deus me perdoe,<br />
não desejo o mal de ninguém, mas todos um dia morrem. Amém. E é bem bonita a mobília -<br />
refletiu ela, olhando para o consolo de mármore, sobre o qual estava a cítara de Luzia, dentro<br />
dum estojo de madeira lavrada. E pra que estas cadeiras todas cheias de requififes, Santo Deus?<br />
Não troco as minhas de palha trançada por estes monstrengos. Mas gosto desta casa. Como são<br />
grossas as paredes! Num casarão assim a gente se sente garantida. Pode vir chuva, ventania,<br />
tempestade e até guerra. Bala não passa por elas.<br />
- Está boa a limonada? - perguntou Aguinaldo, jovial. Bibiana teve um leve sobressalto,<br />
ergueu os olhos para o dono da casa e respondeu:<br />
- Não provei ainda.<br />
Só então é que se lembrou de que tinha na mão o copo de limonada.<br />
Levou-o à boca e começou a beber devagar. O cheiro de limão trouxe-lhe à mente um certo<br />
dia de sua vida, havia muitos anos. O capitão Rodrigo chegou duma viagem e lhe disse: "Estou<br />
louco de sede, minha prenda. Me faz uma limonada bem ligeiro. Mas bota pouco açúcar". E<br />
2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao<br />
conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem<br />
novas obras.<br />
Se quiser outros títulos procure por http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros. Será um prazer recebê-lo em<br />
nosso grupo.