O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
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- Não sei se foi por bem ou por mal - retrucou o outro, fitando o olhar encolerizado na face<br />
amarela do vigário. - O que sei é que escreveu. Ele devia saber quem é esse Aguinaldo Silva.<br />
Pigarreou com fúria e escarrou no chão.<br />
- <strong>II</strong> -<br />
Mas, para falar a verdade, em Santa Fé ninguém sabia ao certo quem era Aguinaldo Silva.<br />
Claro, pela entonação da voz, via-se logo que o homem era do norte. Ele próprio declarara ter<br />
nascido no Recife; o que não contava, mas os outros murmuravam, era que tivera de fugir de lá,<br />
havia muitos anos, por ter matado a esposa e o homem com quem ela o traíra. "Isso não é crime"<br />
- observara um dia o Alvarenga, de cuja loja o nortista era bom freguês. - "Um homem de<br />
vergonha não podia fazer outra coisa." Mas pessoas que sabiam da história com todos os<br />
pormenores explicavam que o duplo assassínio fora premeditado. Ao descobrir que a mulher o<br />
enganava, Aguinaldo a obrigara a marcar um encontro com o amante em seu próprio quarto de<br />
dormir. Simulara uma viagem mas ficara escondido debaixo da cama, e saltara do esconderijo em<br />
dado momento para estripar a facadas tanto o amante como a mulher. Havia no drama um<br />
detalhe dum trágico grotesco que os maldizentes usavam como remate humorístico do caso: “O<br />
homem estava começando a tirar a roupa quando Aguinaldo saiu de baixo da cama. O infeliz<br />
nem teve tempo de dizer ai: a faca do marido rasgou-lhe o bucho”. Risadas. “No fim, acho que<br />
ele não sabia se segurava as calças ou as tripas.” Pausa dramática. “Mas tanto as calças como as<br />
tripas acabaram caindo no chão.” Novas risadas.<br />
Eram essas as histórias que corriam em Santa Fé. Mas ninguém sabia de nada com certeza.<br />
Contava-se também que depois de passar alguns anos no Rio de Janeiro e em Curitiba, com<br />
nome trocado, Aguinaldo viera para a província de São Pedro, onde durante a guerra civil andara<br />
ora com as tropas farroupilhas ora com as forças legalistas, ao sabor de suas conveniências. Os<br />
que o conheciam de perto pintavam-no como um homem ladino, de olho vivo para os negócios,<br />
e que, obcecado pelo medo de ser logrado e sabendo que a melhor maneira de a gente se<br />
defender é atacar, tinha a preocupação permanente de lograr os outros. Baixo, de pernas muito<br />
curtas para o tórax anormalmente desenvolvido, era levemente corcunda e tinha, plantada sobre<br />
os largos ombros ossudos, uma cabeça triangular, de pescoço curto, e uma cara de chibo que a<br />
pêra grisalha acentuava. Era feio, mas duma fealdade aliciante e simpática, muito ajudada por uma<br />
voz de inflexões macias e musicais. Apesar da cor amarelada do rosto, tinha uma saúde de ferro e<br />
aos setenta e dois ainda fazia tropas, dormia ao relento, e campereava com o entusiasmo e a<br />
eficiência dum moço de vinte. Por muito tempo Aguinaldo recusara vestir-se como os gaúchos<br />
da província. Conservara a indumentária de couro dos vaqueiros do Nordeste - o que lhe valera<br />
muitas vezes a desconfiança e a má vontade dos continentinos - e mesmo agora que decidira<br />
abandoná-la em favor da bombacha, do pala e do poncho, conservava ainda o chapéu de<br />
sertanejo, de abas viradas para cima, o que, como dizia o dr. Nepomuceno, lhe dava uns ares<br />
napoleômicos. Aguinaldo amava o dinheiro mas não era sovina. Gostava de pagar "comes e<br />
bebes" para os amigos, vivia ajudando os necessitados, e era generoso para com seus agregados,<br />
peões e comissionados. Quando pela primeira vez aparecera em Santa Fé, no ano em que fora<br />
assinada a paz entre farroupilhas e legalistas, causara a pior das impressões. Chegara escoteiro,<br />
montado num cavalo magro e manco, e fazendo questão de mostrar a toda a gente que tinha as<br />
guaiacas atestadas de moedas de ouro. Começaram então a murmurar na vila que Aguinaldo havia<br />
descoberto uma Salamanca lá para as bandas de São "Borja. "Salamanca? Lorotas!" - retrucavam<br />
outros. - "Isso é dinheiro de contrabando. Conheço pelo cheiro."E um dia, numa roda de bisca<br />
na casa do Alvarenga, o padre Otero comentou: "Seja como for, não deve ser dinheiro limpo".<br />
Mas os que precisavam de crédito para seus negócios não se preocuparam com averiguar a<br />
origem dos patacões, cruzados e onças de Aguinaldo Silva, quando este se aboletou num rancho<br />
nos arredores de Santa Fé e começou a emprestar dinheiro a juro alto. Quando sabia que um<br />
lavrador ou criador estava em dificuldades financeiras, procurava-o, ambicioso, e oferecia-lhe um