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Aqui - História da Medicina

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conscientes do risco <strong>da</strong> utilização desta fonte. Em<br />

primeiro lugar, por termos presente as palavras de<br />

Roger Chartier para quem “nenhum texto (...) mantém<br />

uma relação transparente com a reali<strong>da</strong>de que<br />

apreende” (10) e, por outro, por sabermos que este<br />

conjunto de práticas foi recolhido pelo autor através<br />

de informadores indirectos e não dos produtores e<br />

divulgadores dos saberes, informações na maior parte<br />

dos casos memoriza<strong>da</strong>s com distantes referentes no<br />

tempo e, por consequência, mediatiza<strong>da</strong>s (11) . Ao longo<br />

dos X tomos <strong>da</strong> Etnografia <strong>da</strong> Beira, as práticas<br />

terapêuticas mais assinala<strong>da</strong>s são as que possuem,<br />

na sua constituição, elementos do mundo vegetal.<br />

Muitas vezes nelas se cruzam elementos do sagrado<br />

cristão (invocação de santos, sinal <strong>da</strong> cruz, por<br />

exemplo) com essa tessitura que envolvia o quotidiano<br />

<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des, traduzindo quase que uma visão<br />

mágico-religiosa do mundo,<br />

numa certa idolatria face a<br />

alguns elementos vegetais.<br />

Serão, no entanto, apenas<br />

objecto <strong>da</strong> nossa curta análise<br />

as práticas que utilizam<br />

elementos de origem animal.<br />

Constituindo um conjunto misto<br />

numa mea<strong>da</strong> de difícil desembaraçamento,<br />

as suas raízes<br />

parecem-nos entroncar num<br />

passado longínquo mas mantendo,<br />

até certo ponto, inalterável<br />

a sua configuração original.<br />

Numa seriação concisa<br />

apresentamos as seguintes e<br />

citamos a partir <strong>da</strong> recolha de J. Lopes Dias: “Enxúrdia<br />

de galinha cura o tresorelho (I<strong>da</strong>nha-a-Nova); sopas<br />

de cobra curam a furunculose (Vale do Lobo -<br />

Penamacor); para curar feri<strong>da</strong>s colocam-se sobre elas<br />

teias de aranha (Vale do Lobo - Penamacor); cura-se<br />

a loucura colocando sobre a cabeça do louco, em<br />

forma de capacete, um cachorro ou cão pequeno,<br />

aberto ao meio, por forma que o sangue lhe corra pelo<br />

rosto (Teixoso - Covilhã); um cozimento de parasitas<br />

<strong>da</strong> cabeça humana cura a icterícia por muito crónica<br />

que seja (Ladoeiro - I<strong>da</strong>nha-a-Nova); em I<strong>da</strong>nha-a-Nova<br />

usam para o mesmo efeito deitar os parasitas vivos<br />

dentro de um ovo bebendo-o em segui<strong>da</strong>; para curar<br />

impingens esfrega-se com um dedo molhado em saliva”.<br />

Outro subconjunto de práticas, a nosso ver o<br />

mais interessante, referenciou Lopes Dias: as que<br />

utilizavam os excrementos e a urina humana para fins<br />

terapêuticos. Em Segura (I<strong>da</strong>nha-a-Nova) “para que<br />

os tumores ou abcessos venham à supuração deve<br />

aplicar-se-lhes um emplastro de excremento humano;<br />

urina nas feri<strong>da</strong>s cura-as (I<strong>da</strong>nha-a-Nova); beber urina<br />

tira a febre (I<strong>da</strong>nha-a-Nova); chá feito com urina de<br />

rapariga virgem, posto à gea<strong>da</strong> e bebido no dia em<br />

que dão as maleitas, cura-as (Benquerença-<br />

-Penamacor); o sarro que se acumula no fundo dos<br />

penicos pouco limpos, colocado em panos sobre a<br />

testa contra as enxaquecas e cefaleias (Ladoeiro -<br />

I<strong>da</strong>nha-a-Nova)”. Inquestionável antigui<strong>da</strong>de possui<br />

qualquer uma destas práticas que se encontram já<br />

referencia<strong>da</strong>s na História Natural de Plínio, ain<strong>da</strong> que<br />

este autor chame a atenção de que se tratam de costumes<br />

bárbaros quanto à sua origem. Por exemplo,<br />

para o citado naturalista, a saliva cura as picaduras<br />

<strong>da</strong>s cobras. Quanto à utilização <strong>da</strong> urina, considera-a<br />

múltipla de acordo com a sua proveniência. A de maior<br />

utilização face às situações é a urina de criança, usa<strong>da</strong><br />

nas queimaduras, como estimulante <strong>da</strong> menstruação,<br />

para sarar as feri<strong>da</strong>s e curar as doenças dos olhos.<br />

Aspecto interessante a referenciar é a tendência para<br />

a existência de uma certa especialização na utilização<br />

<strong>da</strong>s urinas, sejam elas de homem, de mulher, de<br />

criança ou de velho. Assim, a<br />

urina de homem já apodreci<strong>da</strong><br />

sara e acalma as úlceras e as<br />

erupções (12) . Também no Corpus<br />

Hipocraticum a utilização <strong>da</strong><br />

urina evapora<strong>da</strong> é assinala<strong>da</strong>,<br />

principalmente a urina putrefacta<br />

de mulher utiliza<strong>da</strong> em<br />

preparações para favorecer a<br />

concepção, contra as hemorrói<strong>da</strong>s<br />

e a esterili<strong>da</strong>de (13) . Quanto<br />

ao uso dos excrementos sólidos,<br />

a sua utilização na Antigui<strong>da</strong>de<br />

Clássica também<br />

constituiu um facto. Dioscórides<br />

refere o seu uso como componente<br />

na preparação de cataplasmas e unguentos (14) .<br />

Portanto, a conclusão a que se poderá chegar é a de<br />

que, durante a Antigui<strong>da</strong>de, houve to<strong>da</strong> uma<br />

farmacopeia excremencial utiliza<strong>da</strong> ou em medicina<br />

ou em magia como também assinala Plínio.<br />

Vários foram os autores que se debruçaram sobre<br />

a utilização dessas matérias para usos terapêuticos<br />

e dos significados que essas práticas poderão encerrar<br />

ao nível sociológico, antropológico, religioso e histórico.<br />

Salientem-se nesta linha os excelentes trabalhos que<br />

a equipa do Professor Bermejo Barrera, do<br />

Departamento de História Antiga <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Santiago de Compostela, desenvolve na tentativa de<br />

uma interpretação sócio-religiosa destas práticas<br />

medicinais e <strong>da</strong>s suas relações intrínsecas com o<br />

mundo mitológico <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de Clássica (15) . Contudo,<br />

a primeira tentativa interpretativa do fenómeno <strong>da</strong>ta<br />

dos finais do século XIX através dos estudos de um<br />

antropólogo americano, J. G. Bourke. Este autor<br />

atribuiu ao uso dos excrementos e <strong>da</strong> urina um<br />

significado religioso, assumindo a sua utilização um<br />

carácter expiatório. Para Bourke “quanto mais<br />

desagra<strong>da</strong>ble, asqueroso, innatural y repugnante es<br />

un rito, tanto más expiatorio es su carácter” (16) .

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