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12 DOS SERINGUEIROS AUTÔNOMOS - Biblioteca da Floresta

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<strong>12</strong> ­ <strong>DOS</strong> <strong>SERINGUEIROS</strong> <strong>AUTÔNOMOS</strong><br />

(19<strong>12</strong>/1920 a 1970)<br />

Uma <strong>da</strong>s maiores dificul<strong>da</strong>des no processo de ocupação <strong>da</strong><br />

Amazônia desde o período colonial, não por parte dos indígenas ou<br />

dos caboclos, foi o controle <strong>da</strong> população. Não é aqui o lugar<br />

indicado para dissecarmos as razões desse fato já devi<strong>da</strong>mente<br />

destacado por importantes estudiosos <strong>da</strong> região, entre os quais<br />

sobressai, sem dúvi<strong>da</strong>, o paraense de Óbidos, José Veríssimo, um<br />

dos maiores intelectuais brasileiros de fins do século XIX e início do<br />

século XX.<br />

A historiadora Bárbara Weinstein brin<strong>da</strong> a todos com um feliz<br />

parágrafo que, pela sua quali<strong>da</strong>de sintética, associado ao que já<br />

aludimos sobre o assunto em outros capítulos, nos poupará de nos<br />

alongarmos aqui. Segundo ela<br />

"o afrouxamento dos controles sociais e políticos que caracterizou os<br />

anos de guerra civil acelerou a formação de uma população rural<br />

semi­autônoma ­ tendência que já vinha desde o século XVIII. Os<br />

escravos negros abandonaram em grupos as fazen<strong>da</strong>s agrícolas e de<br />

pecuária, muitos dos quais indo formar comuni<strong>da</strong>des de fugitivos,<br />

conheci<strong>da</strong>s como quilombos, nas regiões mais longínquas do interior.<br />

Analogamente, muitos trabalhadores índios semi­escravos<br />

abandonavam as zonas de agricultura tornando­se agricultores de<br />

subsistência ou "nômades" destruindo, desse modo, os últimos<br />

vestígios do sistema colonial. Assim uma importante conseqüência <strong>da</strong><br />

Revolta <strong>da</strong> Cabanagem foi a expansão de uma população cabocla que<br />

havia rompido a maior parte de seus vínculos ou obrigações com a<br />

elite branca. ... Além disso, nem todos os rebeldes e fugitivos se<br />

fixaram em uma rotina de estrita subsistência. As seringueiras nas<br />

terras devolutas também eram de livre acesso a quem as desejassem<br />

e, com a alta dos preços na déca<strong>da</strong> de 1840, muitos caboclos e ex­<br />

escravos começaram a dedicar parte de seu tempo à extração"<br />

(Weinstein, 1993: 61 e 62 ).<br />

Sabemos, também, que essa matriz de racionali<strong>da</strong>de cabocla,<br />

responsável pela continui<strong>da</strong>de histórica <strong>da</strong> exploração diversifica<strong>da</strong><br />

do binômio floresta­rio, não respondeu com a veloci<strong>da</strong>de deseja<strong>da</strong><br />

aos ditames de uma monoexploração <strong>da</strong> floresta quando a borracha


passou a se constituir num produto estratégico <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> Revolução<br />

Industrial na segun<strong>da</strong> metade do século XIX.<br />

Estávamos diante, portanto, de 'espaço­tempos' diferentes. Por<br />

essa razão o capital interessado na monoprodução de látex se viu<br />

obrigado a buscar fora dos espaço­tempos coman<strong>da</strong>dos por essas<br />

matrizes de racionali<strong>da</strong>de indígeno­caboclas para conformar um<br />

espaço­tempo próprio. Subiu, assim, os altos rios Juruá e Acre­Purus<br />

onde forjou uma territoriali<strong>da</strong>de própria. E, para isso, foi buscar fora<br />

<strong>da</strong> Amazônia a população necessária para a montagem de suas<br />

empresas.<br />

Essas populações, sobretudo nordestinas, não somente fugiam<br />

<strong>da</strong>s secas, como uma interpretação consagra<strong>da</strong> que os vê sempre<br />

como vítimas mas, nas circunstâncias, optaram pela Amazônia e não<br />

pelo Centro­Sul do país onde a expansão do café se fazia com base<br />

no trabalho escravo ou na imigração de europeus com subsídios<br />

governamentais (Santos, R. 1984).<br />

Vimos que essas populações nordestinas que migraram com a<br />

perspectiva de enricar eram provenientes não do Nordeste <strong>da</strong> Casa<br />

Grande e Senzala, sedentários e submetidos a um controle presente<br />

do Senhor de Engenho, mas do Nordeste dos sertões algodoeiro­<br />

pecuarista, acostumados, portanto, à mobili<strong>da</strong>de de acompanhar o<br />

rebanho, tirar o leite e trabalhar para um patrão distante, absenteísta.<br />

Vinham, sobretudo, do Ceará, primeiro a abolir a escravatura. Não<br />

sem razão, a Província do Amazonas foi a segun<strong>da</strong>.<br />

Há, assim, um forte legado histórico­cultural de liber<strong>da</strong>de que<br />

habita as populações amazônicas, seja por essa origem nordestina ou<br />

indígeno­cabocla, e que con­forma seu imaginário. Desnecessário<br />

dizer que esse sentido de escapar pela floresta, subir os rios ou<br />

adentrar a terra firme, que tão bem caracteriza as matrizes de<br />

racionali<strong>da</strong>de indígeno­caboclas, se desenvolveu na relação<br />

contraditória com/contra as ordens religiosas, com/contra os colonos<br />

portugueses, com/contra os regatões, com/contra os Militares,<br />

com/contra os Fazendeiros, com/contra os seringalistas, com/contra<br />

os coronéis de barranco, com/contra a burocracia civil do Estado.


O conhecimento que essas populações forjaram dos seus<br />

espaços ao longo do tempo está inscrito nas suas práticas, são saberes<br />

incorporados, é dizer, estão inscritos nos corpos, nos seus hábitos, nas<br />

suas posturas. Seus saberes não são <strong>da</strong> ordem do dizer; são de ordem<br />

prática; são <strong>da</strong> ordem do fazer. Sendo assim, não estão escritos em<br />

documentos 1 . São, to<strong>da</strong>via, saberes em grande parte exteriorizados<br />

em seu espaço construído, materialização do seu fazer e, assim, parte<br />

de seu habitat.<br />

Essas/aquelas populações que diferentes estudiosos vêm<br />

chamando de seringueir os autônomos, e que eles próprios se dizem<br />

seringueir os libertos, são portadoras desse legado histórico­cultural,<br />

dessas matrizes de racionali<strong>da</strong>de diferencia<strong>da</strong>s que, sob novas<br />

circunstâncias, em novas ocasiões tomarão novos sentidos. Um<br />

componente forte dessas matrizes de racionali<strong>da</strong>de é exatamente a<br />

astúcia, 'arte dos fracos' (de Certeau, 1994), de criar nas<br />

circunstâncias, nas ocasiões. Para isso não há regras ou normas<br />

prévias. É <strong>da</strong> sua natureza a imprevisibili<strong>da</strong>de.<br />

Dissemos acima, quando <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> Territoriali<strong>da</strong>de dos<br />

Coronéis de Barranco, que a referência espacial dos patr ões era o<br />

seringal e apontamos que a referência dos seringueiros era a<br />

colocação. Esse binômio seringal­colocação encerra uma identi<strong>da</strong>de<br />

contraditória, assim, socialmente territorializa<strong>da</strong>.<br />

O patrão que tem seu locus de poder no barracão dimensiona<br />

espacialmente o que pretende seja seu, enfim seu poder, nessa<br />

uni<strong>da</strong>de de referência que é o seringal em sua totali<strong>da</strong>de o que<br />

envolve várias colocações. Organizar esse espaço implica uma<br />

logística por meio <strong>da</strong> qual realiza seu poder de ordenar, nos dois<br />

sentidos que a expressão permite aqui, o de por as coisas em ordem,<br />

organizar, e o de man<strong>da</strong>r, de <strong>da</strong>r ordens, ordenar.<br />

1 Pode­se supor que essas operações multiformes e fragmetárias, relativas a ocasiões e a detalhes, insinua<strong>da</strong>s<br />

e escondi<strong>da</strong>s nos aparelhos dos quais são os modos de usar, e, portanto, desprovi<strong>da</strong>s de ideologias ou<br />

instituições próprias, obdecem a regras. Em outras palavras, deve haver uma lógica dessas práticas. Isto<br />

significa voltar ao problema, já antigo, do que é uma arte ou ‘maneira de fazer. Dos gregos a Durkheim,<br />

passando por Kant, uma longa tradição tentou precisar as formali<strong>da</strong>des complexas ( e não de todo se formula<br />

essencialmente em ‘artes de fazer’ isto ou aquilo, isto é, em consumos combinatórios e utilitários. Essas<br />

práticas colocam em jogo uma ratio ‘popular’, uma maneira de pensar investi<strong>da</strong> numa maneiro de agir, uma<br />

arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar (Certeau, 19945: 42).


O seringueir o, por seu turno, tem como referência de seu<br />

espaço de vi<strong>da</strong> a colocação, enquanto uni<strong>da</strong>de do tapiri, que é a sua<br />

casa, a casa de defumação, o roçado, as estra<strong>da</strong>s de seringa,<br />

colocação essa cuja reprodução depende <strong>da</strong> disponibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> caça<br />

ou <strong>da</strong> pesca ou <strong>da</strong> abundância de frutos, em suma, de um conjunto de<br />

condições por meio <strong>da</strong>s quais garante boa parte <strong>da</strong> sua sobrevivência.<br />

A contradição desse binômio seringal­colocação sobressai, por<br />

exemplo, quando Guerra (1995: 192) discute abertamente o preço <strong>da</strong><br />

'colocação' e, assim, nos revela que havia um comércio de<br />

colocações. Portanto, ain<strong>da</strong> que por vias indiretas, vê­se que não<br />

somente o seringal é uni<strong>da</strong>de de produção legítima de proprie<strong>da</strong>de 2 .<br />

Por em debate, como faz Guerra, se o preço <strong>da</strong> colocação é alto ou<br />

baixo é estar reconhecendo que esta é uma uni<strong>da</strong>de de referência<br />

própria, um espaço próprio de organização <strong>da</strong> produção e de<br />

reprodução, posto que é uma forma de proprie<strong>da</strong>de objeto de<br />

transação de compra e ven<strong>da</strong> entre determinado segmento social que,<br />

assim, se vê sancionado e reconhecido. Estão, deste modo, marcando<br />

a paisagem social, apropriando­se <strong>da</strong> natureza enquanto colocação<br />

com todo o significado que isso traz. No entanto, é preciso destacar<br />

que, mesmo sem esse reconhecimento jurídico, o seringueiro<br />

autônomo, enquanto tal, com seus estabelecimentos próprios, marcam<br />

a organização do espaço geográfico acreano de modo incisivo,<br />

conforme será destacado adiante.<br />

Araújo Lima, também, destaca em A explotação amazônica'<br />

que<br />

'o seringueiro, ou freguês, não é, pois, assalariado, tampouco<br />

meeiro ou tarefeiro, muito menos um associado; é realmente um<br />

'correntista', um operário que trabalha por conta pr ópria no<br />

seringal do 'patrão' e com o crédito, por este abonado, em gêneros<br />

alimentícios, objetos de vestuário, material para extração do leite de<br />

seringueira, munição para caça, to<strong>da</strong>s as utili<strong>da</strong>des, enfim,<br />

indispensáveis à vi<strong>da</strong> de solteiro ou casado. E em plena liber<strong>da</strong>de de<br />

trabalho, de negócios e de err os, desenvolve­se na área do<br />

seringal que lhe faculta o pr oprietário de quem apenas depende<br />

pelo compromisso <strong>da</strong> dívi<strong>da</strong>, assumi<strong>da</strong> quando recebe o aviamento,<br />

2 Talvez se tenha aqui um rico exemplo de construção de uma contra­hegemonia, como Antonio<br />

Gramsci gostava de afirmar. Até tornar legal sua forma de proprie<strong>da</strong>de, os seringueiros já<br />

haviam conseguido torná­la legítima.


ficando obrigado pelo débito contraído, que muitas vezes anula pela<br />

fuga para outro seringal, visto que nenhuma garantia pode oferecer<br />

no ato de entabular os negócios com o 'patrão' 3 . (Os grifos são meus).<br />

É claro, por tudo que já analisamos, que não se pode<br />

generalizar com a condição seringueira posto que, sabemos, ela<br />

comportava diferentes práticas e significados. No entanto, o que<br />

queremos destacar invocando o depoimento de Araújo Lima é, mais<br />

uma vez e por um outro ângulo, esse lugar de determinação do fazer,<br />

ora o seringal, ora a colocação. Aqui, nesse depoimento, destacando a<br />

colocação mesmo no interior de um seringal.<br />

Vimos que o patrão, seja sob a territoriali<strong>da</strong>de seringalista,<br />

seja sob a territoriali<strong>da</strong>de dos coronéis de barranco, necessita de<br />

suportes externos para manter to<strong>da</strong> a infra­estrutura, seja ela<br />

econômica e/ou jurídica e/ou política e/ou de legitimi<strong>da</strong>de, enfim de<br />

to<strong>da</strong> uma base logística que servisse de substrato ao seu domínio<br />

socioespacial.<br />

Até pelas suas dimensões, mas não só por elas, os seringais<br />

exigiam um complexo processo de reprodução que incluía<br />

articulações políticas que, necessariamente, pressupunham escalas<br />

geográficas que iam além de suas proprie<strong>da</strong>des 4 .<br />

A emergência de uma categoria de seringueiros autônomos é<br />

um fato recente na literatura <strong>da</strong>s ciências humanas e sociais. Somente<br />

no final dos anos 1970 e início dos 1980 ela começa a emergir não<br />

sem razão por meio de vários intelectuais acreanos (Lima, Mourão,<br />

Costa Sobrinho, Martinelllo, de Paula, Duarte, Calaça e outros). Na<br />

ver<strong>da</strong>de, ela é contemporânea <strong>da</strong> emergência do movimento dos<br />

trabalhadores rurais e <strong>da</strong>s populações indígenas no contexto<br />

específico <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de acreana dessas déca<strong>da</strong>s de.<br />

É a partir desse momento e desse lugar que os seringueiros<br />

começam a ganhar visibili<strong>da</strong>de política, tecendo uma identi<strong>da</strong>de não<br />

só com/contra os 'de cima', e os de fora como também com/contra os<br />

'de baixo', de fora e de dentro do próprio Acre. Seus nomes concretos<br />

podem ser os paulistas, expressão que quase sempre condena alguém<br />

3 ARAÚJO LIMA. In: Amazônia brasileira. p. 233­268..<br />

4 Allegretti mostra bons exemplos dessas articulações em seu projeto de tese. (Allegretti, 1983)


que chega 'por cima', como fazendeiro, seja de São Paulo seja<br />

qualquer outro lugar; ou 'os gaúchos', que podem ser catarinenses ou<br />

paranaenses mas, quase sempre, um que fala uma outra língua, se<br />

veste de outra forma, enfim têm outros hábitos desconhecidos<br />

nesses/naqueles habitats; os diferentes grupos indígenas, estes do<br />

lugar; os jagunços, a maioria vin<strong>da</strong> de fora; os intelectuais, muitos<br />

vindos de fora, como alguns padres e advogados, mas também muitos<br />

dos filhos <strong>da</strong>s velhas oligarquias que viam seu espaço presente e<br />

futuro ocupado pelos invasores. Eis, ain<strong>da</strong> que sumariamente a<br />

geografia sociológica, que conforma o espaço acreano nos anos<br />

setenta/oitenta.<br />

Figura 41 – A quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> produção agroextrativista ­<br />

Ignorados na sua efetiva ocupação desde que o Acre deixou de<br />

ser uma 'questão nacional' e de relevância econômica nesse mesmo<br />

nível, sobretudo a partir dos anos vinte, os seringueiros­agricultores<br />

se constituíram como sujeitos políticos a partir <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s de 1970 e<br />

1980 articulando­se para além <strong>da</strong> escala local, a <strong>da</strong>s suas colocações.<br />

A partir de então buscam mais do que serem conhecidos; querem ser<br />

reconhecidos como portadores de direitos, querem ser mais do que<br />

simples ocupantes. Para tal se expressam em espaços públicos:<br />

instituições públicas, como os sindicatos. Assim, os seringueiros se<br />

apresentam, rigorosamente, como protagonistas.<br />

Aqui é importante a lembrança feita por Pierre Bourdieu de<br />

que o significado de categoria, do grego Kategorèin, é acusar<br />

publicamente e que, entre nós, pode ser identifica<strong>da</strong> na expressão<br />

'afirmar categoricamente'. É na medi<strong>da</strong> que os seringueiros emergem<br />

na cena política, que se afirmam publicamente, que ganham<br />

visibili<strong>da</strong>de, se expõem e, assim, se oferecem para serem tratados<br />

conceitualmente 5 .<br />

É a partir dessa época que se vai começar a inventar a<br />

tradição dos seringueir os autônomos como estratégia de afirmação<br />

de identi<strong>da</strong>des e afini<strong>da</strong>des (alianças). Antes disso, na melhor <strong>da</strong>s<br />

hipóteses, falava­se sobre os seringueiros mas os seringueiros não<br />

falavam. Eles eram sempre vítimas desde que vieram tangidos pelo<br />

5 É comum dizer­se ‘no mundo sindical’ a categoria para indicar um conjunto com identi<strong>da</strong>de<br />

própria.


flagelo <strong>da</strong>s secas; continuaram vítimas de uma anomalia, como<br />

dissera Euclides <strong>da</strong> Cunha, onde eles eram os próprios responsáveis<br />

por sua própria exploração e, depois, foram abandonados à sua<br />

própria sorte, expressão onde eles escapando, por sorte, de serem<br />

vítimas absolutas, até se transformarem numa classe em extinção,<br />

como afirmou Alberto Zaire.<br />

Heróis, sim, no passado que, por definição, não é atual, isto é,<br />

não é presente e, assim, não atua, não é ator, enfim, não pode ser<br />

protagonista. Afinal, eles foram os que povoaram e incorporaram o<br />

Acre ao Brasil e, depois, foram 'sol<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> borracha'. Estamos, pois,<br />

diante de uma forma sutil de os transportar para um outro espaço, o<br />

passado, expulsando­o do presente e, portanto, continua­se a<br />

reproduzi­los como um ausente, como­um­sem­capaci<strong>da</strong>de de<br />

construir o seu destino, o seu presente­futuro.<br />

No entanto, eles emergem com (o) um abacaxi, como na bela<br />

foto de Tibor Jablonsky (Figura 41), mostrando que no Acre se fazia<br />

algo mais que produzir borracha; que, só se continuou produzindo<br />

borracha no Acre porque eles, os seringueiros, por sua obra e graça,<br />

por suas mulheres, por seus saberes indígeno­caboclos, tornaram­se<br />

agricultores e extrativistas, mergulhando assim nas mais fun<strong>da</strong>s<br />

tradições culturais amazônicas, dos amazôni<strong>da</strong>s. Enfim, por terem<br />

deixado de se pautar exclusivamente pelo mercado, pelo barracão, e<br />

buscaram sua auto­subsistência.<br />

<strong>12</strong>.1 ­ Os Seringueiros Libertos (nas entrelinhas)<br />

Eles que, na sua grande maioria, não escrevem, emergem ali<br />

nas entrelinhas dos textos, nos não­ditos dos discursos, onde os 'de<br />

cima' para se afirmarem invocam a sua presença. São as autori<strong>da</strong>des<br />

federais, no Acre querendo libertá­los <strong>da</strong> justiça dos coronéis<br />

latifundiários, querendo transformá­los em pequenos proprietários,<br />

colonos, para isso proporcionando­lhes assistência técnica,<br />

transportes; ou adquirindo terras com dinheiro público, ali onde os<br />

seringueiros aparecem como invasores de terras, que é como Teixeira<br />

Guerra os denomina, posto que suas 'posse(s) [são] compulsória(s)'.


