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15 DE JUNHO DE 2008<br />
CAUSA OPERÁRIA<br />
CULTURA 20<br />
Uma revolução artística em 1917 - parte IV<br />
Revolução Russa vista através<br />
das lentes do cinema soviético<br />
Dentre todas as formas artísticas, o cinema surgido na revolução foi aclamado como a expressão típica da Revolução<br />
Russa. Uma arte de grande alcance, verdadeiramente coletiva, internacionalista e revolucionária. Através de seus<br />
geniais diretores, o cinema soviético constituiu um dos mais envolventes relatos da revolução social que modificou<br />
para sempre a sociedade russa<br />
A ofensiva da contrarevolução<br />
A década de 1930 marca o<br />
início de uma nova etapa do cinema<br />
soviético, caracterizada<br />
pela realização de épicos grandiosos<br />
que marcaram época, repletos<br />
de feitos nobres e heróis<br />
idealizados, além do início ao<br />
“culto à personalidade” dos grandes<br />
líderes históricos, da Rússia<br />
czarista ao Estado soviético.<br />
Eram os primeiros anos do realismo<br />
socialista, expressão que<br />
gradualmente foi tomando conta<br />
de todas as artes dentro do<br />
País, até a consolidação definitiva<br />
do estilo, quando oficializado<br />
pela direção burocrática stalinista<br />
em 1932, segundo o decreto<br />
sobre a reestruturação das organizações<br />
artísticas. Esse decreto<br />
transformou o realismo socialista<br />
em uma política de Estado<br />
para as artes, uma tentativa de<br />
condução da criação artística no<br />
País. Na realidade, uma das maiores<br />
camisas de força, ao menos<br />
no plano estatal, que uma<br />
cultura já sofreu, porque não há<br />
e nem nunca houve nada mais<br />
tirânico que o capitalismo sobre<br />
as artes.<br />
Politicamente, o período correspondia<br />
à consolidação do grupo<br />
stalinista dentro do Estado<br />
operário. A crise da burocracia<br />
desembocaria no governo bonapartista<br />
de Stálin. Desde a morte<br />
de Lênin, em 1924, havia se<br />
iniciado no interior do partido<br />
uma luta ferrenha pelo poder.<br />
Seus diversos setores, ao final<br />
se dividiram em dois grandes blocos,<br />
o de Trótski por um lado,<br />
defendendo a continuidade da revolução,<br />
e o de Stálin, que impulsionaria<br />
uma série de derrotas<br />
desastrosas e acabaria por se<br />
tornar a expressão mais acabada<br />
da contra-revolução que havia<br />
se infiltrado no interior do<br />
aparelho do Estado. O Processo<br />
alcançou um de seus pontos altos<br />
em 1927, quando os stalinistas<br />
referendaram no Congresso<br />
do partido, uma sanção contra a<br />
oposição liderada por Leon<br />
Trótski, o líder do Exército Vermelho.<br />
Acusando-a de ser um<br />
“desvio pequeno burguês”, o<br />
grupo foi dissolvido e seu líder<br />
deportado. Após a derrota da<br />
oposição de esquerda, ala proletária<br />
e revolucionária do partido,<br />
foi a vez da ala direita e, finalmente,<br />
da própria facção stalinista<br />
em uma perseguição política<br />
que parecia não ter fim. Desta<br />
situação extremamente crítica<br />
surge não apenas o impropriamente<br />
denominado ‘culto da<br />
personalidade’ de Stálin como a<br />
necessidade da burocracia de<br />
controlar todas as manifestações<br />
de atividade intelectual de maneira<br />
férrea, da política à música.<br />
A política degenerada dos stalinistas,<br />
gradualmente foi se alastrando<br />
como um vírus pelo interior<br />
do país, e seus efeitos caíram,<br />
como não poderia ser diferente,<br />
implacavelmente também<br />
sobre todas as artes, mudando<br />
de maneira definitiva sua direção<br />
a partir dali.<br />
Pelo fato de ser a expressão<br />
artística mais completamente dependente<br />
de um grande financiamento,<br />
e por conseqüência, do<br />
Estado Soviético, devido às suas<br />
características técnicas de indústria<br />
e não de artesanato individual,<br />
o cinema sentiu de maneira<br />
imediata os efeitos dessa<br />
brutal transformação.<br />
O estabelecimento do<br />
pesadelo chamado<br />
realismo socialista<br />
Uma outra faceta da mediocridade<br />
política desses novos líderes<br />
