O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
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- Mas esta província não pode depender eternamente do charque e do couro! - exclamou<br />
Winter. - Foi um erro terem abandonado o trigo. É uma insensatez não cuidar dos rebanhos...<br />
um crime não cultivar melhor a terra.<br />
Havia outros problemas sérios: o da instrução pública, por exemplo. Existiriam quando<br />
muito umas oitenta escolas em toda a província, e todas eram de primeiras letras. Havia uma<br />
assustadora escassez de professores.<br />
Inflamado por suas idéias, Winter ergueu o dedo e disse:<br />
- Os senhores ainda não perceberam o grande perigo que correrão no futuro...<br />
Conteve-se. O que ia dizer era muito ousado, talvez até ofensivo àquela gente. Viu que os<br />
outros esperavam a terminação da frase. Não teve remédio senão continuar.<br />
- ... se não promoverem o progresso desta região? Pode ser que alguma nação estrangeira<br />
poderosa, de gente superior, volte um dia para cá os olhos cobiçosos. Não será a primeira vez na<br />
História. Não basta ter uma terra: é necessário merecê-la.<br />
O juiz ergueu para ele os olhos mortiços.<br />
- O doutor quer insinuar que uma outra nação pode procurar tomar posse da nossa terra<br />
pelas armas?<br />
Winter pôs as mãos nos quadris, inclinou-se sobre o juiz e disse:<br />
- Exatamente.<br />
Aguinaldo teve um arroubo patriótico:<br />
- Pois que venham. Havemos de expulsar essa estrangeirada a grito e pontaço de lança.<br />
- Que venham! - repetiu Nepomuceno, numa velada ameaça, como se dispusesse dum<br />
poderoso exército secreto pronto para qualquer emergência. - Que venham!<br />
O padre olhava para Winter dum modo estranho, e o doutor viu que se havia metido em<br />
terreno perigoso. Mas agora já não podia mais recuar.<br />
Adoçou mais a voz, deu-lhe um tom persuasivo para dizer:<br />
- Esta terra é boa demais para ficar abandonada, despovoada de gentes, de gado e de<br />
lavouras... É incrível que a província tenha de importar os cereais que consome: não só os cereais,<br />
mas até a farinha de mandioca.<br />
Houve um silêncio ressentido em que só se ouviu o ruído líquido que Aguinaldo produzia<br />
ao mastigar nacos de melancia, e o tan-tan da cadeira de balanço do padre.<br />
- Boa ou má - disse o dr. Nepomuceno depois de alguns segundos de reflexão - rica ou<br />
pobre, esta terra é nossa, dos brasileiros. Havemos de defendê-la contra qualquer invasor, venha<br />
ele de que quadrante vier, seja de que raça for.<br />
Olhou para o sacerdote como a pedir-lhe a aprovação para o que acabava de dizer. O padre<br />
Otero sacudiu a cabeça gravemente. De novo o juiz esparramou a papada sobre o peito e, com ar<br />
sonolento, ficou a brincar com a medalha do relógio.<br />
Winter lançou o olhar para a janela. Fora, a luz se fazia mais cor de âmbar e mais suave, à<br />
medida que entardecia. Na praça a multidão se havia dispersado, mas viam-se ainda curiosos a<br />
conversar aos grupos nas proximidades da forca. Mentalmente o médico escrevia agora uma carta<br />
ao seu "ilustre barão". Assim: "Ainda ontem no Sobrado, com a mais sã das intenções, eu disse<br />
umas verdades cruas ao dono da casa, ao vigário e ao juiz de direito. Por um tolo sentimento<br />
de patriotismo mal compreendido parece que ficaram zangados. Como resultado de tudo<br />
também fiquei irritado, e já que havia saído para a chuva e estava molhado, resolvi continuar<br />
enfrentando o aguaceiro e cheguei a sugerir àqueles senhores que...”<br />
- Mas não basta melhorar os rebanhos - disse Winter em voz alta. Aproximou-se do<br />
consolo e ficou a dedilhar distraidamente as cordas da cítara. - É preciso também cuidar dos<br />
homens...<br />
- Cuidar dos homens? - estranhou o padre.<br />
- Explique-se - pediu o juiz - explique-se.<br />
- Calma - disse o médico, fazendo um gesto de paz.<br />
- Estamos perfeitamente calmos. Vamos!