No entanto, por mais que se quisesse que eles superassem o<br />

extrativismo, ativi<strong>da</strong>de que, para os de fora, caracterizaria o mais<br />

completo primitivismo, lá estão eles em to<strong>da</strong>s as colônias praticando<br />

o agroextrativismo. Ou nos mapas onde as análises sempre omitem<br />

aqueles pontos dispersos que não estão necessariamente junto dos<br />

principais rios navegáveis, ou mesmo junto a rios.<br />

Figura 42 – Mapa esquemático do Seringal Esperança.<br />

No esboço que ora transcrevo, de autoria do agente municipal<br />

de Brasiléia, pode­se ter uma idéia <strong>da</strong> distribuição <strong>da</strong> população<br />

extrativista dentro <strong>da</strong> própria floresta. Lamento que o referido esboço<br />

não possua escala, to<strong>da</strong>via serva para mostrar o esforço realizado<br />

pelos próprios agentes recenseadores no desempenho de sua missão.<br />

E, mais, cujos croquis dos seringais não conseguem nunca<br />

registrar os caminhos próprios, aqueles de onde vêm os compadres,<br />

os demais parentes e vizinhos para fazer o adjunto, as varaçõese que<br />

só dão visibili<strong>da</strong>de aos caminhos feitos pelos patr ões, as linhas ou os<br />

varadouros e, raras vezes, as varações, as ligações entre as<br />

colocações que não passam pelos caminhos que levam ao barracão<br />

ou ao regatão. Aliás, essas são grafias dos caminhos desses/<strong>da</strong>queles<br />

que não olham de sobrevôo, de cima. São outras marcas na terra, são<br />

outras geografias. É outra escala, a do espaço vivido, que, exatamente<br />

por ser vivido, portanto de corpo presente, não está re­presenta<strong>da</strong> nos<br />

mapas oficiais. Não haveria melhor caracterização para dizer que eles<br />

não têm significação nessa ordem social. Estão fora desse<br />

imaginário 6 .<br />

Retomemos aqui o depoimento de Teixeira Guerra que se<br />

reveste de uma importância singular. E não só pela quali<strong>da</strong>de de seu<br />

trabalho como geógrafo que, pelo número de vezes que o invocamos<br />

nos dispensa, a essa altura, de elogiar.<br />

6 Não se deve esquecer de que o mapa, modernamente sobretudo depois que o Estado Territorial<br />

Moderno se transformou em Estado Nacional, cumpre um importante papel na construção de uma<br />

comuni<strong>da</strong>de de destino ( Balandier, 1969; Morin, 1990) e assim, na imaginação dos que vivem<br />

esse container de poder ( Gidens, 1991) para não dizer, de modo mais direto, que o mapa é, antes<br />

de tudo, imagem, símbolo e, assim, uma forma de tornar próprio, muito própria de uma época.


Figura 43 – Croqui mostrando a distribuição <strong>da</strong>s barracas dos<br />

seringueiros........<br />

E Teixeira Guerra, em particular, não se pôs a analisar o espaço<br />

acreano por uma escolha exclusivamente pessoal, como se pode<br />

depreender do conjunto de trabalhos que realiza em seqüência:<br />

Estudos geográficos do território de Rio Branco; Estudos<br />

geográficos do território de Guaporé; 'Estudos Geográficos do<br />

Território do Amapá e o nosso já conhecido Estudos Geográficos do<br />

Território do Acre. É que Teixeira Guerra como geógrafo do<br />

Conselho Nacional de Geografia trabalhava como um técnico do<br />

Estado, sistematizando informações que proporcionassem condições<br />

para administrar 7 aqueles territórios recém­criados (1943) e o já<br />

velho Território do Acre (1903). Teixeira Guerra é, assim, também<br />

um protagonista de uma quali<strong>da</strong>de não só pessoal, a que não<br />

cansamos de registrar, mas também é uma persona, naquele sentido<br />

que atribui Marx, de portadores de determina<strong>da</strong>s práxis que, no caso<br />

de Guerra, designo como de gestor do Estado 8 .<br />

Os gestores, lá/aqui no Acre, as autori<strong>da</strong>des federais, estavam<br />

ali 9 para organizar uma socie<strong>da</strong>de. Era esse o fun<strong>da</strong>mento que<br />

justificava a criação de um Território. E, aqui, o sentido era,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, fazê­lo por meio <strong>da</strong> organização do espaço, posto<br />

que, em certo sentido, se fazia contra a socie<strong>da</strong>de local. A figura<br />

jurídica de Território Federal tem o exato sentido de definir quem vai<br />

fazê­lo: os gestores estatais do Rio de Janeiro. Ausentes dessa<br />

socie<strong>da</strong>de, seu olhar e suas práticas, são de cima, de fora, de sobrevôo<br />

diria Hanna Arendt (1982). Vêem a partir do espaço. Por isso, no<br />

lugar de Empresa, Penápolis ou Rio Branco; no lugar do<br />

7 Organizar o espaço é o termo que os geógrafos atribuem a administração do território. Há uma<br />

íntima relação, aqui também, entre o fato sociopolítico Estado e suas atribuições administrativas<br />

em que se coloca a garantia, por exemplo, <strong>da</strong> integri<strong>da</strong>de territorial e o que os geógrafos chamam,<br />

quase despolitiza<strong>da</strong>mente de organização do espaço. Registre­se que o despolitiza<strong>da</strong>mente aqui<br />

não tem nenhum sentido valorativo ou ideológico, mas, tão­somente, de dizer que excluímos o<br />

componente político embutido na expressão ‘organização do espaço’.<br />

8 Retomo aqui uma categoria que explorei amplamente em minha dissertação de mestrado e qu,<br />

na ver<strong>da</strong>de, tomei empresta<strong>da</strong> de João Bernardo em Marx crítico de Marx, obra em 3 volumes,<br />

publica<strong>da</strong> pela Editora Afrontamento, Porto, Portugal, 1978. a mesma categoria aparece em uma<br />

obra de divulgação do mesmo autor sob o título O inimigo oculto, também publica<strong>da</strong> pela mesma<br />

editora em 1980 e que circulou no Brasil em edição pirata.<br />

9 Mantenho esses advérbios lá e ali exatamente para caracterizar um determinado olhar que,<br />

como tal, sempre se dá a partir de um determinado ponto de vista, que é como, tecnicamente, na<br />

geometria se define a perspectiva.


extrativismo, expressão de primitivismo na perspectiva desses<br />

colonizadores, as colônias agrícolas.<br />

Deste modo, Guerra fala não só de um espaço geográfico que,<br />

objetivamente, nos fornece <strong>da</strong>dos. Ele encarna uma práxis que advém<br />

de um lugar social próprio, com uma visão própria, no caso, um<br />

'técnico <strong>da</strong> gestão territorial do Estado', de fora, vindo <strong>da</strong> capital, do<br />

Rio de Janeiro que encarnava uma perspectiva territorialista, como<br />

bem o diz Arrighi,1995, própria do Estado.<br />

Do lugar social a partir do qual se inscreve (e escreve sobre)<br />

nesse/naquele espaço geográfico revela, pela própria ambigüi<strong>da</strong>de de<br />

seu texto, a emergência dos seringueiros autônomos. Na condenação<br />

do latifúndio, Guerra mantém um distanciamento engajado,<br />

convocando a depor diferentes 'autori<strong>da</strong>des federais', como se não<br />

fôra ele mesmo um autori<strong>da</strong>de federal. Assim, por meio deles,<br />

condena o latifúndio. O mesmo com relação à legislação (ou falta de)<br />

trabalhista pois, como dissera Leandro Tocantins, a lei nos seringais<br />

era o Winchester ou o 44.<br />

A perspectiva desses que vêm de longe com seus pré­conceitos<br />

chega a ser surpreendente. Teixeira Guerra, por exemplo, não dedica<br />

um único capítulo que seja à análise <strong>da</strong> floresta, fenômeno que se<br />

impõe não só como um <strong>da</strong>do <strong>da</strong> natureza acreana, mas também na<br />

vi<strong>da</strong> socioeconômica <strong>da</strong> sua população. Guerra, ao contrário, dedica<br />

grande parte <strong>da</strong> sua análise <strong>da</strong> geografia física acreana ao clima e,<br />

sobretudo, à formação dos solos. Sabemos que esse era um tema que<br />

o autor tinha um domínio mais apurado. To<strong>da</strong>via, o seu texto revela<br />

mais que isso. O inventário do clima e do solo se colocava como<br />

condição <strong>da</strong> superação do extrativismo e, por isso, a floresta não foi<br />

objeto de tratamento detalhado.<br />

Estamos, pois, diante de um 'desmatamento epistemológico',<br />

posto que a floresta já havia sido retira<strong>da</strong> <strong>da</strong>s preocupações dos 'de<br />

fora'. Tratava­se de estimular o desenvolvimento <strong>da</strong> agricultura<br />

através <strong>da</strong> criação de colônias para isso é importante a análise<br />

detalha<strong>da</strong> do solo e <strong>da</strong> disponibili<strong>da</strong>de de água, umi<strong>da</strong>de, insolação,<br />

variação térmica 10 . Guerra dedica um capítulo de na<strong>da</strong> menos, 58<br />

10 A tentativa de derrubar as florestas para implantar sistemas agropastoris, com base em<br />

tecnologias elabora<strong>da</strong>s para outros ecossistemas, tem sido comum na história <strong>da</strong> Amazônia.


páginas aos Aspectos Gerais <strong>da</strong> Colonização. Principais Colônias<br />

Agro­pastoris. O Extrativismo nas Colônias, no qual este último<br />

aspecto, se impôs pela sua onipresença aos de fora. Afinal, por onde<br />

Guerra andou se fazia o extrativismo, até mesmo nas colônias onde<br />

ele deveria ter sido suprimido.<br />

A vontade prévia de ver a agricultura era tanta que, mesmo já<br />

tendo dedicado um capítulo às colônias, e que ocupara um grande<br />

espaço o autor, ain<strong>da</strong>, no capítulo 'Aspectos Gerais <strong>da</strong> Economia e<br />

Meios de Vi<strong>da</strong>', onde o que existe deveria se sobrepor ao desejo, o<br />

espaço está dividido entre o extrativismo (33 páginas) e à agricultura<br />

e à pecuária (32 páginas).<br />

E, mais, Teixeira Guerra em várias passagens deixa escapar sua<br />

dificul<strong>da</strong>de de reconhecer explicitamente esses que chamamos<br />

seringueiros autônomos ou seringueiros libertos. Esse fato se<br />

evidencia quando observamos que o autor não se sente bem em<br />

admitir como colônias determina<strong>da</strong>s aglomerações cria<strong>da</strong>s pelas<br />

Assim, o conhecimento já alcançou o senso comum científico no qual as chuvas abun<strong>da</strong>ntes e<br />

torrenciais tendem a erodir os solos, além de acentuar o processo de laterização­lixiviação. Isso<br />

tem levado a que se faça um juízo negativo a respeito do potencial dos seus solos que, mais uma<br />

vez, revela muito mais respeito dos que fazem esses (pré) juízos do que sobre os próprios solos.<br />

Já se tornou lugar comum dizer que os solos <strong>da</strong> Amazônia são pobres e que é uma ilusão achar<br />

que o fato de sobre eles crescer a mais rica biomassa por uni<strong>da</strong>de de área do planeta não significa<br />

que esses solos sejam ricos. Costuma­se afirmar que a floresta vive de si mesma, pois ela se<br />

desenvolve a partir <strong>da</strong> rica matéria orgânica que ela fornece ao solo. Diz­se que se for retira<strong>da</strong><br />

essa floresta, cessa a fonte de matéria orgânica, e, a partir <strong>da</strong>í, conclui­se que por isso os solos<br />

em si mesmos são pobres. Há, aqui, uma artimanha no argumento que precisa ser devi<strong>da</strong>mente a<br />

analisado. A primeira deriva do próprio método cartesiano de análise, que dissocia o solo <strong>da</strong><br />

floresta. É como se amputassem os braços de uma pessoa e, depois, a condenasse por ser aleija<strong>da</strong>.<br />

Ao separar a floresta do solo, o que se está a revelar é o esquartejamento <strong>da</strong> natureza, bem<br />

característico de um socie<strong>da</strong>de cuja divisão do trabalho para a produção de mercadorias expressa<br />

a prática de que uns só se interessem pelos solos, outros só por determina<strong>da</strong> espécie de madeira<br />

<strong>da</strong> floresta, outros pelo subsolo. Este tipo de análise revela mais sobre a cultura e a socie<strong>da</strong>de dos<br />

que querem colonizar ou dominar a região do que sobre a complexi<strong>da</strong>de dos solos ou dos<br />

ecossistemas regionais. Na ver<strong>da</strong>de, já se faz um desmatamento a partir <strong>da</strong> própria metodologia.<br />

Não parte <strong>da</strong> própria reali<strong>da</strong>de do ecossistema que, por si mesmo, fabricou, com aqueles<br />

nutrientes, aquela biomassa. A constatação mais óbvia e primeira que se deve retirar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

amazônica é que seus solos não são ricos ou pobres; eles compatíveis com a floresta. Mas não<br />

é <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> cultura européia dominante entre as elites brasileiras e mesmo entre setores <strong>da</strong>s<br />

elites amazônicas, a convivência coma a floresta, mas sim, a sua derruba<strong>da</strong>. É isso que chamam<br />

de cultura, isto é, a submissão <strong>da</strong> natureza aos desígnios do homem. E, pior, achar que a única<br />

maneira de faze­lo é <strong>da</strong> forma que o fazem. É claro que dizer que os solos <strong>da</strong> Amazônia são<br />

compatíveis com a floresta implica olhar com mais atenção e com menos preconceito a cultura<br />

<strong>da</strong>s populações que aprenderam a conviver com essa floresta. E, assim, a floresta amazônica não<br />

seria um vazio demográfico.


próprias famílias de produtores. Vejamos o que nos diz Teixeira<br />

Guerra a respeito de Vila Epitácio, no município de Brasiléia.<br />

'Em Brasiléia existem em formação três colônias: Carmem,<br />

Nazaré e Bela Flor, esta última conheci<strong>da</strong> por Vila Epitácio e<br />

localiza<strong>da</strong> a poucos quilômetros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. (...)<br />

Vila Epitácio é constituí<strong>da</strong> por um agrupamento de casa de<br />

lavradores, os quais têm os seus campos de cultura distantes<br />

aproxima<strong>da</strong>mente 4 quilômetros de suas residências. (...)<br />

No que diz respeito à organização esta colônia de Brasiléia,<br />

praticamente na<strong>da</strong> existe. E, esta situação é de tal forma confusa que,<br />

ao se chegar à região, não se sabe se se trata de uma colônia ou de um<br />

povoado'. (Guerra,1955:166).<br />

Note­se a preocupação com a organização que, obviamente, diz<br />

mais de quem está falando do que <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de mesma. Mas é assim<br />

que a reali<strong>da</strong>de dos que não têm voz fala, enfim nos interditos, nas<br />

entrelinhas, do ambíguo discurso <strong>da</strong>queles que se vêem obrigados a<br />

invocá­los para se afirmar. Logo a seguir, volta a demonstrar a<br />

mesma ambigüi<strong>da</strong>de quando fala do município de Cruzeiro do Sul<br />

onde faz referência<br />

'a três colônias, a saber: Rodrigues Alves, Assis Brasil e Vila<br />

Japiim. Dessas a mais organiza<strong>da</strong> é a Rodrigues Alves...'(...)<br />

'Quanto à colônia <strong>da</strong> Vila Japiim não podemos ain<strong>da</strong> fornecer<br />

