O Tempo e o Vento - O Continente - Tomo II - OpenDrive
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na direção de Bolívar e ajuntou: - Ali está casualmente o cidadão cujo depoimento contribuiu<br />
para esclarecer o crime.<br />
Fez com a mão um sinal solene que queria dizer: um cidadão honesto, íntegro, acima de<br />
qualquer suspeita.<br />
Florêncio estava sentado na ponta da cadeira, com os olhos postos no primo, temendo que<br />
ele fizesse ou dissesse alguma coisa inconveniente.<br />
Bolívar, porém, limitava-se a olhar para o soalho, com a cara reluzente de suor e os largos<br />
ombros a subir e descer ao ritmo duma respiração ofegante.<br />
Por alguns instantes todos ficaram calados, como que à espera dalguma coisa. Aguinaldo<br />
fez uma ou duas tentativas para puxar um assunto, mas foi em vão. O silêncio voltava sempre, e<br />
quase todos os olhos estavam voltados para as janelas que davam para a praça. Quantas daquelas<br />
pessoas - perguntava Winter a si mesmo - desejariam ir ver o negro espernear na forca levadas<br />
por uma curiosidade mórbida que parecia ser um dos atributos da natureza humana? E se não se<br />
dispunham a ir até as proximidades do cadafalso ou a ficar olhando de longe, ali das janelas, seria<br />
porque, de mistura com a curiosidade, sentissem também uma ponta de horror? Ou era porque<br />
queriam afetar bons sentimentos? Da parte de Bolívar e do juiz - refletia o médico - devia haver<br />
um pouco de remorso, pois ambos tinham contribuído para a condenação do negro. Dona<br />
Bibiana e a esposa do magistrado deviam detestar sinceramente a idéia de assistir à cena.<br />
Florêncio era um homem de bom coração... E Luzia? Continuaria sentada ou viria espiar o<br />
enforcamento?<br />
Aguinaldo estava excitado, ia de instante a instante à janela, ficava ali num pé só, fungando,<br />
aflito.<br />
- Parece que vão trazer o negro - disse ele em dado momento, pondo a mão em pala sobre<br />
os olhos. - Estou vendo um movimento na frente da cadeia.<br />
Começou a esfregar as mãos, satisfeito, numa antecipação do espetáculo.<br />
Uma escrava entrou com uma grande bandeja cheia de talhadas de melancia.<br />
- Pode botar em cima da mesinha - ordenou Luzia, com voz impaciente. - E vá lá pra<br />
dentro.<br />
A negra obedeceu, hesitou um instante e depois se dirigiu ao amo, de cabeça baixa, com<br />
voz humilde:<br />
- A negrada da cozinha também quer ir ver...<br />
- Pois vão! - gritou Aguinaldo.<br />
Luzia, porém, interveio:<br />
- Não! Não vão. Fiquem lá no fundo e não venham nem pra frente.<br />
A escrava saiu da sala de olhos baixos.<br />
Winter sentiu que ele também estava inquieto. Se se erguesse e fosse até a janela poderia ver<br />
tudo. O cadafalso ficava a uns trinta e poucos metros do Sobrado e erguia-se a mais de três do<br />
solo. Poderia dali ver a execução muito melhor que muitos dos que se acotovelavam ao redor da<br />
forca, sob o sol quente. Vou ou não vou? - perguntava ele a si mesmo. Ir seria ceder a uma<br />
curiosidade perversa, a um sentimento inferior. Mas não ir seria levar muito a sério aquela história<br />
toda. No fim de contas era médico e vira coisas piores em sua carreira: crânios esmagados,<br />
membros decepados, tripas à mostra. Nunca, porém, assistira ao assassínio frio, calculado e legal<br />
dum homem. O fantasma de Luzia cochichou-lhe na mente: Negro não é gente.<br />
- Faltam oito minutos - disse Aguinaldo. E de repente, com uma alegria infantil, exclamou: -<br />
Lá vem ele!<br />
Winter ergueu-se, como que galvanizado, e aproximou-se da janela. O juiz continuou<br />
sentado onde estava, a balouçar as pernas nervosamente.<br />
O médico olhou para fora. Um grupo compacto movia-se da cadeia na direção do<br />
cadafalso. Houve na multidão que se apinhava ao redor da forca um como que movimento de<br />
onda. Winter vislumbrou no grupo menor a batina negra do padre Otero e alguns uniformes da<br />
Guarda Nacional. Tudo se processava no meio dum grande silêncio.