O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
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O capitão Rodrigo naquela noite de 1836 correra armado de espada e pistola para a casa<br />
dos Amarais... Mas ela agora ia tomar o Sobrado completamente desarmada: levava apenas um<br />
guarda-sol na mão e aquele segredo no peito. O dono da casa ia recebê-la de braços abertos.<br />
- V<strong>II</strong> -<br />
Sentado em uma cadeira de respaldo alto e lavrado - que achava supinamente incômoda - o<br />
dr. Winter passeava em torno o olhar curioso. Fora o último dos convidados a chegar ao Sobrado<br />
e lamentava ter perdido a arenga que Aguinaldo Silva fizera aos presentes para anunciar o<br />
contrato de casamento da neta com Bolívar Cambará. A vasta sala de visitas estava muito clara de<br />
sol e Carl notou que o reflexo tricolor da bandeirola duma das janelas tingia a face e o pescoço de<br />
Luzia. Uma estigmatizada - fantasiou ele. Achou-a perversamente linda. Estava ela sentada no<br />
sofá ao lado do noivo, vestida de crinolina verde, de saia muito rodada com aplicações de renda;<br />
tinha cravado nos cabelos dum castanho profundo grande pente em forma de leque, no centro<br />
do qual faiscava um brilhante. Winter pensou imediatamente na bela e jovem bruxa moura que o<br />
diabo, segundo a lenda que corria pela província, transformara numa lagartixa cuja cabeça<br />
consistia numa pedra preciosa de brilho ofuscante. Como era mesmo o nome do animal? Ah!<br />
Teiniaguá. A sua Musa da Tragédia havia agora virado teiniaguá. Winter pensava essas coisas e<br />
sorria, apertando o charutinho entre os dentes.<br />
O dr. Mascarenhas conversava animadamente com Aguinaldo. Bibiana gritava ao ouvido da<br />
esposa do juiz, que era surda, e a boa senhora lhe respondia com sua voz fosca e branda. Winter<br />
percebeu que trocavam receitas de doces e gastavam açúcar e ovos em grande profusão: era, por<br />
assim dizer, uma conversa temperada de canela, cravo e noz-moscada. Bolívar parecia nervoso e<br />
Winter sentia no ar algo de pressago e equívoco que começava a deixá-lo um pouco inquieto.<br />
Sentado numa cadeira, pitando tranqüilamente seu cigarro de palha, Florêncio de vez em<br />
quando lançava um olhar morno na direção de Luzia e do primo. O padre Otero não chegara<br />
ainda, pois estava ocupado com Severino: tinha de prepará-lo para morrer e devia assisti-lo até o<br />
último momento.<br />
Winter julgava perceber no rosto do dono da casa certo desapontamento ante o fato de não<br />
ver ali na sala a maioria das pessoas que convidara para a festa. Toda a gente sabia que os<br />
Amarais detestavam Aguinaldo Silva e recusavam-se a pôr os pés no Sobrado. Quanto aos<br />
outros, era também sabido que não morriam de amores pelo pernambucano, pois raro era o<br />
santa-fezense que não se julgasse de qualquer forma lesado por ele ou que não tivesse pessoa da<br />
família ou amigo de peito entre as vítimas do que eles chamavam "as bandalheiras do corcunda".<br />
Além disso - refletiu Winter - muitos dos convidados decerto acharam que seria mais divertido<br />
ficar na praça para ver Severino estrebuchar na forca do que vir para o Sobrado ouvir Luzia tocar<br />
cítara.<br />
Aguinaldo, desinquieto como sempre, andava dum lado para outro na sala.<br />
Com sua corcunda pronunciada, a cabeça triangular, a barba de chibo, o avô de Luzia<br />
lembrava a Winter um gnomo em versão cabocla.<br />
- Isso está muito desanimado, minha gente! - exclamou o velho. - Até parece velório de<br />
pobre. Luzia, toque um pouco de música. Vamos animar a festa.<br />
Deu dois pulinhos, esfregando as mãos fortemente uma contra a outra, e gritou na direção<br />
da cozinha:<br />
- Siá Rosa, mande trazer a refrescalhada!<br />
Bolívar passava o lenço vagarosamente entre o colarinho e o pescoço. A cabeça ainda lhe<br />
doía e agora a sede, uma sede desesperada, secava-lhe a goela, ressequia-lhe a boca. Um refresco<br />
chegava em boa hora.<br />
- Vamos, menina, toque um pouco! - tornou a pedir Aguinaldo.<br />
Luzia sacudiu a cabeça de leve: o diadema chispou.<br />
- É muito cedo ainda, vovô. Depois eu toco.