<strong>da</strong>dos de produção, em virtude <strong>da</strong> inexistência dos mesmos. Aliás,<br />

este fato advém <strong>da</strong> circunstância de não existir uma colonização<br />

organiza<strong>da</strong> e sim um agrupamento de lavradores próximos <strong>da</strong> sede <strong>da</strong><br />

villa Japiim.' (Guerra, 1955:169).<br />

Observe­se que as duas colônias autênticas, posto que<br />

organiza<strong>da</strong>s, têm nomes de autori<strong>da</strong>des federais, os que organizam.<br />

A contradição entre o desejo de Guerra e a reali<strong>da</strong>de posta por<br />

aqueles que faziam a sua própria geografia, que organizavam seu<br />

próprio espaço autonomamente, à revelia <strong>da</strong>queles que queriam<br />

organizá­los segundo uma outra racionali<strong>da</strong>de e para quem aparecem


como 'esta situação (...) de tal forma confusa', se manifesta logo no<br />

parágrafo seguinte quando constata que apesar de não ser<br />

'uma colônia organiza<strong>da</strong> e sim um agrupamento de lavradores'<br />

(...) 'informações colhi<strong>da</strong>s através de inquéritos feitos em Vila Japiim<br />

e na própria ci<strong>da</strong>de de Cruzeiro do Sul, a produção desta colônia é<br />

importante para o abastecimento <strong>da</strong> própria ci<strong>da</strong>de. Aí, ao contrário<br />

do que vimos na colônia Rodrigues Alves, predomina a ativi<strong>da</strong>de<br />

agrícola e não a extrativa' (Guerra, op.cit.: 169­170).<br />

E, finalmente, veremos Guerra registrar o realismo com que os<br />

técnicos do governo federal tentam se apropriar <strong>da</strong> lógica própria que<br />

havia sido cria<strong>da</strong> pelo(a)s agricultore(a)s­seringueiro(a)s e submetê­<br />

los à sua própria racionali<strong>da</strong>de. Diz Guerra:<br />

'Após estu<strong>da</strong>rmos de modo circunstanciado as colônias mais<br />

importantes nos diversos municípios, torna­se mais fácil compreender<br />

a função dessas 'colônias' acreanas", que somente com grande<br />

dificul<strong>da</strong>de conseguem fixar alguns poucos colonos, devido ao fato<br />

de os mesmos preferirem dedicar­se ao extrativismo. Mas, mesmo<br />

dentro dos lotes, existem grandes possibili<strong>da</strong>des para o extrativismo,<br />

e mais especialmente o vegetal. E, aí está a razão por que em certas<br />

colônias a produção extrativa é superior à produção agrícola, como já<br />

tivemos oportuni<strong>da</strong>de de salientar. No seringal Empresa, o<br />

'Departamento de Produção' está incentivando o plantio de héveas,<br />

por conseguinte num futuro próximo a produção de borracha tenderá<br />

a aumentar, caso o empreendimento seja levado a cabo de modo<br />

sistemático' (Guerra, op. cit.:170­171).<br />

Enfim, o extrativismo <strong>da</strong> seringueira seria 'incentivado' pelo ...<br />

'plantio de heveas' e, assim, não mais extrativismo e sim agricultura.<br />

Os conflitos , como vemos, explodem por todo lado, tanto no plano<br />

teórico como prático. Aliás, aqui, esses dois planos caminham muito<br />

próximos. Já o vimos entre as noções de povoado ou de colônia, ou<br />

entre a vila ou a colônia organiza<strong>da</strong>, essa palavra mágica.<br />

Mas não só. Aparece, também, pela distinção entre colonização e<br />

desbravamento.Observe:<br />

'grande parte <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s 'colônias' são na ver<strong>da</strong>de áreas de<br />

desbravamento e de tentativa de povoamento, pois o homem até o<br />

presente só se tem podido estabelecer ao longo dos rios ... (Guerra,<br />

op. Cit, p.171)


Guerra recorre novamente ao Departamento de Produção:<br />

'Distinguimos o povoamento de colonização porque, se neste o<br />

elemento se vincula e fixa à terra pelos direitos de proprie<strong>da</strong>de,<br />

naquele não passa de um elemento de colaboração flutuante, capaz ou<br />

inapto para enfrentar as dificul<strong>da</strong>des à vi<strong>da</strong> do trabalhador nos<br />

seringais'. (Idem, idem p.171)<br />

Destaque­se aqui a evidente contradição dessa afirmação com<br />

aquela que, déca<strong>da</strong>s atrás, nossos intelectuais os diplomatas não se<br />

cansaram de falar <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de do povoamento dos seringueiros<br />

contra os caucheros peruanos ou bolivianos.<br />

Nessa tensão prático­teórica entre desbravadores e<br />

colonizadores se esconde um problema de fundo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

acreana: a questão <strong>da</strong> apropriação dos seus recursos naturais, <strong>da</strong>s suas<br />

árvores, <strong>da</strong>s suas terras. Por esse ângulo conseguimos observar a<br />

existência desse protagonista que é o seringueiro autônomo. E aqui se<br />

põem em contato (1) os trabalhadores diretos, (2) os que se<br />

apresentam como donos dos seringais e (3) os gestores do Estado no<br />

Território onde afini<strong>da</strong>des, alianças e conflitos se manifestam.<br />

Em virtude do caráter de Território Federal a situação fundiária do<br />

Acre 'não estava defini<strong>da</strong>'. Assim se pronunciara o Professor Ruy<br />

Cirne Lima que, acrescenta,<br />

'as terras do Acre tiveram sua alienação regula<strong>da</strong> pelo Decreto<br />

no. 10.105 de 5 de março de 1913, modificado em parte pelo Decreto<br />

no. 10.320 de 7 de julho <strong>da</strong>quele ano. A execução desses decretos<br />

está, porém, suspensa pelo de no. 11.485 de fevereiro de 1915, ­ "até<br />

que se organize a lei de terras". (...)<br />

Dispondo sobre a alienação <strong>da</strong>s terras devolutas, então<br />

incorpora<strong>da</strong>s ao domínio nacional, tornou­se, portanto, inaplicável,<br />

ante a atribuição <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de delas aos Estados, declara<strong>da</strong> pelo<br />

artigo 64 <strong>da</strong> Constituição de 1891, ­ salvo quanto ao território do<br />

Acre, ain<strong>da</strong> sob jurisdição federal' (Lima, 1954, p.68).


Teixeira Guerra, meticuloso que é, também destacara esse<br />

aspecto fun<strong>da</strong>mental para se entender a socie<strong>da</strong>de acreana e a<br />

configuração <strong>da</strong>s suas relações socioespaciais. Diz ele que no Acre:<br />

'não há terras devolutas, devido à entra<strong>da</strong> aventurosa dos<br />

pioneiros do primeiro ciclo econômico <strong>da</strong> borracha, que foram<br />

mantidos após o Tratado de Petrópolis. Podemos dizer, portanto, que<br />

a colonização oficial se vem fazendo em terras adquiri<strong>da</strong>s para esse<br />

fim pelo governo do Território' (Guerra, 1955: p.171) 11 .<br />

E passa o nosso autor a nos narrar casos de várias áreas<br />

adquiri<strong>da</strong>s pelo governo do Território Tederal:<br />

'núcleo colonial Seringal Empresa (80.000 ha), colônia 'Guiomard<br />

dos Santos', em Rio Branco, colônias 'Porto Manso' (2.000 ha) e<br />

'Santo Antonio' (143 ha) em Xapuri; Seringal 'Nazaré' (900 ha), em<br />

Brasiléia; colônias 'Japiim' (1.500 ha) e 'Rodrigues Alves' (1.300 ha),<br />

em Cruzeiro do Sul; colônia 'Assis Vasconcellos' (100 ha), no<br />

município de Feijó; <strong>da</strong> 'Fazen<strong>da</strong> Modelo' e <strong>da</strong> 'Fazen<strong>da</strong> Agricultura',<br />

em Sena Madureira. Paralelamente, verifica­se o fenômeno <strong>da</strong> posse<br />

compulsória, em zonas onde a densi<strong>da</strong>de demográfica e a capaci<strong>da</strong>de<br />

de consumo favorecem a existência <strong>da</strong> pequena proprie<strong>da</strong>de rural. Tal<br />

fenômeno é patente nos municípios de Rio Branco (colônia do<br />

seringal 'Nova Empresa' ), Xapuri (colônia do seringal 'Nova<br />

Esperança') e Brasiléia (colônia dos seringais 'Bela Flor' e 'Carmem')<br />

que constituem problemas pertinentes aos próximos exercícios<br />

financeiros.<br />

'De ano para ano, a compra de terras por parte do governo tem­<br />

se tornado uma necessi<strong>da</strong>de, pois os seringais, mais próximos dos<br />

centros urbanos, sofrem a princípio uma pequena infiltração e<br />

posteriormente se avoluma o número de lavradores, o que acarreta<br />

finalmente a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> compra <strong>da</strong> área do referido seringal por<br />

parte do governo'.<br />

11 É que o governo brasileiro havia se comprometido por aquele tratado a respeitar os registros de<br />

proprie<strong>da</strong>de que houvessem sido feitos nas diferentes configurações jurídicas que se<br />

estabeleceram sobre as terras dos altos rios Juruá e Purus e que não foram poucas. Cito o Estado<br />

Independente do Acre, sob a liderança de Galvez; o Estado Independente do Acre, sob a liderança<br />

de Plácido de Castro; o Estado <strong>da</strong> Bolívia e, ain<strong>da</strong>, o Estado do Amazonas que durante um bom<br />

tempo nutriu as esperanças de que essas/aquelas terras ficassem sob a sua jurisdição.


O relato de Guerra se faz com um enquadramento prévio que<br />

aponta para uma colonização de pequenos proprietários que, embora<br />

correspon<strong>da</strong> a um dos processos que está em curso, está longe de ser<br />

o único. Nem todos os seringais que estavam sendo desapropriados<br />

por iniciativa do governo localizavam­se nas proximi<strong>da</strong>des dos<br />

centros urbanos 'em zonas onde a densi<strong>da</strong>de demográfica e a<br />

capaci<strong>da</strong>de de consumo favorecem a existência <strong>da</strong> pequena<br />

proprie<strong>da</strong>de rural', tal como quer Guerra.<br />

É o que se vê, por exemplo, em uma região bem longe dos<br />

centros urbanos, como na margem esquer<strong>da</strong> do rio Moa, numa área<br />

com 3.650.000 m 2 , onde está<br />

'a colônia Assis Brasil [que] foi adquiri<strong>da</strong> por compra feita pelo<br />

governo federal e embora fosse fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 30 de dezembro de 1931,<br />

até o presente momento ain<strong>da</strong> não foi lotea<strong>da</strong>. A entra<strong>da</strong> e a<br />

localização do colono nas terras desta colônia são feitas sem obedecer<br />

a nenhum plano e nenhuma orientação...'<br />

No relatório de 1952 do Diretor de Produção ao então<br />

governador João Kubitschek de Figueiredo pode­se ler que<br />

'As aquisições de novas glebas, a fim de evitar constantes<br />

atritos entre o arren<strong>da</strong>tário do seringal Bela Flor, no município de<br />

Brasiléia, e os agricultores que se localizaram compulsoriamente em<br />

terras do dito seringal, o governo do território adquiriu, <strong>da</strong> cita<strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de, pela quantia de Cr$ 160.000,00, uma gleba de<br />

34.078.921 m2, 1/4 do qual no próximo ano será loteado e entregue<br />

aos colonos já domiciliados' (Guerra, op.cit.: p. 172).<br />

Mais adiante, na página 246 dessa mesma obra, Teixeira<br />

Guerra volta a discorrer sobre esses colonos de Brasiléia falando <strong>da</strong><br />

'invasão lenta que estes seringais vêm sofrendo por parte dos<br />

'colonos' ou, mais exatamente, por lavradores que praticam a<br />

plantação de alguns poucos produtos para subsistência, e também a<br />

coleta de produtos silvestres, gerando problemas de posse <strong>da</strong> terra...".<br />

A importância desses colonos dos seringais Carmem e Nazaré<br />

pode ser vista pelo número de vezes em que é citado. Guerra, por<br />

exemplo, volta a se referir à 'Fazen<strong>da</strong> São José' dizendo que nela há<br />

'u'a máquina para beneficiar arroz, o qual é comprado dos colonos<br />

dos seringais Carmem e Nazaré.' (Guerra, op.cit.:p.246).


Ou, ain<strong>da</strong>, quando nos diz que a mesma fazen<strong>da</strong> é<br />

'que fornece 'aviamento' para os seringueiros dos seringais<br />

Nazaré e Carmem. Para os seringueiros deste último, as ven<strong>da</strong>s são<br />

feitas a dinheiro, enquanto para os de Nazaré o 'aviamento' é feito na<br />

base <strong>da</strong> confiança.<br />

Neste último caso, o dono <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> São José funciona como<br />

se fosse o seringalista, recebendo em troca a borracha e a castanha<br />

que estes lhe trazem na época <strong>da</strong> safra' (Guerra, op.cit.:p. 244).<br />

Esses colonos, sobretudo os do seringal Carmem surgem,<br />

assim, como um belo exemplo de seringueiro autônomo. Ora<br />

aparecem como sendo colonos, ora como sendo seringueiros. A<br />

ambigüi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> caracterização fala por si mesma. Há um fantasma<br />

ron<strong>da</strong>ndo as fazen<strong>da</strong>s, na ver<strong>da</strong>de, seringais que, em crise, são<br />

assumidos pelos trabalhadores diretos que, como agricultore(a)s­<br />

extrativistas, procuram garantir sua auto­subsistência e, ao mesmo<br />

tempo, se manter ligados ao mercado.<br />

<strong>12</strong>.2 ­ OS <strong>SERINGUEIROS</strong> LIBERTOS, NAS ESTATÍSTICAS ...<br />

OCUPANTES<br />

As estatísticas acabam por registrar esses sem­proprie<strong>da</strong>de­<br />

legal por meio <strong>da</strong> categoria de ocupante. Categoria ausente no censo<br />

de 1920, já aparece no censo de 1940, com cerca de 14% do total dos<br />

'responsáveis pelos estabelecimentos'. Aquele movimento de fundo<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de acreana, que caracterizamos anteriormente e expresso<br />

naqueles que, para sobreviver buscam sua autonomia, viria, pouco a<br />

pouco, emergindo até mesmo nas estatísticas oficiais que começam a<br />

reconhecê­los, muito embora com esse nome de ocupante <strong>12</strong> e se<br />

acentua com a crise que atinge os Coronéis de Barranco que começa<br />

a se delinear com o redesenho <strong>da</strong>s articulações políticas nacionais,<br />

sobretudo após 1958. A partir de então, o Acre verá emergir por to<strong>da</strong><br />

a parte aqueles que souberam conviver com a floresta praticando, ao<br />

mesmo tempo, a agricultura, a coleta, a pesca, a caça. Aqueles que<br />

promoveram o uso múltiplo dos recursos naturais e que forjaram uma<br />

territoriali<strong>da</strong>de que sur<strong>da</strong>mente foi se afirmando e consoli<strong>da</strong>ndo. Seu<br />

<strong>12</strong> Ou, então, com a ambigüi<strong>da</strong>de já posta de colonos ou aglomerado de lavradores; ou<br />

desbravadores ou colonizadores; ou invasores ou aqueles que têm posse compulsória.


sentido de autonomia, desenvolvido nas circunstâncias, é que lhes<br />

tem permitido sobreviver às oscilações do mercado 13 . Como nunca<br />

recusaram o mercado esses seringueiros libertos desenvolveram<br />

práticas que, talvez, nos permitam vislumbrar outras alternativas<br />

paradigmáticas, até porque portam matrizes de racionali<strong>da</strong>de outras<br />

que, no entanto, experimentaram durante longos períodos essa<br />

relação tensa e contraditória com a lógica econômica hegemônica.<br />

Relembremos que, talvez, nenhuma socie<strong>da</strong>de tenha vivido tão<br />

intensa e profun<strong>da</strong>mente sob a 'cultura do mercado' do que a<br />

socie<strong>da</strong>de acreana, sobretudo durante a Territoriali<strong>da</strong>de Seringalista<br />

(1850/70 a 19<strong>12</strong>­1920). Foi dessa crise, seria melhor dizer contra sua<br />

crise, que emergiu, desde então, esses que tiveram que ser<br />

previdentes, diversificar sua produção, fazer uso múltiplo dos<br />

recursos naturais, revolucionar as relações de gênero, constituir um<br />

espaço doméstico de reprodução, incorporar a matriz de<br />

racionali<strong>da</strong>de indígeno­cabocla e, por essa via, se tornaram povos <strong>da</strong><br />

floresta.<br />

Desde essa época que se diz que a borracha está em crise.<br />

To<strong>da</strong>via, a borracha jamais deixou de ser produzi<strong>da</strong> no Acre. E essa<br />

sobrevivência <strong>da</strong> produção de borracha, sem dúvi<strong>da</strong>, se deveu ao fato<br />

de uma outra lógica, que não a econômico­mercantil, ter passado a<br />

coman<strong>da</strong>r a produção e a reprodução <strong>da</strong>quelas relações<br />

socioespaciais. Sem dúvi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s matrizes de racionali<strong>da</strong>de dos<br />

sertanejos nordestinos, dos caboclos, dos indígenas se forjou uma<br />

relação própria com o espaço que, nas circunstâncias <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s<br />

1970 e 1980, cobrará seu lugar ao sol, que quer ser vista porque quer<br />

ser reconheci<strong>da</strong>.<br />

<strong>12</strong>.3 ­ Os Ocupantes ou O Vazio Demográfico Tem Gente<br />

13 Aliás, ali a lógica do mercado para se impor, com seus critérios de rentabili<strong>da</strong>de, lucrativi<strong>da</strong>de,<br />

competitivi<strong>da</strong>de terá, sempre, que partir de uma produtivi<strong>da</strong>de maior para compensar as<br />

distâncias. Ou, então, ter uma ‘ren<strong>da</strong> de monopólio’ de um produto, como foi a Hevea<br />

brasiliensis numa determina<strong>da</strong> conjuntura. Não é sem razão que, nas regiões mais afasta<strong>da</strong>s dos<br />

grandes centros de mercado, o garimpo aparece como ativi<strong>da</strong>de ‘racional’, economicamente<br />

falando. Ou, então, ativi<strong>da</strong>des que fazem uso extensivo <strong>da</strong> terra que, por ser mais barata,<br />

‘compensa’ a menor produtivi<strong>da</strong>de com o seu uso extensivo /e ou pre<strong>da</strong>tório. Assim, se impõe a<br />

racionali<strong>da</strong>de econômica. Para quem está preocupado com o curto prazo é racional, por exemplo,<br />

queimar floresta, pois, como dissera o Lord Keynnes, no futuro estaremos todos mortos’.


