Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
42<br />
conjunto de ligações práticas e quantas vezes<br />
simbólicas entre um grupo humano e certos elementos<br />
do seu meio natural, parece-nos ser o caminho a<br />
seguir nas abor<strong>da</strong>gens que preten<strong>da</strong>mos estabelecer<br />
relativamente a um vasto conjunto de saberes<br />
apeli<strong>da</strong>dos de populares ou tradicionais.<br />
É o caso <strong>da</strong> medicina caseira, ou se quisermos<br />
etnomedicina, também mal chama<strong>da</strong> de medicina<br />
popular, saber tão intimamente relacionado com essa<br />
existência que atrás citávamos. A investigação dessa<br />
coordena<strong>da</strong> cultural levanta-nos contudo algumas<br />
questões. Em primeiro lugar a classificação de popular,<br />
isto é, o que é que se considera popular. As<br />
práticas ain<strong>da</strong> existentes em socie<strong>da</strong>des rurais A<br />
dos analfabetos e a dos economicamente mais<br />
desfavorecidos E as cama<strong>da</strong>s “culturalmente<br />
avança<strong>da</strong>s” não utilizarão também elas essas práticas,<br />
assistindo-se assim a uma não correspondência entre<br />
clivagens culturais e hierarquias sociais Também<br />
poderemos falar de práticas medicinais não oficiais e<br />
aí encontramo-nos perante<br />
práticas partilha<strong>da</strong>s que<br />
atravessam as linhas<br />
sociais. Torna-se então<br />
evidente que, caracterizar<br />
as formas de medicina a<br />
partir <strong>da</strong> dicotomia medicina<br />
oficial - medicina popular,<br />
é tarefa às vezes não<br />
isenta de sensíveis enviesamentos<br />
ideológicos, <strong>da</strong>do o virtual maniqueísmo<br />
quando as utilizamos. O que neste caso será<br />
importante analisar diz respeito ao modo como é que<br />
socialmente se impõe e legitima a (ain<strong>da</strong> para muita<br />
gente oscilante) fronteira entre os domínios oficiais e<br />
os domínios populares <strong>da</strong> medicina. À medicina popular<br />
fazem alguns autores corresponder um conjunto<br />
de práticas com um misto de crenças religiosas,<br />
aspectos de superstição e magia, assim como a uma<br />
grande panóplia de agentes relacionados com a sua<br />
transmissão. Sem dúvi<strong>da</strong> que esta visão possui uma<br />
firme força comunicativa e imaginética na socie<strong>da</strong>de<br />
dos nossos dias. Em Portugal, a história <strong>da</strong> construção<br />
e difusão desta ideia está por realizar e as posições<br />
alinham-se num leque variado, desde os que admitem<br />
que a medicina popular existe com autonomia plena,<br />
aos que associam a sua persistência a territórios<br />
geograficamente isolados e periféricos face aos<br />
centros emissores <strong>da</strong> medicina oficial.<br />
Ora, o que nos parece (no caso que vamos abor<strong>da</strong>r)<br />
é que sobre certas práticas mais antigas <strong>da</strong> medicina<br />
se desenvolveram, estabeleceram e entrecruzaram<br />
saberes num vasto conjunto através de um grande<br />
processo de aculturação ao longo dos tempos. A<br />
medicina dita popular não surgiu espontaneamente<br />
nem permaneceu inaltera<strong>da</strong> no fluir <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des.<br />
Como sistema complexo e desempenhando uma<br />
A Etnografia <strong>da</strong> Beira, cujos onze volumes<br />
foram sendo editados ao longo de<br />
quase meio século, mais não constitui<br />
hoje que um grande corpus de<br />
informação etnográfica, a merecer<br />
urgente estudo crítico.<br />
função social, a sua subsistência só poderá<br />
compreender-se pela sua utili<strong>da</strong>de às socie<strong>da</strong>des ou<br />
aos grupos a que diz respeito. Não constitui portanto,<br />
como pensam alguns, uma manifestação de atraso<br />
cultural. Não é pratica<strong>da</strong> só no espaço rural (ain<strong>da</strong><br />
que aí seja o seu campo privilegiado) e caracteriza-se<br />
por ser pragmática, quantas vezes vira<strong>da</strong> para um certo<br />
imediatismo provocado pelas dores dos quotidianos,<br />
pretendendo sempre <strong>da</strong>r respostas a necessi<strong>da</strong>des<br />
motiva<strong>da</strong>s pelo estado de doença de um certo indivíduo<br />
numa <strong>da</strong><strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, utilizando-se, para isso, uma<br />
farmacopeia específica, por vezes associa<strong>da</strong> a certos<br />
ritos, resultando de aculturações de cariz religioso.<br />
Nessa farmacopeia consideramos todo um conjunto<br />
de elementos botânicos, minerais e animais de que<br />
uma socie<strong>da</strong>de se serve para combatera doença. Mas,<br />
quando analisa<strong>da</strong>s, as farmacopeias projectam-se<br />
directamente no corpo, especealizando-se e<br />
especializando-se nas suas partes constituintes.<br />
Como afirma J. dos Santos, “il y a le corps, un ensemble<br />
de découpages,<br />
de définitions, qui sont<br />
ceux du corps, de ses<br />
différentes parties et en<br />
particulier Ia problemátique<br />
du corps malade et<br />
du corps sain; c’est-à-dire<br />
Ia santé et Ia maladie,<br />
donc aussi toute une<br />
symptomatologie et Ia<br />
définition de I’apparition de quelque chose qui ne devrait<br />
pas être lá, d’une patologie, etc. Entre ces deux ensembles<br />
(pharmacopée et corporalité), se place une<br />
sorte d’opérateur qui sont les techniques de mise en<br />
oeuvre de Ia pharmacopée et qui définissent le champ<br />
de Ia médicine populaire” (8) .<br />
A classificação de etnomedicina enquadra-<br />
-se nesse vasto grupo de ciências cuja interface<br />
encontramos entre as ciências <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
e as ciências do homem e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Neste caso,<br />
a medicina dita popular é um saber naturalista<br />
dependendo muito dessa ligação e utilização do meio<br />
natural. Mas, e como nota Jacques Barrau, o que<br />
importará nesta via de exploração é o significado <strong>da</strong><br />
medicina e <strong>da</strong> sua ligação ao meio ambiente, “c’est<br />
d’appréhender les systèmes d’idées, de notions et<br />
d’attitudes qu’une société entretient a I’égard des faits,<br />
objets et phénomènes de son environnement,<br />
systèmes qui sont aussi codes de comportement et<br />
qui s’expriment <strong>da</strong>ns Ia langue, <strong>da</strong>ns le discours de<br />
cette société”( 9 ), e também nos gestos,<br />
acrescentamos nós...<br />
Na Etnografia <strong>da</strong> Beira não são, curiosamente,<br />
muitas as práticas medicinais referencia<strong>da</strong>s. O<br />
fenómeno doença/cura foi sempre periférico à estrutura<br />
<strong>da</strong> obra e, muitas vezes, enquadrado nos domínios<br />
<strong>da</strong>s crenças e <strong>da</strong>s superstições. Estamos pois