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O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive

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O vulto de Florêncio apareceu, vindo do fundo da casa. Os dois primos começaram a<br />

caminhar lado a lado, em silêncio, ganharam a rua e sem a menor combinação se dirigiram para a<br />

praça. Era assim que faziam quando crianças: mal se juntavam corriam a brincar debaixo da<br />

figueira grande.<br />

Pararam por um instante à frente da capela, e Florêncio, vendo que o primo tinha preso<br />

entre os dentes o cigarro apagado, bateu a pedra do isqueiro. E quando o outro aproximou a<br />

ponta do cigarro da brasa do pavio, Florêncio percebeu que os dedos do amigo tremiam.<br />

- Calma, tenente - murmurou ele. - Calma...<br />

Era assim que dizia quando estavam na véspera dum combate. Tinham feito juntos a<br />

campanha contra Rosas, e pouco antes de entrarem em ação, Bolívar ficava tão nervoso que<br />

começava a bater queixo, a tremer e às vezes rompia até a chorar. Florêncio tinha de tomar conta<br />

dele, levá-lo para o mato, metê-lo na barraca, abafar-lhe o choro como podia para que os<br />

companheiros não ouvissem, para que não pensassem que Bolívar estava com medo. Porque<br />

covarde ele não era. Quando ouvia os primeiros tiros, quando via o inimigo aproximar-se, o rapaz<br />

mudava completamente. Ficava assanhado como um potro bravo, de narinas infladas, cabeça<br />

erguida, ardendo por se meter num entrevero. E era preciso contê-lo para que não fizesse<br />

temeridades.<br />

Florêncio agora olhava para o primo à luz do luar. Como era difícil compreender aquele<br />

homem! Viviam juntos desde meninos e ele ainda não conseguira entender o outro, nunca sabia o<br />

que esperar dele. Era uma criatura desigual: num momento estava exaltado e fogoso, mas no<br />

minuto seguinte podia cair no mais profundo desânimo. Passava da doçura à cólera com uma<br />

rapidez que desnorteava os amigos.<br />

Depois que decidira contratar casamento com Luzia, seu nervosismo aumentara, e agora ele<br />

começava a portar-se como se estivesse em véspera de combate.<br />

Florêncio apagou o isqueiro e perguntou:<br />

- O sonho veio outra vez?<br />

- Veio - murmurou o primo, puxando uma baforada de fumaça.<br />

- O mesmo de sempre?<br />

Bolívar sacudiu a cabeça, numa afirmativa meio relutante. Depois, disse:<br />

- Desta vez o Severino também apareceu.<br />

Florêncio sempre achara que os sonhos traziam avisos de coisas que iam acontecer.<br />

Conhecia casos... Mas o dr. Winter afirmava que isso era crendice, porque os sonhos nada tinham<br />

a ver com o futuro.<br />

Agora os dois caminhavam calados para o centro da praça e Florêncio via que os olhos de<br />

Bolívar estavam postos na forca. Compreendeu então que era que estava roendo o amigo por<br />

dentro, mas achou melhor não dizer nada. O outro que puxasse o assunto, se quisesse.<br />

Sentaram-se debaixo da figueira, ficaram por algum tempo em silêncio, pensando os dois<br />

nos tempos da infância, quando vinham ali brincar com Severino. O negrinho subia na árvore,<br />

ágil e escuro como um bugio, fazia piruetas, soltava guinchos. Bolívar erguia ao rosto um pedaço<br />

de pau, fazendo de conta que era uma espingarda, apontava-o para o bugio, gritava: pei! e<br />

Severino, segundo uma combinação prévia, tinha de atirar-se ao chão e ficar imóvel - um bugio<br />

morto - até que Florêncio vinha ajoelhar-se ao pé dele, encostar o ouvido no peito do "animal" e<br />

depois declarar muito sério para o primo: "Bem no coração". Mal, porém, ele dizia essas palavras<br />

o negrinho começava a rir desesperadamente, a retorcer-se todo e a espernear. Era a hora de<br />

Florêncio tirar da cintura a sua faca de madeira e "sangrar" o bugio bem como os homens da<br />

charqueada sangravam os bois...<br />

O bugio vai ser enforcado amanhã - pensou Bolívar. De novo começou a sentir as batidas<br />

violentas do próprio coração. Estava sentado com as costas apoiadas no largo tronco da figueira,<br />

e houve um momento em que lhe pareceu que a árvore tinha também um grande coração que<br />

pulsava, numa cadência de medo. Aquela figueira sempre lhe dera a impressão duma pessoa,<br />

duma mulher que tivesse a cabeça, os braços e os ombros enterrados no chão e as pernas

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