Todo o debate acerca <strong>da</strong>s transformações recentes na<br />

socie<strong>da</strong>de/geografia do Acre, tanto nos meios políticos como<br />

acadêmicos, tem ressaltado que os seringais mu<strong>da</strong>ram de donos ao<br />

longo dos anos 1970, introduzindo, assim, um forte componente<br />

regionalista com destaque para o 'paulista', termo que enquadra o<br />

fazendeiro/pecuarista que chega a partir dos anos setenta vindo dos<br />

mais diferentes lugares e não só de São Paulo.<br />

Figura 44. Condição social dos responsáveis pelos estabelecimentos,<br />

por município ­ /Acre –1940<br />

Referenciar a figura no texto.<br />

Há uma questão teórico­conceitual que se impõe<br />

preliminarmente. Indicaremos o seu caráter geral, necessário para que<br />

se compreen<strong>da</strong> o que segue, para uma retoma<strong>da</strong> com mais detalhe<br />

adiante. Trata­se dos efeitos de uma gama de conceitos e<br />

preconceitos historicamente construí<strong>da</strong> acerca do ‘ mundo dos<br />

seringais’ a partir de categorias extraí<strong>da</strong>s de outros contextos.<br />

Refiro­me aqui, em particular, à ‘prática teórica’ de analisar o que se<br />

passa no meio rural sempre a partir <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de fundiária ou, para<br />

ser mais preciso, <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra. Assinalemos, por ora, que<br />

no Acre, até os anos 1960, o objeto ou meio de trabalho não era a<br />

terra e sim a floresta, mais especificamente, a extração <strong>da</strong> seringueira,<br />

a coleta <strong>da</strong> castanha, a extração de peles de animais etc. Deste modo,<br />

o seringalista não era propriamente proprietário <strong>da</strong> terra. Ademais,<br />

retomemos, havia uma tensão inscrita no interior do seringal entre<br />

patrão e seringueiro em que um, o patrão, busca afirmar seu poder<br />

através <strong>da</strong> cobrança de ren<strong>da</strong> e o outro, o seringueiro, busca sua<br />

maior autonomia, com a diversificação de suas ativi<strong>da</strong>des produtivas.<br />

Relembremos aqui, com Mauro Almei<strong>da</strong>, que o número de dias<br />

trabalhados pelos seringueiros passou de uma média de 180 dias<br />

durante o período áureo do seringal empresa para uma média de 60<br />

dias a partir <strong>da</strong> sua crise e a busca de autonomização dos<br />

seringueiros­agricultores­caçadores­coletores. Essa tensão de<br />

territoriali<strong>da</strong>des atravessa to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de/geografia acreana.<br />

Vamos, agora, aos <strong>da</strong>dos.<br />

Figura 45. Número de estabelecimentos, segundo a condição social<br />

dos responsáveis – Acre 1940 –1970.


Os <strong>da</strong>dos oficiais do IBGE aju<strong>da</strong>m a compreender um processo<br />

mais profundo que, por baixo, reorganizava o espaço sociogeográfico<br />

acreano e que, acreditamos, sem a sua compreensão não<br />

conseguiremos entender a emergência de uma forte resistência dos<br />

seringueiros nesses mesmos anos setenta. De fato, os seringais<br />

mu<strong>da</strong>ram de donos mas não em direção aos 'paulistas' nem,<br />

tampouco, a partir dos anos 1970. Na ver<strong>da</strong>de, os seringais já vinham<br />

mu<strong>da</strong>ndo de donos desde muito, mas em direção aos ... seringueiros<br />

autônomos! Vejamos.<br />

Já a partir dos anos 50, é possível identificar dois processos<br />

extremamente significativos <strong>da</strong>s transformações pelos quais passava<br />

a socie<strong>da</strong>de/geografia acreana. De um lado, temos o crescimento do<br />

peso relativo dos proprietários entre os 'responsáveis pelos<br />

estabelecimentos rurais' do então Território Federal do Acre.<br />

Observe­se que o salto desta categoria é de 37% em 1950 para 50%<br />

em 1960. Nesse mesmo período cai significativamente de 42% para<br />

21% a categoria dos arren<strong>da</strong>tários. Aqui, sem dúvi<strong>da</strong>, estamos diante<br />

não só do aumento dos pequenos proprietários nas colônias cria<strong>da</strong>s<br />

pelo governo federal no após guerra como, também, de uma<br />

ver<strong>da</strong>deira busca de legitimação junto ao Banco de Crédito <strong>da</strong><br />

Amazônia que, sobretudo a partir dos inícios dos anos 50, passa a<br />

exigir a terra como caução para os financiamentos que fazia aos<br />

seringalistas 14 .<br />

Figura 46. Estabelecimentos segundo a condição social dos<br />

responsáveis pelos estabelecimentos (%) – Acre 1940.<br />

Figura 47 – Área ocupa<strong>da</strong> segundo a condição social dos<br />

responsáveis pelos estabelecimentos _­ Acre – 1970.<br />

Observa­se, no entanto, nesse mesmo período, um outro<br />

processo expresso na quadruplicação do número <strong>da</strong>queles que vivem<br />

à margem de qualquer institucionali<strong>da</strong>de, que vivem por si mesmos e<br />

que são caracterizados nos censos como Ocupantes: passam de 14%<br />

em 1950, o mesmo percentual de 1940, para na<strong>da</strong> mais na<strong>da</strong> menos<br />

que 25% em 1960! Ora, temos aqui 1/4 de todos os estabelecimentos<br />

14 A aliança política aludi<strong>da</strong> acima entre os seringalistas e os gestores estatais federais garantia<br />

não só o financiamento, como os preços e a compra do produto.


do Acre rurais tendo como seus responsáveis na<strong>da</strong> menos do que os<br />

ocupantes.<br />

Os anos 1960, captados no censo de 1970, verão, de um lado, o<br />

número de proprietários passar de 5.539 para 9.615 tendo, no entanto,<br />

seu percentual decrescido de 50% para 17% no total de responsáveis<br />

pelos estabelecimentos rurais do Acre! Por outro lado, atente­se, o<br />

número de ocupantes havia sido multiplicado por dez, passando de<br />

2.581 em 1960 para 25.382 em 1970!. Relativamente isso significou<br />

passar de 25% para 44% do total dos responsáveis pelos<br />

estabelecimentos rurais! Estamos, pois, diante de uma ver<strong>da</strong>deira<br />

revolução silenciosa na socie<strong>da</strong>de/geografia acreana.<br />

Aproxima<strong>da</strong>mente, 50% do total dos seus estabelecimentos rurais<br />

têm como responsáveis reconhecidos pelo Censo uma categoria que<br />

se caracteriza por ser aquela<br />

'em que a exploração se processa em terras públicas, devolutas<br />

ou de terceiros (com ou sem consentimento do proprietário), na<strong>da</strong><br />

pagando o produtor pelo seu uso' (FIBGE, 1985 : XIV).<br />

Figura 48 – Evolução do número de estabelecimentos, segundo a<br />

condição social dos responsáveis – Acre 1940 –1970.<br />

Em outras palavras, quase a metade dos responsáveis pelos<br />

estabelecimentos rurais do Acre em 1970 é de um segmento<br />

desprovido de qualquer institucionali<strong>da</strong>de formal posto que opera ou<br />

em terras públicas ou devolutas, ou mesmo de terceiros, com ou sem<br />

consentimento, na<strong>da</strong> pagando pelo seu uso. Assim, esses ocupantes<br />

não têm nenhuma relação configura<strong>da</strong> como de direito até porque,<br />

como oficialmente o IBGE formula essa categoria, as terras que<br />

ocupam por serem ou públicas ou devolutas, de direito pertencentes<br />

ao Estado, ou sendo de terceiros, usando­as com ou sem<br />

consentimento desse proprietário, não configura desse modo<br />

nenhuma relação de direito trabalhista. Nem relação de proprie<strong>da</strong>de,<br />

nem relação trabalhista. É como se a maior parte dos que produzem<br />

no meio rural e nas florestas acreanas o fizesse à margem do Estado.<br />

Figura 49 – Número de estabelecimentos, segundo a condição social<br />

dos responsáveis e por município.


Daí essa denominação, aparentemente anódina mas plena de<br />

significação, como uma categoria que está aquém <strong>da</strong> condição<br />

biológica, posto que ocupar um lugar no espaço é a condição mais<br />

banal de todo corpo físico submetido à lei, não dos homens, mas <strong>da</strong><br />

gravi<strong>da</strong>de! E, no entanto, eles se movem e ... falam<br />

'Então ele 15 vendeu esse mundo de terra com todos esses<br />

posseiros, ele deve ter vendido os posseiros também e nós não<br />

aceitamos que nós somos tão bandidos pra ser comprados. (...) Prá<br />

nós a terra tem valor porque é a nossa vi<strong>da</strong>. Não pode ser vendi<strong>da</strong>,<br />

que nós não vendemos a nossa vi<strong>da</strong>'. (Duarte, 1987: 113).<br />

Figura 50 – Área ocupa<strong>da</strong> (ha) pelos estabelecimentos por grupo de<br />

área – Acre – 1970.<br />

Esses ocupantes, já em 1960, tinham uma presença dominante<br />

nos municípios de Brasiléia e Xapuri, no vale do Acre e, em 1970,<br />

dominavam em todos os municípios acreanos, com exceção apenas<br />

de Cruzeiro do Sul e Tarauacá, ambos no vale do Juruá, onde<br />

predominavam os Arren<strong>da</strong>tários. Registre­se ain<strong>da</strong> que em Rio<br />

Branco, embora os ocupantes não sejam maioria absoluta,<br />

correspondem a 43% dos responsáveis pelos estabelecimentos! Neste<br />

município, assim como em Brasiléia, é preciso destacar o peso dos<br />

Proprietários, 30% e 41% respectivamente, sendo que essa<br />

importância se deve, sobretudo, aos proprietários com<br />

estabelecimentos de menos de 10 hectares e entre 10 e 100 hectares.<br />

Quando desmembramos esses <strong>da</strong>dos por grupos de categorias<br />

de tamanho lá vemos que a maior parte desses ocupantes está no<br />

grupo de 100 a 500 hectares e se a ele acrescentarmos os<br />

proprietários do mesmo grupo que, por serem proprietários também<br />

não pagam ren<strong>da</strong> e, ain<strong>da</strong>, os cupantes do grupo de 500 a 1000<br />

hectares que, sabemos, no vale do Purus não permitiria mais que 3<br />

colocações de seringueiros e no Juruá não mais que duas colocações<br />

e, assim, não configuraria propriamente um seringalista e teremos<br />

uma dimensão do significado do seringueiros Autônomos no Acre em<br />

1970 16 . Assim, há boas razões, e não só estatísticas, para afirmar a<br />

15 Refere­se, aqui, ao seringalista que havia vendido as terras a fazendeiros.<br />

16 Como Teixeira Guerra já alertara, o trabalhador rural do Acre tem na extração de seringa uma<br />

espécie de ren<strong>da</strong> monetária imediata que nenhum outro produto propicia e, por isso, onde quer<br />

que se vá, por todo o Acre, sempre o que se vê é a figura do seringueiro­agricultor que, com a


importância dos seringueiros Autônomos no Acre antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong><br />

dos próprios 'paulistas' e, também, antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

Comuni<strong>da</strong>des Eclesiais de Base <strong>da</strong> Igreja Católica ­ as CEBs ­ ou <strong>da</strong><br />

Confederação Nacional dos Trabalhadores <strong>da</strong> Agricultura ­ a Contag.<br />

Figura 51 – Área ocupa<strong>da</strong> segundo o grupo de área e condição social<br />

do responsável – Acre – 1970.<br />

Além disso, o censo de 1970 assinala que 40% dos<br />

estabelecimentos rurais do Acre tinham menos de 100 hectares e<br />

58,5% tinham entre 100 e 1.000 hectares. Ora, o interessante aqui é<br />

que uma Colocação de seringa tem em média entre e 350 hectares<br />

nos vales do Acre­Purus e do Abunã e de 400 a 600 hectares no vale<br />

do Juruá e, assim, uma proprie<strong>da</strong>de de cerca de 1.000 hectares no<br />

Acre de 1970 comportava em média, no máximo, três colocações de<br />

seringa no vale do Acre e no Abunã, e cerca de duas colocações no<br />

vale do Juruá. O largo predomínio do grupo de estabelecimentos com<br />

100 a 1.000 hectares no Acre reforça a perspectiva de que são de<br />

seringueiros, sobretudo, de seringueiros autônomos até por que, como<br />

se viu a categoria de proprietários caiu para 17% do total.<br />

Figura 52 – Área ocupa<strong>da</strong> (ha) pelos estabelecimentos, segundo o<br />

grupo de área – Acre – 1970.<br />

Há uma geografia imaginária que faz parte <strong>da</strong> história<br />

incorpora<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> um de nós. Ela consagra um determinado<br />

estágio <strong>da</strong> correlação de forças políticas e simbólicas. Nessa<br />

geografia, os seringueiros eram, quando muito, ocupantes, lá no<br />

fundo <strong>da</strong>s estatísticas.Havia um silenciamento sobre suas práticas a<br />

não ser aquelas que são enquadrados como folclore dos 'tipos<br />

brasileiros', tão bem impressos na nossa memória graças à excelência<br />

do bico de pena de um Percy Lau ou <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> objetiva­<br />

subjetiva de um Tibor Jablonsky. São, via de regra, imagens<br />

descontextualiza<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s diferentes estratégias de sobrevivência<br />

inscritas no cotidiano, no espaço vivido e de suas práticas com/contra<br />

diversificação produtiva, busca seu auto­abastecimento, primeira condição para garantir sua<br />

autonomia que, como tal, não paga ren<strong>da</strong>, condição essa explicita<strong>da</strong> no censo de 1970?? para que<br />

se caracterize um ocupante. Relembrem, como já demonstrei, que o que distingue o seringueiro<br />

liberto ou autônomo do seringueiro cativo é exatamente o pagamento <strong>da</strong> ren<strong>da</strong>. É possível, pois,<br />

afirmar que o seringueiro liberto ou autônomo é uma categoria social que se impõe, sobretudo, no<br />

vale do Acre­Purus.


aqueles com quem constroem suas colocações, suas pélas, seus<br />

filhos, suas famílias, seus defumadores, suas casas de farinha, seus<br />

roçados, suas estra<strong>da</strong>s, suas linhas, igrejas, seus caminhos,<br />

varadouros e varações, suas delegacias sindicais, suas associações,<br />

cooperativas, escolas, amores e humores, saberes, sabores e empates.<br />

Figura 53 – Área ocupa<strong>da</strong>(ha) pelos estabelecimentos, segundo o<br />

grupo de área – Acre – 1970.<br />

Figura 54 – Área ocupa<strong>da</strong> segundo a condição social dos<br />

responsáveis pelos estabelecimentos – Acre –1970.<br />

Esse silêncio dos vencidos (Vesentini e de Decca, 1983) esse<br />

processo de invisibilização, posto que eles estão lá, é que consegue<br />

produzir uma espécie de i<strong>da</strong>de média acreana não captando to<strong>da</strong> a<br />

riqueza em que se assenta esta socie<strong>da</strong>de/geografia durante o período<br />

que se segue à crise do seringal Empresa. É desse mesmo discurso<br />

que esquecem os seringueiros autônomos apesar de to<strong>da</strong>s as<br />

evidências que o próprio censo, ao registrá­los como ocupantes, o faz<br />

negando­lhes quali<strong>da</strong>des 17 .<br />

O que surpreende é o silêncio sobre um fenômeno de tal<br />

envergadura que, de fato, revolucionava a socie<strong>da</strong>de acreana. Não<br />

estaria aqui uma <strong>da</strong>s razões <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira surpresa com que se verá a<br />

emergência do vigoroso movimento social desses Ocupantes, isto é,<br />

dos Seringueiros Autônomos, a partir dos anos setenta? Não estaria,<br />

também, aqui a razão de se superestimar o papel do elemento<br />

subjetivo, do 'organizador político', seja sob a forma de Comuni<strong>da</strong>des<br />

Eclesiais de Base, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais ou dos<br />

Partidos políticos? Voltaremos a essas decisivas questões a seguir.<br />

Figura 55 – Ocupantes – número de estabelecimentos, segundo o<br />

grupo de área. Acre – 1970.<br />

13 ­ Uma Nova Geografia, Novas Territoriali<strong>da</strong>des<br />

13.1 ­ O Contexto SocioEspacial Brasileiro<br />

17 Afinal como ocupantes eles ocupam e, como tal, eles estão,e aqui, sem dúvi<strong>da</strong>, estar não é o<br />

mesmo ser.


