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<strong>Segundo</strong> Tratado Sobre o Governo Civil 17<br />
teoria política, isso vem demonstrar a importância que a influência de <strong>Locke</strong> tomou. Na verdade, nos Estados<br />
Unidos sua influência permaneceu ativa durante algum tempo depois de ter sido amplamente substituída na<br />
Inglaterra, e a freqüência com que continuou a ser citado, como uma contribuição vital às controvérsias políticas,<br />
até meados do século XIX e mesmo mais tarde, proporciona uma interessante evidência corroborativa da<br />
persistência na América da perspectiva individualista que é particularmente associada a <strong>Locke</strong> 77.<br />
Já foram mencionadas algumas falhas na obra de <strong>Locke</strong>, e seria fácil apontar outras. Fundamentalmente,<br />
seu defeito mais sério, que ele compartilha com toda a escola individualista a que pertence, é a artificialidade de<br />
sua teoria. Ele tem pouco conhecimento de psicologia política, enfatiza muito a escolha racional pelos indivíduos,<br />
e parece não ter consciência da solidariedade da sociedade, ou da força de laços como raça ou nacionalidade. Ele<br />
concebeu o corpo político como uma união artificial de indivíduos para propósitos limitados, e um resultado<br />
prático de seus ensinamentos era uma tendência a restringir esses propósitos para proteger os direitos de<br />
propriedade e os privilégios de uma classe governante. <strong>Locke</strong> escreve <strong>sobre</strong> o povo, mas não há razão para se<br />
supor que ele teria aprovado o voto democrático, e talvez ele não tenha considerado suficientemente os<br />
interesses da maioria da humanidade desprovida de propriedades 78. Pois foi sua situação, sob a pressão de um<br />
sistema político e econômico individualista, que fez com que os homens compreendessem o mais amplamente<br />
possível na época de <strong>Locke</strong>, que sua concepção da esfera própria de <strong>governo</strong> é absolutamente inadequada às<br />
necessidades de uma sociedade industrial moderna. Ao mesmo tempo, se sua teoria é incompleta e unilateral, a<br />
teoria oposta, que prioriza o estado e exalta seu poder às custas do indivíduo, é igualmente unilateral, e a história<br />
recente tem demonstrado o quanto pode ser perigosa. Também não deveríamos julgar <strong>Locke</strong> pelo uso que outros<br />
fizeram de seu nome. Tem sido dito que em termos econômicos ele era um mercantilista, e de forma alguma<br />
desaprovava o controle governamental do comércio, e há várias outras direções em que ele achava que o <strong>governo</strong><br />
deveria interferir 79. Mas quando ele intervém, o faz em prol dos indivíduos. Apesar de todos os defeitos que<br />
dificilmente eram evitáveis na época em que escreveu, ele lança os fundamentos para o princípio de que o estado<br />
existe para o bem da espécie humana, e não a espécie humana para os propósitos do estado.<br />
O que é comumente encarado como importante em <strong>Locke</strong> é sua participação na determinação do<br />
princípio do <strong>governo</strong> por consentimento. Esta é uma expressão venerável, mas, em minha opinião, uma expressão<br />
infeliz. Já vimos que, como o próprio <strong>Locke</strong> a utilizou, ela é em si contraditória e falha. Os idealistas do século XIX<br />
tentaram preservar a idéia do consentimento através de sua teoria de que as ações do <strong>governo</strong> estão de acordo<br />
com o “desejo real” individual; mas, por mais engenhosa que seja essa teoria, seu efeito não chega a ser um<br />
aperfeiçoamento em relação a <strong>Locke</strong>. Hoje em dia, o princípio do consentimento é em geral aplicado às formas de<br />
<strong>governo</strong> representativas ou parlamentares, mas não fornece a explicação real, seja para seu funcionamento, seja<br />
para suas vantagens. O que me parece o valor persistente de <strong>Locke</strong> (embora ele não o estabeleça desta forma), é<br />
sua insistência <strong>sobre</strong> a responsabilidade pelo bem-estar da comunidade. Este princípio é agora comumente<br />
admitido, e elaboramos o mecanismo político pelo qual a responsabilidade se torna efetiva – isto, mais que o<br />
consentimento, é o ponto real das eleições e da representação. A discussão agora passou para os meios através<br />
dos quais o estado pode melhor promover o bem-estar, e <strong>sobre</strong> isso ainda há lugar para desacordo; mas<br />
atualmente, mesmo a opinião mais conservadora espera muito mais controle do estado do que os Whigs<br />
consideravam necessário na época de <strong>Locke</strong>. Quanto ao objetivo do estado, o bem-estar da espécie humana – “o<br />
bem público”, como ele coloca – a posição de <strong>Locke</strong> foi fundamentalmente correta. Neste aspecto ele antecipou os<br />
partidários do utilitarismo; e se eliminarmos as falácias que se originam de sua abordagem contratual da política,<br />
o que permanece é uma teoria essencialmente utilitarista.<br />
* * *<br />
77 Ver um interessante artigo de Merle Curti, The Great Mr. <strong>Locke</strong>, America’s Philosopher, in Huntington Library Bulletin, n. 11 (abril de 1937), p. 107-151.<br />
78<br />
Em justiça a <strong>Locke</strong>, no entanto, deveria ser lembrado que ele defendeu “uma regra para os ricos e os pobres, para o favorito na corte e o camponês na terra”<br />
(parágrafo 142).<br />
79<br />
Para um exemplo interessante, ver alguns excertos do diário de <strong>Locke</strong>, sob o título de Atlantis (datados de 1679), publicados em Ch. Bastide, John <strong>Locke</strong>, ses théories<br />
politiques et leur influence en Angleterre, Paris, 1906, Appendix I, onde <strong>Locke</strong> propôs vários regulamentos para controlar a vadiagem, a idade do casamento e as<br />
habitações dos pobres. Uma atitude similar aparece no Relatório Sobre a Assistência e o Emprego do Pobre, por ele esboçado em 1697 em seu cargo como um dos<br />
Comissários do Conselho do Comércio. Um crítico desagradável poderia, é claro, replicar que <strong>Locke</strong> devia ter considerado as classes trabalhadoras incapazes da<br />
autodeterminação racional que ele reivindicava para os abastados.