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27<br />
Pereira <strong>da</strong> Siva esposa de José Pessoa Tavares,<br />
sargento-mor <strong>da</strong>s ordenanças de Castelo Branco,<br />
cavaleiro professo <strong>da</strong> Ordem de cristo, fi<strong>da</strong>lgo de cota<br />
de armas, (47) negociante de grosso trato e «uma <strong>da</strong>s<br />
pessoas mais ricas <strong>da</strong> província <strong>da</strong> Beira».<br />
D. Leonor nascera na Covilhã a 18.4.1745 e ali<br />
casara, a 11.4.1773, com seu primo José Pessoa<br />
Tavares natural do<br />
Fundão mas residente<br />
na urbe albicastrense,<br />
onde veriam pela la vez<br />
a luz do dia todos os<br />
seus filhos. Ambos<br />
descendiam de famílias<br />
cristãs-novas, mas<br />
seguiam e praticavam<br />
escrupulosamente a<br />
religião católica, vivendo<br />
com «muito asseio e<br />
luzimento» na sua casa<br />
<strong>da</strong> Rua do Pina e<br />
tratando-se à lei <strong>da</strong><br />
nobreza com escudeiros,<br />
lacaios, seges,<br />
cavalos, etc.<br />
Acometi<strong>da</strong> de prolonga<strong>da</strong><br />
e dolorosa<br />
enfermi<strong>da</strong>de, D. Leonor passou os últimos dias <strong>da</strong><br />
sua vi<strong>da</strong> em estado bastante crítico, quási moribun<strong>da</strong>...<br />
No decurso deste período, a 17.10.1805, o R.do P.<br />
Francisco José Robalo Moutoso presbítero secular,<br />
bacharel em Cânones pela Universi<strong>da</strong>de de Coimbra<br />
e comissário do Santo Ofício, visitara a enferma com<br />
o fim de prestar-lhe algumas consolações espirituais<br />
mas o marido opuzera-se energicamente a tal<br />
propósito, increpando-o para que não molestasse a<br />
mulher...<br />
Pouco depois, na madruga<strong>da</strong> de 20 de Outubro, D.<br />
Leonor expirava após lhe haverem sido administrados<br />
todos os sacramentos pelo P. António <strong>da</strong> Maia<br />
Nogueira, cura <strong>da</strong> Sé. Nesse mesmo dia, pelas 10<br />
horas <strong>da</strong> manhã, saiu sa Rua do Pina o préstito fúnebre<br />
com os seus restos mortais, nele se incorporando<br />
além de familiares, amigos e dependentes, as figuras<br />
mais representativas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e muito povo.<br />
Encaminhou-se o cortejo para a igreja de Santa Isabel,<br />
em cujo edificio estava ain<strong>da</strong> instala<strong>da</strong> a primitiva<br />
Misericórdia e que então servia de paroquial <strong>da</strong><br />
freguesia <strong>da</strong> Sé Catedral, em obras de restauro... Ali<br />
tiveram lugar as cerimónias litúrgicas habituais e,<br />
depois de encomen<strong>da</strong><strong>da</strong> a alma <strong>da</strong> faleci<strong>da</strong>, lançou-<br />
-se cal e vinagre sobre o corpo e lhe puseram por<br />
cima uma grande toalha, que a cobria dos pés à<br />
cabeça. Finalmente, fecharam o caixão, cuja chave<br />
ficou na posse de José Tudela de Castilho, fi<strong>da</strong>lgo <strong>da</strong><br />
Casa Real e a quem tinha sido confia<strong>da</strong> a sua guar<strong>da</strong>...<br />
Entretanto, o coveiro Simão Rodrigues Serra procurou<br />
o P. Francisco José Robalo para lhe comunicar<br />
as suas apreensões quanto ao enterramento, pois a<br />
colocação <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> toalha sobre o cadáver levantara<br />
certo sussurro dos que nesse acto julgavam descobrir<br />
um rito ju<strong>da</strong>ico...<br />
O nosso Comissário actuou imediatamente. Na<br />
companhia do coveiro subiu a nave central do templo<br />
até chegar à uma e, invocando o nome do Santo Oficio,<br />
perguntou a Manuel de - Sousa Cardoso, escudeiro<br />
de José Pessoa Tavares, que mortalha levava a sua<br />
senhora. Perante a resposta de “que ia amortalha<strong>da</strong><br />
como as mais”, disse que queria examinar a toalha<br />
para ver se era de pano de linho novo e cru. E,<br />
efectivamente, depois de a apalpar, tirou-a para fora<br />
mas verificando a falsi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> denúncia, pois tratava-<br />
-se de uma velha toalha de Bretanha com folhos e<br />
ren<strong>da</strong>s e enxovalha<strong>da</strong> pelo uso, arremessou-a ao chão.<br />
Então, mandou prosseguir a cerimónia e retirando-se<br />
pelo mesmo caminho, foi comentando para a<br />
assistência que “esta gente sempre queria levar roupa<br />
de linho...”<br />
To<strong>da</strong>s estas diligências provocaram um certo<br />
borborinho entre as 300 pessoas que enchiam o<br />
templo, varrido por um sopro de drama e escân<strong>da</strong>lo:<br />
uns, sentindo-se ofendidos e amargurados com a<br />
atitude do Comissário; outros, procurando conhecer<br />
melhor a razão do seu procedimento; quiçá alguns<br />
encantados pela vergonha infligi<strong>da</strong> a uma família rica<br />
e poderosa, por quem nutriam inveja e ressentimento...<br />
Três dias depois deste incidente, a 23 de Outubro,<br />
José Pessoa. Tavares apresentava ao juiz de fora de<br />
Castelo Branco um requerimento dirigido a S.A.R., o<br />
Príncipe Regente D. João, expondo o sucedido e<br />
pedindo o castigo do P. Francisco José Robalo<br />
Moutoso pelo “acto infame e injurioso com que<br />
pretendera denegrir a sua reputação”.<br />
Como o acusado era Familiar do Santo Oficio, todo<br />
o processo acabou por correr sob a alça<strong>da</strong> do<br />
respectivo Conselho Geral.<br />
Para apuramento do caso foram ouvi<strong>da</strong>s diversas<br />
testemunhas e vistas as justificações apresenta<strong>da</strong>s<br />
por ambas as partes. Através delas verificou-se, entre<br />
outras coisas, o seguinte:<br />
- Atendendo a semelhante aviso do coveiro, o P.<br />
Francisco José Robalo já alguns anos antes fizera<br />
despir na igreja uma filha de Estevão Soares Franco,<br />
cristão novo, estando também amortalha<strong>da</strong> para a<br />
sepultarem (28.3.1787).<br />
- Ele excedera os seus deveres e juridisção, agindo<br />
contra as disposições expressas nas leis de 25.5.1773<br />
e 15.12.1774 (que, confessou não conhecer) e infrigiu<br />
ain<strong>da</strong> o parágrafo 1 do liv. 3, Titº19 do Regimento.<br />
Por tudo isto, ao pronunciar a sua sentença, em<br />
16.5.1806, o referido Tribunal condena o Comissário<br />
a suspensão perpétua do exercício do seu cargo e a<br />
3 anos de degrêdo para fora de Castelo Branco. (48)<br />
Além do mais, este caso revela-nos como as leis