A socie<strong>da</strong>de/geografia brasileira experimenta uma<br />

transformação profun<strong>da</strong> nas déca<strong>da</strong>s de 1950 e 1960. Em algum<br />

momento dos anos 1950, registra­se, pela primeira vez, que a<br />

agricultura não é mais o setor que mais contribui para a formação do<br />

PIB. Em algum momento dos anos 60 a população urbana, também<br />

pela primeira vez, ultrapassa a população rural (IBGE, 1970).<br />

Figura 56 – População urbana brasileira – 1940­1941.<br />

Figura 57 – População urbana – Acre – 1940­1991.<br />

Nos marcos ideológicos <strong>da</strong>quele período, o processo de<br />

urbanização era visto como materialização do desenvolvimento e,<br />

assim, o brilho dessa idéia­força, que iluminava os corações e<br />

mentes, à direita e à esquer<strong>da</strong>, acabou por chamar a atenção mais para<br />

a urbanização do que para as múltiplas transformações correlatas que<br />

se <strong>da</strong>vam no campo a que chamaremos des­ruralização.<br />

A compreensão desses processos, sem dúvi<strong>da</strong>, fica mais clara<br />

quando observa­se a dinâmica social não só em termos sociológicos,<br />

mas também geográficos. É que a natureza do lugar, do espaço<br />

vivido, atravessa todo o espaço social e geográfico desde a casa,<br />

desde a fábrica, desde a colocação, desde o barracão, desde os<br />

escritórios e gabinetes dos empresários/<strong>da</strong>s empresas locais­<br />

regionais­nacionais­multinacionais, desde os gabinetes dos Estados<br />

Maiores, desde as cúpulas religiosas, ou desde as editorias (dos<br />

editores) dos jornais, ou dos partidos políticos e organizações<br />

sindicais. Todos têm um cotidiano, constituem espaços vividos. Não<br />

deixa de haver um espaço vivido pelo fato de se estar ou falar do<br />

lugar 'estado maior' seja do que for: o gabinete de um executivo de<br />

uma multinacional, de uma arquidiocese, de um partido político, ou<br />

<strong>da</strong> edição de um jornal. Não há, como se vê, o político num lugar e<br />

não no outro, pois todos esses espaços, repetimos, estão atravessados<br />

por relações de poder, todos têm sua economia (há um poder<br />

econômico na casa como há um poder de gênero na fábrica), todos<br />

conformam subjetivi<strong>da</strong>des, visões de mundo (há um poder simbólico<br />

na fábrica, por exemplo), subordina<strong>da</strong>s às especifici<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> um<br />

desses lugares, eles mesmos constituídos por essas relações. Há to<strong>da</strong><br />

uma carpintaria que sustenta esses lugares 'estados maiores', com<br />

to<strong>da</strong> uma rede/malha de objetos/agentes que fazem fluir a matéria e a<br />

energia necessárias para se reproduzirem como tais, pelo controle


(palavra mágica) <strong>da</strong>s passagens/dos fluxos (estra<strong>da</strong>s materiais ou<br />

virtuais) que, assim, os predispõem à manutenção do statu quo. São<br />

circuitos de poder, controles e sensoreamentos remotos. São,<br />

rigorosamente, organizações do espaço.<br />

Havia um processo de transformações profun<strong>da</strong>s em curso em<br />

todo o território brasileiro nessa passagem dos anos de 1950 para<br />

1960 e destes para 1970. que des­localizava as relações de poder.<br />

Essa des­localização é, na ver<strong>da</strong>de, redefinição do significado dos<br />

lugares e, no caso do campo brasileiro, era um processo que<br />

sobretudo redefinia o poder local, aquele poder inscrito no lugar do<br />

que, talvez, o coronelismo seja o melhor exemplo na formação<br />

socioespacial brasileira. Sabemos como desde a Revolução (por<br />

cima) 18 de 1930 havia se conformado um pacto político­territorial no<br />

qual, de um lado, o Estado tornava­se o protagonista por excelência<br />

do processo de industrialização 'por substituição de importações' e,<br />

por outro lado, mantinha o poder dos grandes proprietários de terra.<br />

To<strong>da</strong>via, é imperioso que se considere, houve um deslocamento<br />

regional do peso dessas oligarquias no novo bloco de poder nacional<br />

onde, a partir desses anos 1930, passa a ser maior o peso político <strong>da</strong><br />

oligarquia do sul do país, a gaúcha, sobretudo, em relação às<br />

oligarquias nordestinas. Aliás, é nesse contexto de per<strong>da</strong> de<br />

hegemonia <strong>da</strong>s oligarquias nordestinas 19 que se inventa a região<br />

Nordeste como região­problema e passa­se a não se falar mais de<br />

nortistas como se falava até então.<br />

Figura 58 – População rural do Brasil – 1940­1991<br />

Figura 59 – População rural do Acre – 1940­1991.<br />

Como parte dessas mu<strong>da</strong>nças, e que bem configura o modo<br />

como essas transformações sociais são ao mesmo tempo geográficas,<br />

temos (1) a expansão <strong>da</strong> rede de transportes e comunicações, o rádio<br />

sobretudo nos anos 1950 e 1960, ao que se associa a televisão, nos<br />

anos setenta/ oitenta, enquanto fenômeno de massa (Ortiz, 1985),<br />

integrando, assim, material e simbolicamente, o território nacional<br />

18<br />

É famosa a frase atribuí<strong>da</strong> ao mineiro Antonio Carlos de Andra<strong>da</strong>: “façamos a revolução antes<br />

que o povo a faça”.<br />

19<br />

Assim como uma literatura de glamourização dessas mesmas oligarquias nordestinas do que,<br />

talvez, a obra de Jorge Amado seja a maior expressão.


sob a hegemonia político­cultural do centro Sul do país e; (2) a<br />

integração material, via rede de transportes, cujas ligações do Sudeste<br />

com o Sul do país já eram fortes sob a hegemonia do café, se fará<br />

após em direção ao Nordeste 20 e, depois, nos anos sessenta e<br />

sobretudo, nos anos setenta/oitenta, em direção ao Centro Oeste e à<br />

Amazônia. Essa ordem em que é construí<strong>da</strong> a rede/malha de<br />

transportes é a expressão do próprio pacto político­territorial que se<br />

conforma entre os 'de cima'.<br />

Já a integração simbólica tem, nos anos 1940 e 1950, a Rádio<br />

Nacional como sua melhor expressão e um número ca<strong>da</strong> vez maior de<br />

rádios e televisões locais/estaduais/regionais que, pouco a pouco,<br />

cobrem todo o território nacional 21 . Aqui, também, to<strong>da</strong> uma trama<br />

de articulações políticas nacionais se configura já que o Estado, em<br />

escala federal, é quem detém o poder de concessão dos espaços <strong>da</strong>s<br />

on<strong>da</strong>s­suporte material de onde partem as on<strong>da</strong>s imaginárias e<br />

ideológicas. Passamos a ter ver<strong>da</strong>deiros 'latifúndios do ar', pois<br />

foram as antigas oligarquias latifundiárias que se modernizaram,<br />

tornando­se proprietárias de canais e redes de rádio e de televisão<br />

ca<strong>da</strong> vez mais necessárias para se reproduzirem nesse contexto de<br />

uma nova espaciali<strong>da</strong>de.<br />

O poder, quase absoluto, que se perde na escala do espaço<br />

vivido, do poder local, no interior <strong>da</strong> grande proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra,<br />

tenta se recompor por meio de um espaço mais amplo, tendo que<br />

lançar mão dos meios (e dos mediadores) correspondentes. Na<br />

medi<strong>da</strong> que a migração se intensifica, o caráter do poder<br />

personalizado, <strong>da</strong>quela relação corpo a corpo inscrita no poder local,<br />

assume novas formas onde, to<strong>da</strong>via, o personalismo mantém­se. A<br />

melhor expressão urbana dessa modernização conservadora, como<br />

mais tarde haveria de ser chama<strong>da</strong>, foi o populismo, prática política<br />

que trans­porta para o urbano a cultura do favor, tão enraiza<strong>da</strong> em<br />

20 A rodovia Rio­Bahia, a BR­116, por exemplo, começa a ser construí<strong>da</strong> em 1934, é concluí<strong>da</strong><br />

em 1948 e é, totalmente asfalta<strong>da</strong> somente em 1962.<br />

21 Aqui caberia assinalar, também, o papel que cumpriu o IBGE na conformação de uma<br />

determina<strong>da</strong> visão integra<strong>da</strong> do Brasil. Suas publicações, tanto o Boletim Geográfico como a<br />

Revista Brasileira de Geografia e as suas sucessivas coleções <strong>da</strong>s Grandes Regiões, decenais<br />

quanto os censos, são a materialização <strong>da</strong> construção dessa imagem do Brasil, dessa geografia<br />

imaginária. Volto, aqui, a destacar o trabalho de Percy Lau e Tibor Jablonsky, entre outros.


nossas tradições político­culturais rurais, do que o coronelismo é,<br />

ain<strong>da</strong> hoje, uma expressão viva 22 .<br />

Essas transformações estão imbrica<strong>da</strong>s, na área rural, com o<br />

papel que a agricultura cumpria no pacto político engendrado desde<br />

os anos 1930 e que inscrevia o Brasil como exportador e matérias<br />

primas agrícolas para financiar, com suas divisas, o próprio processo<br />

de industrialização. Essa industrialização visou, sobretudo até os anos<br />

50, a constituição de um forte setor de bens de produção ­ siderurgias,<br />

metal­mecânico, energia, construção naval etc...­ o que, por si só, é<br />

indicativo dos sujeitos que protagonizavam esse modelo, com<br />

destaque para o estamento militar e seu projeto estratégico de<br />

industrialização para garantir a integri<strong>da</strong>de territorial do país. Esse<br />

tipo de indústria não implica deman<strong>da</strong> de insumos provenientes do<br />

campo e, assim, podia ser feita sem que a estrutura do poder fundiário<br />

fosse altera<strong>da</strong>. Continuamos exportadores de cana de açúcar, café e<br />

cacau agregado à exportação do ferro e manganês, sobretudo após os<br />

Acordos de Washington, a Batalha <strong>da</strong> Borracha, que proporcionou ao<br />

Brasil a Companhia Vale do Rio Doce e a Cia Siderúrgica Nacional.<br />

Num primeiro momento esse processo de desterritorialização­<br />

reterritorialização se fez sob hegemonia política e cultural de setores<br />

ligados às próprias oligarquias 23 . É sob Vargas, oriundo de São Borja<br />

(RS), filho legítimo <strong>da</strong>s oligarquias <strong>da</strong> fronteira do pampa gaúcho,<br />

que a lógica do favor ganha plenitude no espaço urbano, sob a forma<br />

de populismo. Afinal, as migrações haviam trazido às ci<strong>da</strong>des<br />

milhões de habitantes que não tinham tradições de relações marca<strong>da</strong>s<br />

pela lógica de direito, embora trouxessem seus próprios valores sobre<br />

a justiça/injustiça.<br />

À medi<strong>da</strong>, to<strong>da</strong>via, que a des­ruralização/urbanização se<br />

processava de modo ca<strong>da</strong> vez mais intenso, um setor agrícola voltado<br />

para o mercado interno também ganhava expressão. E, aqui, é preciso<br />

dizê­lo, como já destacara Berta Becker nos anos 1960, que 'são os<br />

pobres do campo que abastecem os pobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de', e extrair <strong>da</strong>í<br />

uma conclusão sociológica e política que normalmente não<br />

22 O populismo pode se entendido como a versão urbana do coronelismo.<br />

23 O caráter industrializante e nacionalista do período Vargas guar<strong>da</strong>va uma relação como o que<br />

Castro, 1970, chamara a atenção para o significado <strong>da</strong> Região Sul do país, qual seja, sua inserção<br />

precoce no mercado interno.


acompanha aqueles que constatam esse fato: é que ele revela,<br />

também, a relevância ca<strong>da</strong> vez maior desses ‘pobres do campo que<br />

abastecem os pobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de’ no seio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de dominante 24 .<br />

Destaquemos aqui entre ‘esses pobres do campo’, um segmento que é<br />

distinto <strong>da</strong>queles que praticam a chama<strong>da</strong> agricultura de subsistência<br />

e que embora tenha, também, como lógica subjacente a reprodução<br />

familiar o faz em condições sociopolíticas sem dúvi<strong>da</strong>s, melhores que<br />

a maioria dos posseiros do Sudeste, do Norte e do Nordeste. Trata­se<br />

dos produtores familiares <strong>da</strong> ‘zona colonial’ sul do país cuja<br />

proprie<strong>da</strong>de formal <strong>da</strong>s suas terras e todo o significado que teve em<br />

termos <strong>da</strong> afirmação do poder nacional povoando a fronteira lhes<br />

colocava numa posição melhor situa<strong>da</strong> na nossa geografia imaginária,<br />

que porta to<strong>da</strong> uma gama de preconceitos, como o de se enfatizar a<br />

(superiori<strong>da</strong>de de uma) origem européia para explicar o relativo<br />

sucesso dessas famílias de agricultores.<br />

Esse é o pano de fundo que redefine o caráter dos conflitos que<br />

começam a se aguçar na área rural onde as manifestações de<br />

trabalhadores rurais são ca<strong>da</strong> vez mais intensas, elas mesmas<br />

possíveis em virtude <strong>da</strong>s novas relações espaciais. Daí as marchas, do<br />

que as Ligas Camponesas foram a melhor expressão até 1964 e, hoje,<br />

o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ­ MST.<br />

(Medeiros, 1989 ).<br />

13.2 ­ Nova Espaciali<strong>da</strong>de, Novos Meios, Novos Mediadores<br />

O Contexto Acreano<br />

Desde a déca<strong>da</strong> de 1920 e, sobretudo no período que transcorre<br />

entre 1942 e 1958 e entre este ano e 1967, já o indicamos, que os<br />

patrões seringalistas não conseguindo mais se reproduzirem por<br />

mecanismos estritamente econômicos recorreram aos suportes<br />

políticos do governo federal para se manterem, engendrando, no<br />

contexto específico do Acre, o fenômeno sociológico nacional do<br />

coronelismo (Leal, 1967).<br />

24 É preciso destacar que o vínculo ao mercado é, historicamente, uma característica do chamado<br />

campesinato (vide Abramovay, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão (Abramovay,<br />

São Paulo, Ed, Hucitec, 1992).


Foi nesse período que os Coronéis de Barranco viveram seus<br />

melhores anos, segundo Alberto Zaire, por meio de uma articulação<br />

política materializa<strong>da</strong> no Banco <strong>da</strong> Crédito <strong>da</strong> Amazônia, sobretudo<br />

no monopólio de importação e exportação de borracha pelo governo<br />

federal, inicia<strong>da</strong> em 1942 ain<strong>da</strong> durante a Batalha <strong>da</strong> Borracha, e que<br />

começa a ser desmonta<strong>da</strong> em 1958, com o fim do monopólio de<br />

importação e continua em 1967 com a extinção do próprio Banco de<br />

Crédito <strong>da</strong> Amazônia.<br />

Um velho debate amazônico é atualizado nesses anos de 1960:<br />

o extrativismo volta a ser visto como uma prática a ser supera<strong>da</strong> e,<br />

com isso, temos a desqualificação <strong>da</strong>queles que são seus<br />

protagonistas. O seringal é, assim, condenado e, com ele, condena­se<br />

junto os seringueiros e seringalistas.<br />

Para <strong>da</strong>r conseqüência a essa nova perspectiva o Estado adotou<br />

um conjunto de políticas e destinou recursos por meio de diferentes<br />

mecanismos financeiros e fiscais já devi<strong>da</strong>mente explorados numa<br />

rica bibliografia. Entre esses mecanismos um foi extremamente<br />

negativo para as classes dominantes amazônicas e que foi a extinção<br />

dos subsídios ao seringalismo a partir de 1967.<br />

'O impacto <strong>da</strong> política geral de crédito implanta<strong>da</strong> a partir de 1964<br />

teve, no caso do Acre, o sentido desprezar o seringal nativo, ativi<strong>da</strong>de<br />

considera<strong>da</strong> ineficiente e irracional na perspectiva oficial' (Cedeplar,<br />

1979: 2<strong>12</strong>).<br />

E, mais diretamente ain<strong>da</strong>, o Estado passou a pressionar os<br />

seringalistas a sal<strong>da</strong>r seus débitos mediante a ven<strong>da</strong> de seus seringais.<br />

'A partir do momento em que o Banco <strong>da</strong> Amazônia passou a<br />

se retrair ou conceder financiamento aos seringalistas em épocas<br />

inadequa<strong>da</strong>s, impedindo que eles abastecessem normalmente os seus<br />

seringais e os levando à insolvência, conforme aconteceu com mais<br />

de cem seringalistas, (...) eu me apressei a me desfazer do meu<br />

seringal... (...) O Banco <strong>da</strong> Amazônia é o responsável direto pela<br />

transferência do domínio <strong>da</strong>s terras do Acre, onde se exercitava<br />

ativi<strong>da</strong>des de extração <strong>da</strong> borracha para estes investidores do Sul, que<br />

hoje pensam exclusivamente na implantação de projetos<br />

agropecuários' (...)


