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tinha, a eripsela exulcera<strong>da</strong> e os alfectos cutâneos<br />
untando a parte, miriga as dores <strong>da</strong> gota e mortifica o<br />
cancro, interiormente tomado cura a icterícia” (30) .<br />
Terá então tido esta obra alguma função reprodutora<br />
e até de legitimação na aplicação dessas terapêuticas<br />
excrementórias nas terras do interior beirão Ou serão<br />
elas a perduração <strong>da</strong>s aculturações sucessivas de<br />
estratos de saberes pré-romanos, romanos, dos<br />
sincretismos religiosos medievais ou até mesmo o<br />
eco <strong>da</strong>s informações escritas no Portugal-Médico E<br />
se assim foi, quem é que o terá lido, difundido e<br />
aplicado por esta raia beiroa As lógicas sociais,<br />
económicas e ambientais dessa raia têm vindo a ser<br />
modifica<strong>da</strong>s a um ritmo avassalador nos últimos anos,<br />
tornando prioritária a tarefa de recolha sistemática<br />
destes últimos saberes naturalistas tal como ain<strong>da</strong><br />
se manifestam no viver actual <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des.<br />
Saberes que perduraram através <strong>da</strong>s dores dos<br />
quotidianos raianos e que, para a sua cabal<br />
compreensão, ao longo desta breve análise<br />
relembrámos sempre as palavras de B. Malinowski:<br />
“si l’on veut comprendre um élement culturel, il faut<br />
entre choses, expliquer son rapport direct ou instrumental<br />
à Ia satisfaction des besoins essentiels, qu’ils<br />
soient élémentaires, c’est à dire biologiques, ou derives,<br />
c’est à dire culturels” (31) .<br />
* Licenciado em História. Docente no ISMAG/<br />
ISHT-Universi<strong>da</strong>de Lusófona<br />
Notas<br />
1) J. L. Dias, Etnografia <strong>da</strong> Beira, vol. I, 2ª Ed., Lisboa,<br />
1944; vol. II, 2ª Ed., Lisboa, 1964; vol. III, 2ª Ed., Lisboa,<br />
1955; vol. IV, 2ª Ed., Lisboa, 1971; vol. V, 2ª Ed., Lisboa,<br />
1966; vol. VI, 2ª Ed., Lisboa, 1967; vol. VII, Lisboa, 1948;<br />
vol. VIII, Lisboa, 1953; vol. IX, Lisboa, 1955; vol. X, Lisboa,<br />
1970; vol. XI, Lisboa, 1971. Reedição <strong>da</strong> Câmara Municipal<br />
de I<strong>da</strong>nha-a-Nova, 1991-1992.<br />
2) J. L. Dias, Etnografia <strong>da</strong> Beira, vol. XI, p. 11<br />
3) Veja-se por exemplo a descrição <strong>da</strong> Beira <strong>da</strong> autoria<br />
de L. Chaves, A Beira, Exposição portuguesa em Sevilha,<br />
Lisboa, 1929; J. Pina Cabral, Os Contextos <strong>da</strong><br />
Antropologia, Lisboa, 1991, pp. 25 -37.<br />
4) J. L. Dias, op. cit., p.9<br />
5) O. Ribeiro, “Beira Baixa” in Guia de Portugal, II vol.,<br />
Lisboa, s/d, p. 625.<br />
6) J. Le Goff, O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente<br />
Medieval, Lisboa, 1985, p. 62.<br />
7) J. P. Ferrier, Antéelha geographie ça sert d’abord à<br />
parler du territoire, on le métier des géographes, Aix en<br />
Provence, 1984, p. 21.<br />
8) J. dos Santos, “Savoirs de Ia flore en Cévennes” in<br />
Les savoirs naturalistes populaires, Paris, 1985, p. 66.<br />
