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Locke-Segundo tratado sobre o governo

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| CLUBE DO LIVRO LIBERAL<br />

CAPÍTULO XVIII<br />

DA TIRANIA<br />

199. Assim como a usurpação consiste em exercer um poder a que um outro tem direito, a tirania consiste<br />

em exercer o poder além do direito legítimo, o que a ninguém poderia ser permitido. É isto que ocorre cada vez<br />

que alguém faz uso do poder que detém, não para o bem daqueles <strong>sobre</strong> os quais ele o exerce, mas para sua<br />

vantagem pessoal e particular; quando o governante, mesmo autorizado, governa segundo sua vontade, e não<br />

segundo as leis, e suas ordens e ações não são dirigidas à preservação das propriedades de seu povo, mas à<br />

satisfação de sua própria ambição, vingança, cobiça ou qualquer outra paixão irregular.<br />

200. Se alguém duvidar da verdade desta proposição, ou de sua fundamentação, por ela vir da mão<br />

obscura de um súdito, espero que a autoridade de um rei saiba fazer com que seja aceita. O rei James, em seu<br />

discurso no parlamento em 1603, nos declara: “Eu vou sempre preferir o bem do público e o de toda a<br />

comunidade civil, fazendo boas leis e boas constituições, a qualquer objetivo meu, privado e pessoal. Pensarei<br />

sempre na riqueza e no bem da comunidade civil como meu maior bem e minha grande felicidade no mundo;<br />

nisso o rei legítimo se situa em oposição ao tirano. Eu reconheço que a principal e específica diferença entre um<br />

rei legítimo e um tirano usurpador é a seguinte: o tirano, orgulhoso e ambicioso, acredita que seu reinado e seu<br />

povo estão destinados apenas à satisfação de seus desejos e de suas aspirações exorbitantes; ao contrário, o rei<br />

legítimo e justo reconhece que sua própria existência deve ser destinada à busca da riqueza e da propriedade de<br />

seu povo”. E novamente, em seu discurso ao parlamento em 1609, ele diz as seguintes palavras: “O rei obriga a si<br />

próprio um duplo juramento para observar as leis fundamentais de seu reino. Tacitamente, em virtude de sua<br />

qualidade de rei, comprometendo-se a proteger o bem do povo e as leis de seu reinado; e expressamente, pelo<br />

juramento que pronunciou quando foi coroado; assim, todo rei justo, em num reino estabelecido, compromete-se<br />

a observar o pacto feito com seu povo quando ele fez as leis, proporcionando ao seu <strong>governo</strong> uma organização<br />

que se harmonize com ele, seguindo o modelo do pacto que Deus fez com Noé após o dilúvio. Daí em diante, seja<br />

tempo de semeadura ou de colheita, frio ou quente, verão ou inverno, dia ou noite, ele não terminará enquanto a<br />

terra existir. Por isso, um rei que governa um reino estabelecido deixa de ser um rei e degenera em um tirano no<br />

momento em que ele põe de lado as leis estabelecidas e passa a governar de acordo com suas próprias leis”. E um<br />

pouco depois, “Por isso todos os reis que não são tiranos, ou perjuros, ficarão felizes em se restringir aos limites<br />

de suas leis. E aqueles que os convencem do contrário são víboras, pestes, e estão tanto contra eles quanto contra<br />

toda a comunidade civil”. Assim este monarca ilustrado, que compreendia bem as noções das coisas, estabelece<br />

que a diferença entre um rei e um tirano consiste apenas em que o primeiro faz das leis o limite de seu poder, e do<br />

bem público o objetivo de seu <strong>governo</strong>; o outro subordina tudo a sua vontade e ambição pessoais.<br />

201. É um erro acreditar que este defeito é exclusivo apenas das monarquias; outras formas de <strong>governo</strong><br />

também podem estar propensas a possuí-lo. Cada vez que um poder, colocado nas mãos de alguém que deve<br />

governar o povo e preservar suas propriedades, é aplicado para outros objetivos e é utilizado para empobrecer,<br />

perseguir ou subjugar o povo às ordens irregulares e arbitrárias daqueles que o detêm, imediatamente se<br />

transforma em uma tirania, seja este abuso cometido por um ou mais homens. Por exemplo, podemos ler a<br />

história dos trinta tiranos de Atenas ou aquela de um tirano único em Siracusa; e a intolerável dominação dos<br />

decênviros em Roma não foi nada melhor.<br />

202. Onde termina a lei começa a tirania, desde que a lei seja transgredida em prejuízo de alguém. Toda<br />

pessoa investida de uma autoridade que excede o poder a ele conferido pela lei, e faz uso da força que tem sob seu<br />

comando para atingir o súdito com aquilo que a lei não permite, deixa de ser um magistrado; e,

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