'Então, mediante esta intervenção do Banco <strong>da</strong> Amazônia, o<br />

Senador Altevir Leal vendeu boa parte <strong>da</strong>s terras para o grupo do<br />

Paraná, o Grupo Paranacre, e parte para o grupo de São Paulo... De<br />

modo que com a ven<strong>da</strong> dessas terras o Banco se ressarciu do débito<br />

do senador Altevir Leal que, parece, montava a <strong>12</strong> milhões de<br />

cruzeiros. E esses grupos assumiram a responsabili<strong>da</strong>de de débito do<br />

Senador' conforme o depoimento do Sr Nabor Jr. apud Duarte,1987:<br />

87.<br />

O Estatuto <strong>da</strong> Terra, como todo documento oficial, tem um<br />

poder de balizar/servir de referência para as práticas sociais, como o<br />

faz ao criar categorias como as de latifúndio por extensão; latifúndio<br />

por exploração, empresa rural, minifúndio e módulo rural. Deste<br />

modo não só indicava o sentido que tomava a nova fase de<br />

desenvolvimento do capitalismo no Brasil como também enquadrava<br />

os conflitos e condicionava identi<strong>da</strong>des.<br />

Nesta categorização está, sem dúvi<strong>da</strong>, embuti<strong>da</strong> a perspectiva<br />

do aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de, como na distinção entre latifúndio por<br />

extensão e latifúndio por exploração que, no fundo, se media pelo<br />

conceito de empresa rural para o que se indicava, incluindo, uma<br />

referência modular, o módulo rural. Sabemos como o debate sobre o<br />

agro brasileiro passará a ser enquadrado por meio de categorias como<br />

a de terra produtiva, por exemplo.<br />

Não só o Estatuto <strong>da</strong> Terra sinalizara o sentido modernizante<br />

<strong>da</strong> nova fase do capitalismo no campo brasileiro como mobilizara<br />

aqueles que tornavam prática sua letra. O Presidente <strong>da</strong> Associação<br />

dos Criadores de Nelore do Brasil, Sr. Mario Junqueira, num artigo<br />

publicado no jornal O Rio Branco, em 1974, afirmara simplesmente<br />

que:<br />

'os seringalistas, outrora um homem rico e hoje, em sua<br />

maioria endivi<strong>da</strong>dos no Banco <strong>da</strong> Amazônia, sem condições de sal<strong>da</strong>r<br />

seus compromissos, melhor será também enfrentar as novas<br />

estruturas, o novo desafio, e unir­se aos investidores que chegam, ou<br />

abandonar o campo de luta' (O Rio Branco, 19/10/1974).<br />

Neste contexto de modernização, em que a categoria de<br />

produtivi<strong>da</strong>de exerce um poder quase mágico, o seringal, pelas suas<br />

imensas extensões, denuncia<strong>da</strong>s no Acre, como vimos, por diferentes


juízes, interventores e demais agentes federais que aqui/ali atuaram,<br />

aparece como expressão maior do atraso.<br />

As classes dominantes regionais acreanas, que sempre tiveram<br />

um lugar subordinado na composição do bloco de poder nacional,<br />

não mais podiam reproduzir seu domínio nesse contexto marcado<br />

pelas políticas subsidia<strong>da</strong>s de transformar o latifúndio em empresa e,<br />

portanto, estavam desqualifica<strong>da</strong>s a priori por serem a própria<br />

expressão do que deveria ser superado. Já não são mais os<br />

interlocutores a serem privilegiados no novo contexto socioespacial<br />

dos anos sessenta/setenta 25 .<br />

14 ­ Das Terras e <strong>da</strong>s Estra<strong>da</strong>s: Novos caminhos, Novos valores<br />

no Acre<br />

14.1­ Das Terras: Do Habitat, do Habitus, dos Habitantes<br />

O Estatuto <strong>da</strong> Terra, de 1964 é, assim, um bom ponto de<br />

parti<strong>da</strong> para entender esse novo pacto proposto/imposto a partir do<br />

bloco de poder nacional sob o regime ditatorial sob tutela militar e<br />

seu projeto modernizante. Enquanto os anos 1960 é, para o Brasil,<br />

marco no intenso processo de urbanização, o Acre ain<strong>da</strong> vê sua<br />

população rural crescer mais que a população urbana em termos<br />

absolutos ao longo desses anos1960 ( Tabela .....<br />

Figura 60 não confundir tabela com figura – Evolução <strong>da</strong> população<br />

rural e urbana no Acre – 1940­1980. Corrigir e correr a numeração<br />

de ambas (tabelas e figuras)<br />

População/Ano 1940 1950 1960 1970 1980<br />

Rural 65.630 93.483 <strong>12</strong>5.484 155.992 169.134<br />

Urbana 14.138 21.272 32.700 59.307 132.169<br />

Fonte: IBGE,1980.<br />

Foi no bojo desse processo que as velhas oligarquias<br />

latifundiárias tiveram que redefinir suas relações com outros<br />

25 Não se esqueçam de to<strong>da</strong> uma história incorpora<strong>da</strong> que atualiza velhos mitos como o <strong>da</strong><br />

Amazônia como uma imensa reserva de recursos naturais, sempre no superlativo, que<br />

configuraria a redenção do futuro do Brasil. Tudo indicava que, finalmente, o futuro havia<br />

chegado e a Amazônia seria definitivamente integra<strong>da</strong> ao território brasileiro. Não menosprezem<br />

aqui a lógica territorialista (Arrighi, 1997) subjacente a essa nova fase de (im)pacto territorial<br />

com a Amazônia pelo papel central que nela exercem os militares.


protagonistas que lhe disputavam a hegemonia e, com a nova<br />

espaciali<strong>da</strong>de que se conformava, abrem­se brechas por onde os 'de<br />

baixo' conseguem alguma visibili<strong>da</strong>de para as suas deman<strong>da</strong>s. Não<br />

nos esqueçamos, a esse respeito, do crescimento significativo <strong>da</strong>s<br />

Ligas Camponesas de 1950 a 1964.<br />

O Estatuto <strong>da</strong> Terra foi, sem dúvi<strong>da</strong>, uma resposta à<br />

emergência desses que até então eram vistos como passivos,<br />

'indolentes' e 'preguiçosos' tão bem representado no personagem Jeca<br />

Tatu que, no entanto, traziam à cena política um novo e vigoroso<br />

movimento que emergiu a revelia do sindicalismo urbano, então,<br />

fortemente atrelado ao Estado.<br />

Enquanto isso, no Acre, emergiam os seringueiros autônomos,<br />

oficialmente ocupantes e, por ironia, o Acre que tivera to<strong>da</strong> uma<br />

política forja<strong>da</strong> no coração do Estado Nacional em torno <strong>da</strong> idéia de<br />

levar o progresso àquelas regiões caracteriza<strong>da</strong>s como vazio<br />

demográfico, depois de quase um século, verá emergir um<br />

movimento social cujo principal protagonista é exatamente aquele<br />

que forjara o seu destino à margem de to<strong>da</strong> oficiali<strong>da</strong>de. Afinal, os<br />

que ocupam vêm reivindicar o seu lugar também no plano <strong>da</strong>s<br />

representações, do imaginário. Não deixa de ser irônico que o IBGE<br />

chame de ocupante o habitante de uma região ti<strong>da</strong> como de vazio<br />

demográfico. Na ver<strong>da</strong>de é de vazio de direitos que se trata.<br />

Enfim, eles emergem agora não simplesmente como aquele<br />

agricultor­seringueiro que a objetiva­subjetiva de Tibor Jablonsky<br />

maravilhosamente captou nos inícios dos anos 1950. Não<br />

simplesmente como aquele produtor agroextrativista que Teixeira<br />

Guerra vira em todo lugar. Não, agora eles emergem querendo não só<br />

serem conhecidos mas, sobretudo serem reconhecidos. Se o ocupante<br />

era uma condição banal de existência ele opõe a essa condição física<br />

não só a vi<strong>da</strong>, como se viu acima, mas vai em busca de direitos<br />

revolucionando, assim, uma <strong>da</strong>s características fun<strong>da</strong>doras <strong>da</strong> nossa<br />

formação sociopolítica e cultural ancora<strong>da</strong> na lógica do favor.<br />

A expressão máxima dessa busca de direitos, que é também de<br />

afirmação de uma identi<strong>da</strong>de possível desses ocupantes, ex­br abos,<br />

ex­mansos, ex­rendeir os, ex­agricultores, ex­posseir os, ex­<br />

sol<strong>da</strong>dos­<strong>da</strong>­borracha ganhará uma dimensão territorial explícita


com a invenção de uma nova forma de marcar a terra, de geografar,<br />

que é a Reserva Extrativista.<br />

Assim, podemos agora afirmar, com segurança, que sob a<br />

organização do espaço acreano havia uma tensão de territoriali<strong>da</strong>des<br />

expressa nas relações contraditórias dos Coronéis de Barranco<br />

com/contra os Seringueiros Cativos ou com/contra os Seringueiros<br />

Autônomos ou Libertos; com/contra os regatões ou os marreteiros;<br />

com/contra os 'de fora'. Nas novas circunstâncias <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />

setenta e oitenta, os tensos e intensos conflitos que se viram<br />

obrigados a travar, atualizariam to<strong>da</strong> uma história incorpora<strong>da</strong> ­<br />

habitus­ e materializa<strong>da</strong> no habitat. As transformações socio­<br />

espaciais porque passará o Acre implicava uma mu<strong>da</strong>nça radical<br />

desse habitat.<br />

Até os anos 1960 a terra, enquanto objeto de trabalho, não<br />

tinha valor econômico no Acre. Não havia propriamente um mercado<br />

de terras até porque para que tal se constitua é preciso que haja uma<br />

deman<strong>da</strong> desta enquanto objeto de trabalho, o que significa que esse<br />

espaço esteja incorporado ao espaço econômico capitalista,<br />

oferecendo­se, então, múltiplas possibili<strong>da</strong>des de uso (desde que<br />

torne possível uma determina<strong>da</strong> margem de lucro). Aqui, é<br />

fun<strong>da</strong>mental a acessibili<strong>da</strong>de.<br />

A incorporação efetiva <strong>da</strong> Amazônia ao espaço econômico<br />

brasileiro polarizado em torno do Centro­Sul, em particular a<br />

Amazônia Ocidental pela sua posição geográfica, condicionava­lhes<br />

as alternativas de inserção no mundo de mercadorias. A região<br />

achava­se até então, de certa forma, protegi<strong>da</strong> <strong>da</strong> afluência de outros<br />

capitais que lhes viessem disputar os recursos naturais pela sua<br />

marginalização geográfica e, conseqüentemente, pelas estreitas<br />

margens de lucro que essa condição proporciona 26 . Deste modo, o<br />

extrativismo <strong>da</strong> borracha se manteve no Acre graças a uma lógica não<br />

redutível a uma dimensão estritamente econômica. Afinal, desde<br />

19<strong>12</strong>, é lugar comum afirmar­se que a borracha do Acre não<br />

consegue competir com a borracha racionalmente planta<strong>da</strong> do sudeste<br />

26 Aliás, essa condição geográfica coloca a socie<strong>da</strong>de acreana numa posição privilegia<strong>da</strong>, por to<strong>da</strong><br />

a história acumula<strong>da</strong>, reifica<strong>da</strong> e incorpora<strong>da</strong>, para uma reflexão, ca<strong>da</strong> vez mais necessária, sobre<br />

as relações entre geografia, socie<strong>da</strong>de e mercado.


asiático 27 . No entanto, o Acre continua a produzir borracha, mesmo<br />

após mais de 80 anos <strong>da</strong>quela crise. E, já foi visto, não simplesmente<br />

em virtude do suporte político que os ex­capitalistas <strong>da</strong> borracha<br />

passaram a obter do governo federal, quando se transformaram em<br />

coronéis de barranco. Sabemos como a 'substituição de importações'<br />

efetua<strong>da</strong> pelos próprios produtores diretos, aí já se podendo falar de<br />

famílias que se autonomizavam, enfim <strong>da</strong>queles que,<br />

dermercadorizando­se, tornaram possível uma ocupação mais estável<br />

<strong>da</strong>queles espaços ensejando uma territorialização própria.<br />

Esses fatos, parece, não têm sido suficientes para desmentir a<br />

teoria <strong>da</strong> não­competitivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> produção dos seringueiros<br />

autônomos. Enfim, o segredo <strong>da</strong> competitivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> borracha acreana<br />

estava não só na sua quali<strong>da</strong>de técnica, a borracha acre­fina, de largo<br />

uso na fabricação de utensílios mais exigentes em elastici<strong>da</strong>de,<br />

impermeabili<strong>da</strong>de e resistência, mas também à sua quali<strong>da</strong>de<br />

sociocultural, aquela deriva<strong>da</strong> do caráter de que não é mais o<br />

mercado que coman<strong>da</strong> as relações socioespaciais e, no entanto, mais<br />

do que um antimercado que uma lógica maniqueísta poderia ver, é de<br />

uma outra lógica, mais complexa, dos 'camponeses <strong>da</strong> floresta'<br />

(Almei<strong>da</strong>, 1994), que subordina o mercado a uma lógica de<br />

reprodução familiar­comunitária onde gênero, autonomia, modo de<br />

vi<strong>da</strong> enfim, outras formas de apropriação do espaço, do tempo e <strong>da</strong><br />

natureza ganham legali<strong>da</strong>de.<br />

Já vimos que a uni<strong>da</strong>de de medi<strong>da</strong> que prevalecera no Acre foi<br />

a seringueira e não o metro quadrado ou o hectare. Entre os<br />

seringalistas, a ven<strong>da</strong> de um seringal era feita pelo número de<br />

estra<strong>da</strong>s de seringa e, portanto, avalia<strong>da</strong> pelo seu potencial produtivo<br />

em látex. Entre 1966 e 1971, por exemplo, dos vinte e dois registros<br />

de transmissão de imóveis lavrados nos livros do Cartório de<br />

Registro de Imóveis de Xapuri, em somente um constava a área do<br />

imóvel 28 .<br />

27 O argumento é tão velho quanto desqualifica a moderni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles que o usam. Na ver<strong>da</strong>de,<br />

trata­se de mais um dogma que se quer auto­evidente, rigorosamente um fun<strong>da</strong>mentalismo, como<br />

o caracteriza Umberto Eco.<br />

28 Tratava­se do Seringal Sole<strong>da</strong>de, com seus 13.338 hectares, adquirido pelo Sr. Jorge Kalume,<br />

então governador do Estado.


Mesmo após os anos1950, quando o Banco de Crédito <strong>da</strong><br />

Amazônia passou a estabelecer um vínculo com a terra para liberar<br />

seus financiamentos, a realização dessa conversão no mercado se<br />

inviabilizava em virtude <strong>da</strong> posição do Acre no espaço geográfico<br />

brasileiro que restringia as possibili<strong>da</strong>des de uso de seus recursos<br />

naturais na medi<strong>da</strong> que os capitais aqui/ali não conseguiam realizar a<br />

sua vocação natural que é a acumulação. A ren<strong>da</strong> diferencial por<br />

localização, pelos geógrafos conheci<strong>da</strong> pelo modelo de von Thünen,<br />

não se fazia presente nessas regiões tornando, assim, difícil ao<br />

proprietário auferir até mesmo a ren<strong>da</strong> absoluta, ou seja, aquela que<br />

deriva <strong>da</strong> condição de proprietário. Afinal, não se era proprietário de<br />

terras no Acre e sim de estra<strong>da</strong>s de seringa e estas só se faziam<br />

competitivas por uma lógica não redutível à capitalística.<br />

Vimos acima como o próprio Estado se encarregou de<br />

pressionar os seringalistas a vender suas proprie<strong>da</strong>des. A<br />

racionali<strong>da</strong>de do mercado precisava mais <strong>da</strong> força do que do<br />

argumento. Nas condições de finais dos anos1960, em plena crise do<br />

seringalismo, não seria, certamente, entre acreanos que seriam<br />

encontrados compradores desses seringais.<br />

Assim, na perspectiva de tornar a terra uma mercadoria começa<br />

a mu<strong>da</strong>r a própria geografia dos proprietários. E, acrescente­se, não<br />

se compraria propriamente seringais naquelas circunstâncias. Afinal,<br />

o seringal (enquanto) empresa já havia entrado em crise a déca<strong>da</strong>s.<br />

Estamos, pois, diante de uma situação sui generis que é a <strong>da</strong> extinção<br />

de uma territoriali<strong>da</strong>de com tudo que isso envolve enquanto práticas<br />

consagra<strong>da</strong>s de organização do espaço, enquanto materialização de<br />

estratégias de poder, enquanto identi<strong>da</strong>de político­cultural. O que está<br />

em extinção é o seringal e o seu protagonista hegemônico (Gramsci),<br />

o seringalista, o Coronel de Barranco 31 . O comprador de terras no<br />

Acre não compra um seringal. Trata­se de mu<strong>da</strong>nça de habitat e de<br />

habitus.<br />

31 A propósito, muitos deles preferiam mu<strong>da</strong>r­se para Fortaleza, Manaus, Belém, Rio de Janeiro e<br />

Brasília onde dispunham de patrimônios imobiliários e mantinham os familiares.