9) J. Barrau, “A propos du concept d’etnoscience” in<br />
Les savoirs naturalistes populaires, Paris, 1985, p. 9.<br />
10) R. Chartier, A História Cultural entre práticas e<br />
representações, Lisboa, 1988, pp. 62-63.<br />
11) A. Carril, Etnomedicina. Acercamento a Ia<br />
terapéutica popular, Valladolid, 1991, p. 9.<br />
12) Plinio, N. H., XVIII, 18.<br />
13) C. H., 75 (L162, 18).<br />
14) Dioscorides, De natura medica: II, 81.<br />
15) J. Bermejo Barrera, “La esposa, Ia amante, el<br />
alimento y el excremento” in Mitologia y Mitos de Ia<br />
Hispania Preromana, Madrid, 1982, pp 217-237.<br />
16) J. G. Bourke, Escatalogia y Civilizacion, Madrid,<br />
1976, p. 64.<br />
17) Op. cit., pp. 298-299.<br />
18) R. Joly, Le niveaux de Ia science hipocratique. Contribution<br />
à Ia psycologie de Phistoire des sciences, Paris,<br />
1966, p. 54.<br />
19) G. Bachelard, La formation del espírito científico.<br />
Contribuccion a un psicoanalises del conocimiento<br />
objectivo. Buenos Aires, 1972, pp. 199-214. Ver ain<strong>da</strong> G.<br />
Bachelard, A psicanálise do fogo, Lisboa, 1989, pp. 80-<br />
86.<br />
20) F. Henriques, J. Caninas et alli, “<strong>Medicina</strong> e farmácia<br />
popular dos Cortelhões e Plingacheiros” in Preservação,<br />
9-11, 1990, p.<br />
21) A. Garcia y Bellido, Espana y los Españoles hace<br />
dos mil avios según Ia “geografia” de Strábon, Madrid,<br />
1945, pp. 155-156.<br />
22) Catulle, Poésies, Paris, 1949.<br />
23) J. Bermejo Barrera, “Los excrementos y Ia politica<br />
- una nota a Estrabón: III, 4, 16” in Mitologia y Mitos de Ia<br />
Hispania Preromana, Madrid, 1982, pp 21-42; J. C.<br />
Bermejo Barrera, “El erudito y Ia barbarie” in Mitologia y<br />
Mitos de Ia Hispania Preromana, Madrid, 1986, pp. 13 -<br />
44<br />
24) J. R. Nazaré, Prolegomènes à l’Ethnosociologie de<br />
Ia Musique, Paris, 1984, p. 196.<br />
25) Assinale-se um caso de utilização de excrementos<br />
de vaca para fins curativos. Prática utiliza<strong>da</strong> em Oledo,<br />
povoação que também faz parte do concelho de I<strong>da</strong>nhaa-Nova.<br />
Segue-se o relato tal como nos foi transmitido<br />
pela informadora de uma situação ocorri<strong>da</strong> há cerca de<br />
20 anos. M. R. D. era na altura mãe de uma filha de dois<br />
anos de i<strong>da</strong>de: “Ela estava senta<strong>da</strong> de costas para a<br />
lareira e mal eu voltei costas ela fez balanço com o banco<br />
e caiu de costas para o lume. Imediatamente se levantou<br />
a chorar mas já com as nádegas assa<strong>da</strong>s e com as brasas<br />
agarra<strong>da</strong>s ao rabinho. Como era Domingo e não havia<br />
médico mandei o meu marido à farmácia. Mas como<br />
ain<strong>da</strong> era longe e ela chorava muito uma velhota que<br />
era nossa vizinha apareceu à janela e conforme se<br />
apercebeu do que se passava disse-me: Oh Maria, põe-<br />
-lhe bosta de vaca de cima <strong>da</strong> queimadura, quanto mais<br />
depressa melhor. Então eu fui buscar, envolvi numa fral<strong>da</strong><br />
quente e puz-lhe em cima do rabinho, ela chorou mas