Revista Senac Educação Ambiental - OEI
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foto: Pablo Valadares / Ag. Estado<br />
"Os OGMs respondem a uma<br />
racionalidade que se separa da<br />
ordem biológica e simbólica"<br />
Essas formas de ver o mundo terminam<br />
por acelerar os processos de<br />
degradação ambiental, na medida em<br />
que legitimam um crescimento econômico<br />
que implica um consumo da<br />
natureza cada vez maior. É uma dinâmica<br />
econômica que desconhece<br />
limites e não leva em conta as condições<br />
ecológicas do planeta, colocando<br />
em marcha, em escalas cada vez<br />
maiores, um processo de apropriação<br />
e consumo destrutivo da natureza.<br />
S&EA – Já que estamos falando de<br />
complexidade, gostaria que o sr. esclarecesse<br />
uma questão que intriga<br />
os que acompanham o seu trabalho:<br />
qual seria, basicamente, a diferença<br />
entre sua visão de complexidade e a<br />
defendida pelo sociólogo francês Edgar<br />
Morin?<br />
EL – Embora tenhamos posturas semelhantes<br />
em muitas questões fundamentais,<br />
temos também diferenças<br />
qualitativas, que não são meras sutilezas.<br />
Sendo tão ampla e rica a produção<br />
teórica do Morin, vou me ater aqui apenas<br />
aos aspectos epistemológicos do<br />
pensamento dele sobre a complexidade<br />
e às minhas idéias sobre a complexidade<br />
ambiental.<br />
Por exemplo, Morin vê a complexidade<br />
como um processo de complexificação<br />
crescente da physis – ou seja,<br />
do mundo cósmico, material –, até que<br />
se gera a emergência do pensamento,<br />
do conhecimento e da ordem simbólica.<br />
Morin busca entrelaçar os processos<br />
materiais e simbólicos, as inter-relações<br />
entre as ciências e os distintos<br />
saberes, pensando esses fluxos<br />
quase como inter-relações ecológicas<br />
e como reciclagens ou circuitos<br />
cibernéticos de retroalimentação.<br />
Sua concepção é de uma “ecologia<br />
generalizada” – como o próprio Morin<br />
a define –, em que todos esses processos<br />
diferenciados, tanto científicos<br />
quanto simbólicos e materiais, se entrelaçam<br />
e complexificam.<br />
Para mim, a diferença vem de um posicionamento<br />
epistemológico e filosófico<br />
diferente, no sentido da relação<br />
entre o real e o simbólico. A meu ver,<br />
o real está estruturado como ordens<br />
ontológicas diversas e diferenciadas,<br />
o que impede pensar em um pensamento<br />
holístico e em um paradigma<br />
transdisciplinar que corresponda a uma<br />
realidade complexa. Se falamos estritamente<br />
do campo da ciência, em que<br />
se geram os paradigmas científicos,<br />
constatamos que os seus diferentes<br />
ramos não fluem, não se interconectam<br />
facilmente. Nesse campo, se geram<br />
obstáculos epistemológicos que<br />
impedem que um ramo da ciência realmente<br />
dialogue com outro.<br />
O que eu coloco é que entre o real e o<br />
simbólico, entre a realidade e as ciências,<br />
se geram estruturas diferenciadas<br />
de pensamento e de poder, que<br />
não permitem que haja esse fluxo, integração<br />
e complementaridade entre<br />
formas de simbolização da natureza,<br />
formas de comunicação e formas de<br />
ser das coisas.<br />
Ou seja, a meu ver, a relação entre o<br />
simbólico e o real é muito mais complexa<br />
que o pensamento complexo, já<br />
que está permeada por relações de<br />
poder, por matrizes de racionalidade e<br />
por formações culturais diversas. Essas<br />
estruturas e processos não se articulam<br />
simplesmente graças a um pensamento<br />
ou a um método que busque<br />
entrelaçá-los. Entre o real e o simbólico,<br />
nas formas de significação do mundo,<br />
se estabelecem relações e estratégias<br />
de poder que obstaculizam as<br />
vias pelas quais poderiam se entrelaçar<br />
e se reunificar em um paradigma<br />
holístico.<br />
S&EA – Além dessas divergências<br />
epistemológicas com Morin, ainda<br />
haveria diferenças de outra natureza...<br />
Poderia mencioná-las?<br />
EL – É verdade. Também temos uma<br />
divergência de natureza talvez mais<br />
filosófica do que meramente metodológica,<br />
na forma de olhar hoje em<br />
dia a complexidade do ser. Uma complexidade<br />
que não se dá apenas na<br />
relação entre o real e o simbólico e no<br />
entrelaçamento das disciplinas científicas,<br />
como já disse. A complexidade<br />
se dá numa percepção da relação<br />
não somente do conceito com as coisas,<br />
mas na relação entre o ser e o<br />
saber.<br />
É uma visão mais politizada do que hoje<br />
em dia significa a emergência de identidades<br />
complexas. Primeiro de entidades<br />
complexas e híbridas, em que<br />
já não há uma correspondência direta<br />
entre o conceito e as coisas, porque a<br />
ordem propriamente ontológica das<br />
coisas, das entidades, se complexificou<br />
como reflexo da intervenção do<br />
pensamento e do conhecimento no<br />
mundo.<br />
Por exemplo, a transgênese: hoje não<br />
há um mundo da vida, que seja puramente<br />
biológico, interatuando com o<br />
mundo físico e químico. A tecnologia<br />
que interveio na vida gerou uma entidade<br />
híbrida do simbólico, do tecnológico<br />
e do material. A produção de<br />
organismos geneticamente modificados<br />
(OGMs) e de culturas transgênicas<br />
responde a uma racionalidade<br />
econômica e tecnológica, que se separa<br />
da ordem biológica e simbólica<br />
na qual ocorrem as mutações da vida<br />
e sua co-evolução com a cultura. A<br />
vida foi transtornada pela lógica do<br />
mercado e pelo poder tecnológico,<br />
levantando um problema ontológico,<br />
epistemológico e ético sem precedentes.<br />
Essa visão muda a maneira de entender<br />
que aspectos podem se entrelaçar<br />
nesses processos de relacionamento<br />
das coisas. Também gera<br />
formas de complexidade na formação<br />
de novas identidades, já que as<br />
subjetividades também estão hoje<br />
formadas por formas muito mais<br />
complexas do ser – o ser humano e<br />
não-humano da natureza. E tudo isso<br />
se conjuga nos processos de reapropriação<br />
da natureza – uma reapropriação<br />
cultural, simbólica e política dos<br />
mundos da vida.<br />
Em resumo, minhas diferenças em relação<br />
às posições de Morin seriam não<br />
apenas em termos de uma visão filosófica<br />
diferente de como se constrói o<br />
conhecimento e como este interage<br />
com a realidade, mas também de uma<br />
compreensão do que hoje implica a<br />
complexidade aberta a uma política da<br />
diferença, do ser, da outridade.<br />
Ano 16 • n.1 • janeiro/abril de 2007 12 <strong>Senac</strong> e Educação <strong>Ambiental</strong>