Ora, para os 'de fora' e 'de cima', conhecidos como 'paulistas'<br />

no Acre, o seringal é um nonsense. A floresta, por exemplo, não fazia<br />

o menor sentido para eles 32 !<br />

Ora, aquele que ora se dirigia ao Acre o faz não porque tenha<br />

ou tivera laços com a aquele espaço. Tradicionalmente, sabemos, as<br />

ligações do Acre são com os sertões nordestinos e, por suas ligações<br />

geográficas (e culturais) de poder com Fortaleza, Natal, Belém,<br />

Manaus, Rio de Janeiro e, depois, Brasília. Não encontramos um<br />

fazendeiro sequer dos que vieram a partir dos anos setenta que<br />

tivessem laços anteriores com o Acre.<br />

Ironia. O que os movia era um sentimento muito próximo<br />

<strong>da</strong>quele que criara o seringal­empresa, isto é, a busca do ouro. O<br />

ouro, agora, não tem mais a forma de ouro negro, como se designava<br />

a borracha; ele tem ou a sua forma mais pura, abstrata e direta ­ o<br />

dinheiro­, ou passa pela mediação do pasto para o boi, para depois se<br />

transformar em dinheiro. Tudo passando pela terra, ou melhor, pelo<br />

título de proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> terra que, tal como um título de nobreza, abre<br />

as portas dos salões, no caso, os cofres do Estado com seus gordos<br />

subsídios.<br />

Vale uma explicação. Num primeiro momento, aqueles que se<br />

interessaram por investir no Acre o fizeram não pelo Acre enquanto<br />

materiali<strong>da</strong>de de recursos, naturais ou não, inscritos naquele espaço.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o fizeram em virtude de uma <strong>da</strong>s decorrências <strong>da</strong><br />

modernização conservadora do agro brasileiro (Palmeira, 1998), que<br />

havia ensejado uma politização <strong>da</strong> terra posto que, pelos mecanismos<br />

de incentivos fiscais, novos interesses foram atraídos para o campo,<br />

ensejando o fenômeno de territorialização <strong>da</strong> burguesia (Leite,<br />

1998) 33 .<br />

32 Não se condene o senso prático <strong>da</strong>queles que vêm /vão para o Acre e que não iam para lá fazer<br />

pesquisa ou estu<strong>da</strong>r. Afinal, mesmo um geógrafo com Teixeira Guerra conseguiu fazer um estudo<br />

sobre a geografia acreana sem ter um capítulo sequer sobre a floresta. Informo que florestis do<br />

latim significa o (bosque) externo e, com tal, não é só o sentido de floresta que deve ser<br />

considerado, mas o de ser externo, ou seja, o que não faz parte do nosso território onde tem<br />

vali<strong>da</strong>de nossas regras, normas e leis. É o que não tem sentido.<br />

33 Na ver<strong>da</strong>de seria melhor denominar latifundiarização <strong>da</strong> burguesia.


É que parcelas importantes de recursos financeiros estavam<br />

sendo media<strong>da</strong>s pelo Estado para a agricultura e a pecuária,<br />

ativi<strong>da</strong>des que têm a terra como pressuposto e, por essas lógicas do<br />

campo <strong>da</strong>s representações, como o jurídico, era caução para os<br />

projetos subsidiados pela SUDAM e pelo BASA, por exemplo.<br />

Mais do que adquirir terras era um bom negócio adquirir um título de<br />

proprie<strong>da</strong>de, fosse para produzir ou não, posto que, assim, tornava­se<br />

possível obter recursos para outras finali<strong>da</strong>des. Assim a terra de<br />

pressuposto <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des agropecuárias não passou, em muitos<br />

casos, de mero pressuposto lógico 29 . Podia, até mesmo, significar a<br />

manutenção do seringal como uni<strong>da</strong>de produtiva, não pelo que<br />

produzia de borracha, mas como condição para se ganhar dinheiro,<br />

sobretudo após a crise dos preços do petróleo que ensejou uma nova<br />

política específica para a borracha, o Probor. Veja­se<br />

'O condomínio Tarauacá, do Grupo Agapito Lemos, que possui<br />

mais de 300 mil hectares de terra no município de Tarauacá,<br />

descobriu um novo 'mapa <strong>da</strong> mina' quando a SUDAM passou a<br />

reconhecer o fracasso de sua política de incentivos para a<br />

implantação de fazen<strong>da</strong>s agropecuárias na região do Juruá. Animado<br />

com os vultosos financiamentos do primeiro e do segundo PROBOR<br />

o grupo passou também a explorar o extrativismo <strong>da</strong> borracha em 65<br />

seringais, entre os que Agapito Lemos adquiriu ou simplesmente<br />

arrendou. A partir de 1978 o grupo passou a ser duplamente<br />

favorecido pelos financiamentos retirados na agência <strong>da</strong><br />

SUDHEVEA, tanto para custeio anula <strong>da</strong> safra de borracha, como<br />

para reabertura de novas colocações e estra<strong>da</strong>s de seringa. Na safra<br />

do ano passado (1979, de acordo com os financiamentos retirados na<br />

agência do Banco <strong>da</strong> Amazônia (BASA) de Tarauacá, a produção<br />

deveria ter sido de 300 tonela<strong>da</strong>s, mas não conseguiram reunir nem<br />

150 mil quilos de Borracha. Em Tarauacá o povo pergunta: E o que<br />

Condomínio Tarauacá faz com o dinheiro dos financiamentos do<br />

PROBOR? Logo se descobriu que <strong>da</strong> mesma forma como os<br />

‘paulistas’ fizeram com a maioria dos financiamentos<br />

agropecuários <strong>da</strong> SUDAM, o dinheiro <strong>da</strong> SUDHEVEA foi<br />

vergonhosamente desviado para ativi<strong>da</strong>des mais lucrativas na matriz<br />

29 Devemos afastar aqui qualquer sentimento de condenaçào moral a essas práticas posto que<br />

numa socie<strong>da</strong>de onde a racionali<strong>da</strong>de é a lógica <strong>da</strong> acumulação, onde a busca do ouro é a<br />

referência a contradição entre o material e o simbólico chega às raias do absurdo. As noções<br />

reserva de valor e especulação, muito usa<strong>da</strong>s na literartura sobre esse período, tanto sobre o Acre<br />

como para o agro brasileiro como um todo, só muito empobreci<strong>da</strong>mente dá conta do fenômeno.


de São Paulo. Provavelmente foram aplicados no Open Market”. (O<br />

Varadouro n. 20, abr. 1980).<br />

Figura 61 – quer dizer Tabela ??? – Procedência de pecuaristas do<br />

Centro­Sul localizados no vale do Rio Acre – <strong>da</strong>dos de 1979.<br />

Trecho Procedência*<br />

Rio Branco­<br />

Xapuri<br />

GO MG MT PR SP Outros TOTAL<br />

2 1 6 5 7 2 23<br />

Xapuri­<br />

Brasiléia<br />

­ ­ 2 2 3 ­ 7<br />

Brasiléia­<br />

Assis Brasil<br />

1 ­ 1 2 7 ­ 11<br />

Total 3 1 9 9 17 2 41<br />

% 7,3 2,3 22,0 22,0 41,4 4,9 100,0<br />

Fonte: Silva, 1998.<br />

Um dos exemplos mais representativo desses novos<br />

investidores em títulos de proprie<strong>da</strong>de é o do então Presidente <strong>da</strong><br />

Associação dos Empresários do Acre, Pedro Aparecido Dotto, natural<br />

de Jales­SP, dono, entre outras, <strong>da</strong> Coloama, que foi uma <strong>da</strong>s<br />

primeiras empresas a se fazer presente no Acre trazendo/levando as<br />

novas práticas. Chegando em 1972 teve, portanto:<br />

'chance de adquirir boas áreas pelos menores preços. Somente<br />

nas margens <strong>da</strong> BR 364, a poucos quilômetros de Sena Madureira,<br />

comprou 500.000 hectares, onde procurou desenvolver cinco projetos<br />

com recursos do PROBOR, PROTERRA, SUDAM e BASA. Depois<br />

(...) subiram o rio Purus, e adquiriram mais seringais, formando um<br />

latifúndio com mais de um milhão de hectares, dos quais a FUNAI já<br />

estava providenciando a retoma<strong>da</strong> de 400.000, pertencentes aos<br />

índios Culina, Maronaua, Cashinauas. No Cartório de Sena<br />

Madureira, entre as transações espúrias realiza<strong>da</strong>s pela COLOAMA,<br />

consta a compra do Seringal Sobral, de Luzanira e Jaime Meireles,<br />

em que uma pessoa faleci<strong>da</strong> um ano antes 'aparece' assinando a<br />

escritura de compra e ven<strong>da</strong>, na presença do Escrivão. O Diretor­<br />

Presidente <strong>da</strong> Coloama, contudo, tem se revelado tranqüilo quanto ao<br />

futuro de seus domínios, ain<strong>da</strong> que atualmente (1979) passem por


uma discriminatória judicial. Porque, com os incentivos fiscais<br />

recebidos, ele conseguiu fazer grandes benfeitorias antes <strong>da</strong><br />

discriminatória, e revender, por bom preço, a outros sulistas, glebas<br />

que resultaram do retalhamento dos seringais comprados a preços de<br />

banana. Em apenas quatro anos, essas terras repassa<strong>da</strong>s por grileiros<br />

no Acre atingiram uma valorização de 2.000 por cento'. (Comissão<br />

Parlamentar de Inquérito <strong>da</strong> Terra, CPI, 1979: 55).<br />

Tabela???? – Acre – relação dos vinte maiores imóveis rurais –<br />

1982.<br />

Digitar <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> fig. 62 – p. 324 do original.<br />

Assistimos, assim, a uma transferência de títulos de<br />

proprie<strong>da</strong>de que se deu, indiscrimina<strong>da</strong>mente, por todo o estado do<br />

Acre, sem que implicasse, necessariamente ação prática de alteração<br />

no uso <strong>da</strong> terra. Podia­se, subordinado à conveniência de ganhar<br />

dinheiro, até mesmo explorar o seringal como tal 35 . É impressionante<br />

a lista dos 20 maiores proprietários do Acre, forneci<strong>da</strong> pelo mapa<br />

demonstrativo <strong>da</strong> emissão do Imposto Territorial Rural de 1982, onde<br />

se vê a presença de grandes grupos do sul do país tendo suas maiores<br />

proprie<strong>da</strong>des não ao longo <strong>da</strong> BR­317 e sim ao longo <strong>da</strong> BR­364 em<br />

direção a Cruzeiro do Sul, ou seja, em Tarauacá, Manoel Urbano,<br />

Sena Madureira e Feijó, indicando, claramente, o caráter de que mais<br />

importava o título de proprie<strong>da</strong>de que a proprie<strong>da</strong>de como base para<br />

uma ativi<strong>da</strong>de produtiva! Afinal, nesta área as condições de<br />

transportes são reconheci<strong>da</strong>mente piores e, sobretudo a partir de Sena<br />

Madureira impraticáveis durante, pelo menos, nove meses por ano.<br />

Entretanto, até por isso, são terras mais baratas e, assim, são<br />

adquiri<strong>da</strong>s rigorosamente como títulos que lhes permitem acesso aos<br />

recursos dos incentivos fiscais ou reserva de valor.<br />

Tabela –??? Acre ­ relações entre área ca<strong>da</strong>stra<strong>da</strong> e área total por<br />

microrregiões homogêneas e municípios – 1982.<br />

Tabela n... – Efetivo de bovinos – segundo as microrregiões e os<br />

municípios – 1970, 1972 e 1980.<br />

35 No caso de exploração do seringal, a ideologia do progresso que vinha com os nvos<br />

investimentos mostrava a sua falácia.


Enquanto isso, ao longo <strong>da</strong> BR­317, onde são melhores as<br />

condições de tráfego, as terras eram parcela<strong>da</strong>s e lotea<strong>da</strong>s, atraindo<br />

pequenos fazendeiros e pecuaristas do Paraná, São Paulo e Mato<br />

Grosso que, por sua vez, vinham com a perspectiva de se tornarem<br />

grandes fazendeiros/pecuaristas no Acre. Estes, que não têm outras<br />

opções de se deslocar, de ir e vir, já que têm de fazer seu negócio<br />

dirigindo­o eles mesmos, de corpo presente e, assim, tornar­se­ão<br />

mais persistentes (e violentos) na afirmação de suas pretensões diante<br />

<strong>da</strong> resistência dos que já ali habitavam, os seringueiros autônomos e,<br />

também, os pequenos proprietários, estes, sobretudo, em Rio Branco<br />

e Brasiléia. A família Darli Alves é disso uma expressão.<br />

Estamos assim, também, diante de uma mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong><br />

naturali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles que dispunham dos títulos de proprie<strong>da</strong>de,<br />

fenômeno esse regionalmente conhecido como o <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos<br />

'paulistas' 36 .<br />

Figuras 65, 66, 67 e 68. (verificar a seqüência <strong>da</strong> numeração, pois<br />

muitas tabelas foram considera<strong>da</strong>s como figuras.<br />

Não há dúvi<strong>da</strong> de que to<strong>da</strong>s essas aquisições de títulos de<br />

proprie<strong>da</strong>de no Acre só se tornaram possíveis em função <strong>da</strong> crise de<br />

hegemonia <strong>da</strong>s velhas classes dominantes regionais, crise essa que,<br />

por cima, teve seus marcos na quebra de aliança com o bloco de<br />

poder nacional (1958­1967) e, por baixo, na afirmação <strong>da</strong> autonomia<br />

dos seringueiros. Crise essa que, diga­se de passagem, não se iniciara<br />

nos anos 1970. A política enseja<strong>da</strong> pelo governo Vanderley Dantas<br />

(1971­1975) procurando atrair esses investidores do sul do país, em<br />

perfeita sintonia com a política geral do regime militar para a<br />

Amazônia significou, na ver<strong>da</strong>de, deixar as instituições do Estado no<br />

Acre à mercê dos novos protagonistas. Quando se sabe (1) do 'caos<br />

fundiário' que caracteriza o Acre; (2) que aqueles que efetivamente<br />

ocupavam essas/aquelas terras, os seringueiros libertos ou<br />

autônomos; (3) que as autori<strong>da</strong>des federais não controlavam mais<br />

diretamente o aparato administrativo estadual e, portanto, os 'de<br />

36 Voltarei mais adiante a essa importante problemática que, em diferentes momentos, invade<br />

este texto.


cima', 'de fora' e 'de dentro' podiam agir sem peias 37 , até porque (4) as<br />

mais importantes lideranças políticas tradicionais, os Srs Guiomar<br />

Santos e Oscar Passos que, à sua maneira, exerciam a hegemonia<br />

político­ideológica conformando um determinado projeto, uma<br />

determina<strong>da</strong> visão de mundo legítima não se fazia mais presente; e<br />

(5) sem a mediação dessas lideranças, os velhos seringalistas passam<br />

a viver ao sabor <strong>da</strong>s conveniências mais imediatas, sem nenhum<br />

projeto político em que fun<strong>da</strong>r sua hegemonia, vendem suas<br />

proprie<strong>da</strong>des, ou se mu<strong>da</strong>m para Belém, Fortaleza, Rio de Janeiro ou<br />

Brasília deixando o Acre praticamente nas mãos dos 'paulistas'.<br />

É como se estivéssemos diante <strong>da</strong> expropriação <strong>da</strong>s velhas<br />

classes dominantes do Acre, sua mais completa desterritorialização.<br />

A per<strong>da</strong> <strong>da</strong> hegemonia é clara. Os velhos seringalistas não são mais<br />

protagonistas naquele sentido que tomamos emprestado dos gregos.<br />

Lembremos, to<strong>da</strong>via, que 70,58% <strong>da</strong>s terras dos estabelecimentos<br />

rurais do Acre eram, em 1970, de proprie<strong>da</strong>des inferiores a 1.000<br />

hectares e que aproxima<strong>da</strong>mente 50% de todos os responsáveis pelos<br />

estabelecimentos rurais do estado eram de Ocupantes, Seringueiros<br />

Autônomos, particularmente, no vale do Acre­Purus onde conflitos<br />

de outra natureza do que aquele indicado pela expressão invasão de<br />

'paulistas' quer fazer crer.<br />

Os novos protagonistas que se apresentam no cenário acreano,<br />

'os paulistas', já o nome o indica, vêm de outros lugares, e vão ter que<br />

lutar para afirmar sua hegemonia tendo, desde o início, que se<br />

desfazer de uma identi<strong>da</strong>de que lhe atribuí<strong>da</strong> e que lhe era, no<br />

mínimo, incômo<strong>da</strong>. Esses novos protagonistas apareciam, por<br />

exemplo, como representantes do Acre, como o Sr. Pedro Dotto,<br />

Presidente <strong>da</strong> Associação dos Empresários do Acre, ele mesmo<br />

natural do município de Jales, no Estado de São Paulo.<br />

14.2 ­ A Estra<strong>da</strong> e as Diferentes Estra<strong>da</strong>s no Imaginário <strong>da</strong>s Gentes<br />

Como expressão maior <strong>da</strong> geografici<strong>da</strong>de do Estado cabe<br />

destacar o papel que ele viria cumprir na organização do espaço<br />

nesses anos1970. Aqui sua lógica territorialista se torna por demais<br />

37 Essa situação foi claramente percebi<strong>da</strong> pelos setores organizados no interior do chamado<br />

movimento popular quando se vê, por exemplo, a orientação <strong>da</strong> Igreja Católica para que<br />

procurassem as autori<strong>da</strong>des federais por desconfiar <strong>da</strong>s que atuavam no Estado.


evidente, posto que sua atuação terá o objetivo de delinear a<br />

ocupação desse espaço através <strong>da</strong>s linhas de crédito, que são os<br />

subsídios e incentivos fiscais, e <strong>da</strong>s linhas que rasgam, que marcam,<br />

materialmente a terra: as estra<strong>da</strong>s. A abertura dos meios de<br />

circulação, isto é, o dinheiro (política de subsídios), e as estra<strong>da</strong>s<br />

(política de transportes), dão bem a exata dimensão do Estado<br />

engendrando as condições gerais de produção que no entanto, só se<br />

consoli<strong>da</strong>m quando a socie<strong>da</strong>de garante, por si mesma, a sua<br />

reprodução e a reprodução deste mesmo Estado, via geração de mais<br />

valia sob a forma de impostos.<br />

Com a crise específica pela qual passavam as classes<br />

dominantes regionais acreanas desde o final dos anos 1950 e,<br />

sobretudo, ao longo dos anos 1960, a procura de novas ligações com<br />

o bloco histórico de poder nacional se tornava imperiosa. Há, assim,<br />

uma clara convergência de interesses dos gestores territorialistas com<br />

setores dessas classes dominantes decadentes para tentar atrair<br />

investimentos para o Acre. ‘ACRE – um mundo novo, terra fértil<br />

para investimentos foi o título <strong>da</strong> exposição proferi<strong>da</strong> pelo então<br />

