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O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive

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Tirou os óculos e pô-los com todo o cuidado em cima da cadeira, ao lado da cama. E de<br />

repente, como já acontecera antes tantas vezes, sentiu-se tomado de uma sensação de estranheza<br />

que ele poderia toscamente resumir nestas palavras: "Eu, Carl Winter, natural de Eberbnch,<br />

formado em medicina pela Universidade de Heidelberg, completamente nu deitado numa cama<br />

tosca, num quarto mal cheirante, numa casa miserável na vila de Santa Fé, perdida no meio das<br />

campinas da província de São Pedro do Rio Grande, Brasil, América do Sul". Como? Por quê?<br />

Para quê? Enlaçou as mãos sobre o ventre e ficou de olhos cerrados a pensar. Era o melhor<br />

estratagema que conhecia para aprisionar o sono. Procurava narcotizar-se com pensamentos até<br />

dormir. E nunca conseguia ver claro o momento em que cruzava a tênue linha que separa o<br />

devaneio do sono.<br />

Como? Por quê? Para quê? Não cometi nenhum crime. Não sou nenhum imbecil. O<br />

mundo é muito largo. Eu podia estar no Cairo, em Bombaim, em Cantão, em Caracas. E por que<br />

não em Munique, Berlim ou mesmo Eberbach...<br />

Sempre hesitava antes de responder, quando lhe perguntavam por que deixara a pátria.<br />

Certo, não era um "colono" como os outros alemães que se haviam estabelecido às margens do<br />

rio dos Sinos. Não viera à procura do Eldorado nem da Galinha dos Ovos de Ouro. Refugiado<br />

político? Talvez fosse essa a sua classificação. Sua malícia, entretanto, recusava o título dramático<br />

e levava-o a lesumir sua história em poucas palavras: "Estou aqui principalmente porque<br />

Gertrude Weil, a Fräulein que eu amaua, preferiu casar-se com o filho do burgo-mestre. Isso<br />

me deixou de tal maneira desnorteado, que me meti numa conspiração, que redundou numa<br />

revolução, a qual por sua vez me atirou numa barricada. Ora, essa revolução fracassou e eu<br />

me vi forçado a emigrar com alguns companheiros".<br />

Carl Winter gostava de relembrar a série de acontecimentos fortuitos que o haviam trazido<br />

de Berlim a Santa Fé, através das mais curiosas escalas. Desembarcara no Rio de Janeiro com o<br />

diploma, a caixa de instrumentos cirúrgicos e algum dinheiro no bolso, decidido a estabelecer-se<br />

ali, fazer clínica, juntar uma pequena fortuna para um dia - depois que seu governo tivesse<br />

indultado os revolucionários e ele conseguido esquecer Trude Weil - retornar à Alemanha.<br />

Achou, porém, que o Rio era insuportavelmente quente, tinha um incômodo excesso de<br />

mosquitos e mulatos, além da ameaça permanente da febre amarela.<br />

Meteu-se com armas e bagagens num patacho que se fazia de vela para a província de São<br />

Pedro - que lhe diziam ter um clima semelhante ao do sul da Europa - e desembarcou na cidade<br />

do Rio Grande, onde julho o esperou com ventos gelados que cheiravam a maresia e nevoeiros<br />

que o lembraram agradavelmente dum inverno que ele passara em Hamburgo, quando<br />

adolescente. Apresentou suas credenciais à prefeitura e, sabendo existir na cidade uma grande<br />

carência de médicos, ofereceu-se para trabalhar gratuitamente no hospital de caridade local. Foi lá<br />

que um dia, fazendo sua visita matinal aos doentes, encontrou deitado num daqueles catres sujos<br />

e malcheirosos, num contraste com as caras tostadas dos nativos, um homem louro,<br />

extremamente jovem, e de aspecto europeu. Deteve-se, interrogou-o e verificou que se tratava de<br />

um alemão que viera com as tropas mercenárias que o governo brasileiro havia contratado para<br />

lutar contra os soldados do ditador Rosas. E o pasmo de Winter chegou ao auge quando o moço<br />

lhe declarou chamar-se Carl von Koseritz e ser descendente duma família nobre do ducado de<br />

Anhalt. Foi, pois, com uma mistura de surpresa e cepticismo que o médico ouviu aquele homem<br />

de feições finas, ali estendido num sórdido leito de hospital de indigentes, contar-lhe que seu<br />

irmão Kurt fora ministro do duque e sua irmã Tony, dama de honor da duquesa.<br />

- Mas como foi que veio parar neste país, nesta cidade, neste hospital?<br />

- Fui renegado pela minha família - sorriu o moço.<br />

O médico ia perguntar: "Por quê?" - mas conteve-se a tempo. era uma pergunta indiscreta.<br />

Talvez o rapaz houvesse falsificado a firma do pai em alguma letra para pagar dívidas de jogo...<br />

Ou então, amante de alguma condessa, tivesse sido obrigado a matar o conde num duelo...<br />

Von Koseritz, porém, apressou-se a explicar que, sendo estudante em Berlim, se metera,<br />

contra a vontade dos pais, na revolução de 48. E acrescentou:

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