You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
43<br />
conscientes do risco <strong>da</strong> utilização desta fonte. Em<br />
primeiro lugar, por termos presente as palavras de<br />
Roger Chartier para quem “nenhum texto (...) mantém<br />
uma relação transparente com a reali<strong>da</strong>de que<br />
apreende” (10) e, por outro, por sabermos que este<br />
conjunto de práticas foi recolhido pelo autor através<br />
de informadores indirectos e não dos produtores e<br />
divulgadores dos saberes, informações na maior parte<br />
dos casos memoriza<strong>da</strong>s com distantes referentes no<br />
tempo e, por consequência, mediatiza<strong>da</strong>s (11) . Ao longo<br />
dos X tomos <strong>da</strong> Etnografia <strong>da</strong> Beira, as práticas<br />
terapêuticas mais assinala<strong>da</strong>s são as que possuem,<br />
na sua constituição, elementos do mundo vegetal.<br />
Muitas vezes nelas se cruzam elementos do sagrado<br />
cristão (invocação de santos, sinal <strong>da</strong> cruz, por<br />
exemplo) com essa tessitura que envolvia o quotidiano<br />
<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des, traduzindo quase que uma visão<br />
mágico-religiosa do mundo,<br />
numa certa idolatria face a<br />
alguns elementos vegetais.<br />
Serão, no entanto, apenas<br />
objecto <strong>da</strong> nossa curta análise<br />
as práticas que utilizam<br />
elementos de origem animal.<br />
Constituindo um conjunto misto<br />
numa mea<strong>da</strong> de difícil desembaraçamento,<br />
as suas raízes<br />
parecem-nos entroncar num<br />
passado longínquo mas mantendo,<br />
até certo ponto, inalterável<br />
a sua configuração original.<br />
Numa seriação concisa<br />
apresentamos as seguintes e<br />
citamos a partir <strong>da</strong> recolha de J. Lopes Dias: “Enxúrdia<br />
de galinha cura o tresorelho (I<strong>da</strong>nha-a-Nova); sopas<br />
de cobra curam a furunculose (Vale do Lobo -<br />
Penamacor); para curar feri<strong>da</strong>s colocam-se sobre elas<br />
teias de aranha (Vale do Lobo - Penamacor); cura-se<br />
a loucura colocando sobre a cabeça do louco, em<br />
forma de capacete, um cachorro ou cão pequeno,<br />
aberto ao meio, por forma que o sangue lhe corra pelo<br />
rosto (Teixoso - Covilhã); um cozimento de parasitas<br />
<strong>da</strong> cabeça humana cura a icterícia por muito crónica<br />
que seja (Ladoeiro - I<strong>da</strong>nha-a-Nova); em I<strong>da</strong>nha-a-Nova<br />
usam para o mesmo efeito deitar os parasitas vivos<br />
dentro de um ovo bebendo-o em segui<strong>da</strong>; para curar<br />
impingens esfrega-se com um dedo molhado em saliva”.<br />
Outro subconjunto de práticas, a nosso ver o<br />
mais interessante, referenciou Lopes Dias: as que<br />
utilizavam os excrementos e a urina humana para fins<br />
terapêuticos. Em Segura (I<strong>da</strong>nha-a-Nova) “para que<br />
os tumores ou abcessos venham à supuração deve<br />
aplicar-se-lhes um emplastro de excremento humano;<br />
urina nas feri<strong>da</strong>s cura-as (I<strong>da</strong>nha-a-Nova); beber urina<br />
tira a febre (I<strong>da</strong>nha-a-Nova); chá feito com urina de<br />
rapariga virgem, posto à gea<strong>da</strong> e bebido no dia em<br />
que dão as maleitas, cura-as (Benquerença-<br />
-Penamacor); o sarro que se acumula no fundo dos<br />
penicos pouco limpos, colocado em panos sobre a<br />
testa contra as enxaquecas e cefaleias (Ladoeiro -<br />
I<strong>da</strong>nha-a-Nova)”. Inquestionável antigui<strong>da</strong>de possui<br />
qualquer uma destas práticas que se encontram já<br />
referencia<strong>da</strong>s na História Natural de Plínio, ain<strong>da</strong> que<br />
este autor chame a atenção de que se tratam de costumes<br />
bárbaros quanto à sua origem. Por exemplo,<br />
para o citado naturalista, a saliva cura as picaduras<br />
<strong>da</strong>s cobras. Quanto à utilização <strong>da</strong> urina, considera-a<br />
múltipla de acordo com a sua proveniência. A de maior<br />
utilização face às situações é a urina de criança, usa<strong>da</strong><br />
nas queimaduras, como estimulante <strong>da</strong> menstruação,<br />
para sarar as feri<strong>da</strong>s e curar as doenças dos olhos.<br />
Aspecto interessante a referenciar é a tendência para<br />
a existência de uma certa especialização na utilização<br />
<strong>da</strong>s urinas, sejam elas de homem, de mulher, de<br />
criança ou de velho. Assim, a<br />
urina de homem já apodreci<strong>da</strong><br />
sara e acalma as úlceras e as<br />
erupções (12) . Também no Corpus<br />
Hipocraticum a utilização <strong>da</strong><br />
urina evapora<strong>da</strong> é assinala<strong>da</strong>,<br />
principalmente a urina putrefacta<br />
de mulher utiliza<strong>da</strong> em<br />
preparações para favorecer a<br />
concepção, contra as hemorrói<strong>da</strong>s<br />
e a esterili<strong>da</strong>de (13) . Quanto<br />
ao uso dos excrementos sólidos,<br />
a sua utilização na Antigui<strong>da</strong>de<br />
Clássica também<br />
constituiu um facto. Dioscórides<br />
refere o seu uso como componente<br />
na preparação de cataplasmas e unguentos (14) .<br />
Portanto, a conclusão a que se poderá chegar é a de<br />
que, durante a Antigui<strong>da</strong>de, houve to<strong>da</strong> uma<br />
farmacopeia excremencial utiliza<strong>da</strong> ou em medicina<br />
ou em magia como também assinala Plínio.<br />
Vários foram os autores que se debruçaram sobre<br />
a utilização dessas matérias para usos terapêuticos<br />
e dos significados que essas práticas poderão encerrar<br />
ao nível sociológico, antropológico, religioso e histórico.<br />
Salientem-se nesta linha os excelentes trabalhos que<br />
a equipa do Professor Bermejo Barrera, do<br />
Departamento de História Antiga <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Santiago de Compostela, desenvolve na tentativa de<br />
uma interpretação sócio-religiosa destas práticas<br />
medicinais e <strong>da</strong>s suas relações intrínsecas com o<br />
mundo mitológico <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de Clássica (15) . Contudo,<br />
a primeira tentativa interpretativa do fenómeno <strong>da</strong>ta<br />
dos finais do século XIX através dos estudos de um<br />
antropólogo americano, J. G. Bourke. Este autor<br />
atribuiu ao uso dos excrementos e <strong>da</strong> urina um<br />
significado religioso, assumindo a sua utilização um<br />
carácter expiatório. Para Bourke “quanto mais<br />
desagra<strong>da</strong>ble, asqueroso, innatural y repugnante es<br />
un rito, tanto más expiatorio es su carácter” (16) .