Governador do Acre (1971­1975) Francisco Vanderlei Dantas por<br />

ocasião do Primeiro Seminário de Integração Nacional realizado no<br />

Rio de Janeiro entre 3 e 5 de abril de 1973. O slogan de seu governo<br />

era Produzir no Acre, Investir no Acre, exportar pelo Pacífico<br />

A estra<strong>da</strong> vinha, finalmente, superar 'a tirania <strong>da</strong>s distâncias' de<br />

que nos falara Leandro Tocantins. Além de ser um componente <strong>da</strong><br />

infra­estrutura necessária para viabilizar a incorporação de novas<br />

áreas/recursos a capitais ávidos de novas frentes de acumulação, a<br />

estra<strong>da</strong> mobiliza desejos e aspirações que mergulham no mais<br />

profundo <strong>da</strong> alma <strong>da</strong>s gentes.<br />

No Acre, em particular, as distâncias geográficas, nas suas<br />

diferentes escalas, são extremamente relevantes na conformação <strong>da</strong>s<br />

subjetivi<strong>da</strong>des: não só as distâncias entre as colocações e entre essas<br />

e o barracões são grandes, mas também as distâncias do Acre dos<br />

centros de poder do país.<br />

Para superar essas distâncias as elites dominantes regionais<br />

ain<strong>da</strong> podiam se deslocar de avião, e, no Acre, em função <strong>da</strong><br />

condição de Território Federal até 1962, muitos vôos foram mantidos<br />

por razões eminentemente políticas. As escalas de poder eram aqui,


também, as escalas dos aviões. As redes de poder se faziam,<br />

rigorosamente, por cima, pelo alto e para os 'de cima'. O fim <strong>da</strong><br />

condição de Território, em 1962, juntamente com a retira<strong>da</strong> do<br />

mercado <strong>da</strong> Panair do Brasil, começaria a diminuir essas escalas,<br />

essas relações tão importantes para os 'de cima', aqui sem nenhuma<br />

ironia.<br />

Para os 'de baixo' a estra<strong>da</strong> é o contraponto do rio. Dizer, como<br />

o faz Leandro Tocantins, que o rio coman<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, é dizer que o<br />

complexo seringalista, encimado pelas Casas Aviadoras e pelos<br />

Patrões, detém a hegemonia social. Relembremos que os barracões<br />

tinham suas sedes geralmente numa Boa Vista, junto ao barranco do<br />

rio, o que significa, nesse contexto, ser este uma via onde o controle<br />

dos patrões era maior. Ouçamos os protagonistas<br />

'Um dia tentei pegá um documento lá em Rio Branco, na<br />

capitá. Minha carteira de reservista três. Mas o Altevir Leal cancelou<br />

minha passage prá Rio Branco, seu Ribamar, o gerente, sonegou. Eu<br />

devendo a ele, ele sonegou até a passagem na embarcação dele ­ era<br />

pra eu voltá pro seringal, prá trabalhá em veiz de ir atrás de<br />

documento. Voltei, trabalhei mas acabei corrido <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de do<br />

Altevir Leal, o senador' (Depoimento do seringueiro Rubem<br />

Rebouças de Oliveira em O Varadouro, mar. 1979).<br />

Tabela – Número de estabelecimentos e áreas rurais do Acre 1970,<br />

1975, 1980 e 1985.<br />

A estra<strong>da</strong> passa pelos fundos do barracão e, sabemos, na<br />

organização social do espaço do seringal, todos os caminhos levam<br />

ao ...barracão. É ali, no divisor de águas, que passa a BR­317. E aqui<br />

fundos se contrapõe a frente não só no sentido geométrico, espacial.<br />

É, de fato, um deslocamento de poder que se está engendrando.<br />

'Observou­se ain<strong>da</strong> um fato interessante, quando <strong>da</strong> abertura de<br />

rodovias e estra<strong>da</strong>s de ligação, entre municípios e do Estado com o<br />

resto do país (AC­40, BR­317, BR­364 etc.): os seringueiros<br />

transferiram seus tapiris para a beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, ocupando as margens<br />

<strong>da</strong>s rodovias, para com isso facilitar suas relações com os<br />

compradores de borracha e fornecedores de mercadorias' (Costa<br />

Sobrinho, 1994:142).


Tabela .... Estabelecimentos e áreas rurais do Acre ­ 1970<br />

Ou ain<strong>da</strong><br />

'O seringueiro Joaquim Bispo, do Seringal São Cristóvão,<br />

município de Brasiléia, não an<strong>da</strong> de boas amizades com o seringalista<br />

Joaquim de Oliveira Neto. O problema é que o São Cristóvão, como<br />

outros seringais <strong>da</strong> região, andou desarticulado, sem que o patrão<br />

garantisse o aviamento aos seringueiros e, como conseqüência, Bispo<br />

e outros companheiros se tornaram mais ou menos autônomos,<br />

comercializando a borracha que conseguiam produzir com algum<br />

marreteiro que passava pela estra<strong>da</strong> mais próxima <strong>da</strong>s colocações. É<br />

claro que isso não agradou ao seringalista, sobretudo depois que a<br />

borracha conseguiu um aumentozinho no preço e os seringueiros<br />

rebeldes, entre eles o Joaquim Bispo, passaram a receber recados<br />

desaforados. No último dia 21 de setembro Bispo recebeu um bilhete<br />

que é um ultimatum (...) '...tomarei as Providências Necessárias na<br />

Polícia Dondi o Senhor vai Saber que eu Sou Proprietário ou não.<br />

Pos todos Produzin e Compro a mim só o Senhor é que não quer<br />

entrá em acordo. Então sua desalbidiência ficara soubijuga<strong>da</strong> a lei <strong>da</strong><br />

justiça' (O Varadouro n. 5 nov 1977:<strong>12</strong>).<br />

Assim, junto à estra<strong>da</strong> começam a se aglomerar<br />

pequenas comuni<strong>da</strong>des que, no entanto, pelas razões já aludi<strong>da</strong>s,<br />

nunca deixaram de cortar seringa. É pela estra<strong>da</strong> que passa o<br />

marreteiro. Ele sabe os (des)caminhos dos seringueiros para escapar<br />

ao controle dos patrões. A estra<strong>da</strong> é, assim, liber<strong>da</strong>de de se poder<br />

vender a borracha. A estra<strong>da</strong> é, também, a possibili<strong>da</strong>de de novos<br />

horizontes para quem tem uma vi<strong>da</strong> fortemente marca<strong>da</strong> pelo<br />

isolamento, pela solidão. A estra<strong>da</strong> é abertura para o mundo. Não há<br />

uma família de seringueiro que não perdeu um filho, um parente, por<br />

absoluta falta de condições de deslocamento. Assim como o<br />

seringueiro reconhece legitimi<strong>da</strong>de no patrão no movimento do<br />

barracão, a estra<strong>da</strong> é para ele, sem dúvi<strong>da</strong>, a sua inserção no<br />

movimento <strong>da</strong>s coisas, no movimento do mundo. Chico Mendes, em<br />

mais de uma ocasião, declarara que os marreteiros foram importantes<br />

aliados dos seringueiros na luta contra o pagamento <strong>da</strong> Ren<strong>da</strong>. Assim,<br />

a estra<strong>da</strong> é deseja<strong>da</strong> também pelos 'de baixo' por razões distintas<br />

<strong>da</strong>quelas dos 'de cima'.<br />

No entanto, uma coisa é a estra<strong>da</strong> que tráz o marreteiro,<br />

geralmente aquele pequeno comerciante ambulante, muitas vezes um


ex­e­futuro­seringueiro, ligado a alguma casa comercial de alguma<br />

família de descendentes de sírio­libaneses. Outra coisa é a estra<strong>da</strong><br />

que é anuncia<strong>da</strong> por Vanderley Dantas que conclama a vir para o<br />

Acre para exportar pelo Pacífico. Esta não é, como nos declarou uma<br />

entrevista<strong>da</strong> em Xapuri, uma estra<strong>da</strong> 'para os pequenos'. Com ela<br />

chegam os 'paulistas' a quem uma parcela importante dos<br />

seringalistas acreanos vendera os seus seringais.<br />

Com a estra<strong>da</strong> se instaura no Acre um mercado de terras<br />

propriamente dito. Impondo­se a lógica do mercado de fatores, tão<br />

bem capta<strong>da</strong> no modelo de von Thünen, o que o Acre tinha a oferecer<br />

nesse novo contexto eram terras baratas que, exatamente por serem<br />

baratas, tornava racional o seu uso extensivo. Há uma racionali<strong>da</strong>de<br />

capitalista em se fazer pecuária extensiva de corte nas regiões mais<br />

afasta<strong>da</strong>s dos mercados que, assim, impõe seu dinamismo espacial. A<br />

lei de ferro <strong>da</strong> concorrência tornava racional que se desmatasse a<br />

floresta. A hegemonia dessa racionali<strong>da</strong>de econômica capitalista<br />

implicava, assim, a destruição de outras racionali<strong>da</strong>des que, também,<br />

têm a sua economia.<br />

Assim, com a abertura <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> BR­317, BR­364 e AC­40<br />

muitos, como o dono <strong>da</strong> Coloama, que haviam comprado terras para<br />

que tivessem o título de proprie<strong>da</strong>de que os habilitasse aos incentivos<br />

fiscais do Proterra ou do Probor, ou do Basa ou <strong>da</strong> Su<strong>da</strong>m,<br />

começaram a lotear seus latifúndios. Inicia­se, assim, um segundo<br />

momento que vai além <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> naturali<strong>da</strong>de dos novos<br />

titulares.<br />

'O paulista Josué Alexandre de Oliveira, de Presidente<br />

Prudente, comprou em 1971 o seringal Catuaba com 224 mil<br />

hectares, mas, ao medi­lo, descobriu apenas 87 mil, ain<strong>da</strong> muita terra<br />

para quem pagara Cr$ <strong>12</strong>0 mil, menos de Cr$ 2,00 o hectare. Logo<br />

depois, Josué loteou o seringal e o vendeu por Cr$ 150,00 o hectare'.<br />

(O Estado de São Paulo 6 nov.1976).<br />

Naturalmente esse parcelamento dos grandes latifúndios<br />

tornaria possível, mesmo com essa inflação no preço <strong>da</strong> terra, que<br />

não só grandes fazendeiros fossem atraídos para o Acre. A<strong>da</strong>lberto<br />

Ferreira <strong>da</strong> Silva (Silva, 1982) colhe um depoimento extremamente<br />

revelador a esse respeito:


'um entrevistado informou que vendeu 11 hectares em Mato<br />

Grosso por Cr 8.000,00 e comprou, em 1972, 234 ha no Acre por Cr$<br />

3.000,00, ou seja, menos de Cr$ 13,00 o hectare. Um outro disse que<br />

a escolha do Acre para se fixar deveu­se ao fato de a terra naquele<br />

estado ser bem mais barata do que no Sul, 'o que incentiva os<br />

pecuaristas a se deslocarem para esse estado'. Disse que no Sul um<br />

hectare de terra custa Cr$ 50.000,00, o que torna a pecuária uma<br />

ativi<strong>da</strong>de que exige um investimento muito grande. Dado isto, os<br />

sulistas que queriam mexer com a pecuária tiveram que procurar<br />

novas áreas onde as terras fossem mais baratas. Dentre essas áreas,<br />

destaca­se o Acre que, 'além de possuir terras baratas, nelas não tem<br />

parasitas, bernes carrapatos, e a capaci<strong>da</strong>de de suporte <strong>da</strong>s pastagens<br />

é bem maior que no Sul. O pessoal do Sul que era acostumado lá com<br />

50 ha pode ter no Acre de 1.000 a mais' (Silva,1982: 43).<br />

O impacto <strong>da</strong> abertura <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s e a mu<strong>da</strong>nça de uso <strong>da</strong> terra<br />

que ela torna possível implicaram mu<strong>da</strong>nça de estratégia por parte<br />

desses que haviam adquirido títulos de proprie<strong>da</strong>de (que é, também,<br />

título de proprietário o que aumenta não só o capital econômico<br />

como, também, o capital político).<br />

O então Governador Geraldo Mesquita, em depoimento na<br />

Comissão de Agricultura <strong>da</strong> Câmara dos Deputados, diz que, entre<br />

1970 e 1974, foram vendidos 4.290.930 hectares, ou seja, uma área<br />

equivalente a 30% do estado, a 284 proprietários de fora do Estado,<br />

sendo que 32% dessa área foi adquiri<strong>da</strong> por apenas quatro<br />

proprietários todos não­acreanos (Mesquita, 1977, apud Duarte,<br />

1987: 57).<br />

Tabela – Levantamento de desmates autorizados pelo IBDF/AC.<br />

Ou como comentaria o jornal O Estado de São Paulo em sua<br />

edição de 25/05/1980:<br />

'ao encerrar o seu man<strong>da</strong>to em 1975, Dantas já havia<br />

propiciado a ven<strong>da</strong> de pelo menos um terço <strong>da</strong>s terras acreanas aos<br />

sulistas'.<br />

Figura 72 – Transferência de imóveis para proprietários de<br />

procedência de fora do Acre na BR­317 – 1971 a 1979.


O mais interessante nessa matéria de O Estado de São Paulo é<br />

que seu título ­'Acre: <strong>12</strong> milhões de hectares inexplorados'­ indica a<br />

persistência, ain<strong>da</strong> em 1980, do interesse pelas terras do Acre. Vê­se,<br />

no caso, como a imprensa contribui para conformar uma determina<strong>da</strong><br />

geografia.<br />

No vale Acre­Purus e do Abunã, a abertura <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> que liga<br />

Rio Branco a Plácido de Castro, nos finais dos anos 1940, assim<br />

como outros varadouros que, com o passa dos anos se tornaram<br />

estra<strong>da</strong>s ligando Sena Madureira a Rio Branco ou Rio Branco a<br />

Xapuri­Brasiléia vão ensejando, já nos anos 1970, que os<br />

seringueiros se libertem dos barracões.<br />

Vimos como em todo o estado do Acre ocorrera primeiro uma<br />

intensa mu<strong>da</strong>nça de proprietários, sobretudo, quando os “de baixo”<br />

ocupam as terras abandona<strong>da</strong>s pelos “de cima” e, depois, já nos anos<br />

1970, quando os ‘de fora’ e “de cima” adquirem os títulos de<br />

proprie<strong>da</strong>des dos ‘de cima’ e tentam expulsar os “de baixo”.<br />

Figura 73 – Transferência de imóveis para proprietários de<br />

procedência de fora do Acre na BR­317 – 1971 a 1979 – compare<br />

com a fig. 72 e marcar a diferença – o título é igual ­ ATENÇÃO<br />

NUMA FIGURA OS DA<strong>DOS</strong> SÃO DE TODO O ESTADO E NA<br />

OUTRA SÃO POR MUNICÍPIO E ESTA É A DIFERENÇA.<br />

Quando observamos esses processos em detalhe, numa escala<br />

maior, vemos que no vale do Juruá e ao longo <strong>da</strong> BR 364, que<br />

precariamente liga Rio Branco, no vale do rio Acre, a Cruzeiro do<br />

Sul, no vale do Juruá, as terras, muito embora tivessem mu<strong>da</strong>do de<br />

donos, não sofreram grandes mu<strong>da</strong>nças nos sistemas de uso <strong>da</strong> terra.<br />

Não foi o que aconteceu ao longo <strong>da</strong> BR­317, que liga Rio<br />

Branco a Assis Brasil, passando pelos municípios de Rio Branco,<br />

Xapuri e Brasiléia que corta exatamente a área tradicionalmente de<br />

maior produção de borracha e onde é maior a concentração de<br />

Seringueiros Autônomos, isto é, nos vales do rio Acre e do rio<br />

Abunã 39 .<br />

39 A configuração do relevo jogou aqui um papel importante. A construção <strong>da</strong> BR­364, que<br />

cortaria transversalmente o Estado, ligando Rio Branco a Cruzeiro do Sul, por exemplo,<br />

implicava cortar diferentes vales e a construção de obras de arte, como pontes, extensas e caras.


Entre os grandes grupos que adquiriram terras no Acre<br />

identificamos o Copersucar, do Sr Jorge Wolney Attala (SP), o Grupo<br />

Varig/Cruzeiro do Sul (RS) (Fazen<strong>da</strong> 5 Estrelas), o Grupo Café<br />

Cacique, o Grupo Atlântica Boa Vista, o Grupo Bordon (SP), o<br />

Grupo (do Banco) Real e a Viação Garcia (Fazen<strong>da</strong> Paranacre) todos<br />

do sul do país e que, como já salientamos, tinham suas terras<br />

sobretudo ao longo <strong>da</strong> Br 364, em direção a Cruzeiro do Sul. No<br />

entanto, serão, sobretudo, os ex­pequenos e médios fazendeiros do<br />

sul, transformados em grandes fazendeiros no Acre e, também, e<br />

alguns grandes grupos com tradição pecuária, como o Bordon, por<br />

exemplo, que comprarão as terras ao longo <strong>da</strong> BR­317 e que vão<br />

proceder a uma mu<strong>da</strong>nça no uso terra, derrubando a floresta com a<br />

perspectiva de produzir gado bovino para os mercados nacionais e<br />

futura exportação para o que se acreditava promissores mercados do<br />

Pacífico.<br />

Como as matas eram ocupa<strong>da</strong>s, e como!, desmatar ensejaria<br />

necessariamente agudos conflitos 40 . Empate !<br />

Já a BR­317, ligando Rio Branco a Assis Brasil, tem seu traçado em cima do divisor de águas e,<br />

por isso, seus custos de construção são consideravelmente menores, embora de conseqüências<br />

ambientais mais graves, posto que propicia o desmatamento <strong>da</strong>s cabeceiras dos rios. Chega a ser<br />

paradoxal ver as fazen<strong>da</strong>s tendo que construir pequenos açudes para retenção de água numa área<br />

com chuvas anuais em torno de 2.000 mm.<br />

40 Talvez aqui a idéia de fronteira, tão largamente utiliza<strong>da</strong> na literatura sobre esse período <strong>da</strong><br />

história <strong>da</strong> região amazônica, revele o seu caráter essencial que é o front de onde deriva a<br />

expressão fronteira. Afinal, as fronteiras como tais, ao se cristalizarem no espaço, escondem<br />

exatamente os conflitos que a geraram. É que com elas uma determina<strong>da</strong> hegemonia se consagra<br />

e, assim, uma determina<strong>da</strong> correlação de forças políticas é naturaliza<strong>da</strong>.

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