stalinistas, era a sua completa<br />
ignorância também em relação<br />
às artes. Daí sua tentativa<br />
de conduzir seu desenvolvimento<br />
e suas expressões. O processo<br />
acarretou no surgimento de<br />
uma arte oficialista, artificial, que<br />
pregava um otimismo sem limites,<br />
falso e acrítico, além idolatria<br />
da imagem dos líderes políticos,<br />
e particularmente de Stalin.<br />
Essa idolatria não seguia nenhum<br />
critério além o de “garantir<br />
a unidade da nação”. Os ideólogos<br />
do realismo socialista pregavam<br />
também uma única forma<br />
expressiva aceitável: o realismo,<br />
uma caricatura dos gigantescos<br />
pintores e escritores<br />
do século XIX, ignorando completamente<br />
a irreversível evolução<br />
das artes para o modernismo<br />
e não conseguindo chegar<br />
nem mesmo perto da antiga tradição<br />
da cultura russa, da qual<br />
fizeram um pastiche de péssimo<br />
gosto, com as devidas exceções.<br />
Desta feita, todos os experimentalismos<br />
e buscas por novas<br />
formas que dominou o cinema<br />
durante toda a década de 1920,<br />
foram tachados, de uma hora<br />
para outra, de “decadentes”,<br />
“burguêses” e “formalistas”.<br />
Karl Radek, ex-membro da oposição<br />
de esquerda, renegado e<br />
transformado em serviçal do stalinismo,<br />
declarava James Joyce<br />
como manifestação da decadência<br />
capitalista e o mesmo fazia o<br />
abominável Georg Lukacs com<br />
o extraordinário Franz Kafka,<br />
uma dos maiores e mais influentes<br />
escritores da modernidade.<br />
Ao contrário do que muitos<br />
teóricos pretendem mostrar, o<br />
problema do realismo socialista<br />
era o fato de ser uma tentativa<br />
do Estado de limitar e conduzir<br />
o processo de criação artística<br />
de todo um país, sob uma fórmula<br />
já previamente estabelecida,<br />
e não o mero fato de ser “realista”.<br />
A fórmula do realismo,<br />
perfeitamente aceitável em si<br />
mesma, desde que produto de<br />
uma verdadeira sensibilidade artística<br />
e honestidade intelectual<br />
serviu para encobrir a proibição<br />
de qualquer verdadeira criação<br />
através da imposição de um<br />
modelo pret-a-porter para todos<br />
os artistitas. O realismo foi o<br />
ápice da cultura burguesa e produziu<br />
o mais extraordinário período<br />
de criação cultural da história<br />
humana, em particular na<br />
literatura. O “realismo socialista”<br />
jamais poderia ser considerado<br />
realista neste sentido, mas<br />
uma caricatura de realismo. O<br />
realismo foi a manifestação da<br />
maturidade e da autoconfiança<br />
do artista burguês em sua capacidade<br />
de dominar e expressar o<br />
mundo à sua volta, o “realismo<br />
socialista” foi uma idealização das<br />
idéias preconcebidas dos mestres<br />
do regime burocrático que<br />
de socialista nada tinha.<br />
No final das contas, o realismo<br />
socialista era a realização do<br />
sonho de qualquer governante.<br />
A glorificação e a defesa de seu<br />
próprio regime a um extremo<br />
que nem Luís XIV havia chegado.<br />
Segundo a aguda observação<br />
de Trótski, a arte cortesã do<br />
Rei Sol era apenas uma idealização<br />
da monarquia, onde o artista<br />
no entanto acreditava no que estava<br />
fazendo. O realismo socialista<br />
era a transfiguração de um<br />
regime apodrecido feita sob o<br />
cano de uma pistola e, portanto,<br />
totalmente falsa. Desta maneira,<br />
este pseudo realismo surgia<br />
apenas como a forma mais adequada<br />
para esse processo de aulicismo<br />
policial sem precedentes<br />
almejado por Stálin.<br />
O fim dos<br />
vanguardismos<br />
Esta ‘fórmula’ estética elaborada<br />
pelos teóricos stalinistas<br />
adaptou-se de maneira diversa<br />
para cada uma das manifestações<br />
artísticas, desde a literatura até<br />
o design de produtos. Ele definia,<br />
em linhas gerais, os preceitos<br />
que deveriam ser seguidos<br />
pelos artistas. ‘Realista’ na forma<br />
e ‘socialista’ no conteúdo, ou<br />
seja, descrever sobre a realidade<br />
da classe trabalhadora no país<br />
sempre de maneira naturalista, linear,<br />
didática e descritiva. Tal era<br />
a teoria. Na realidade, as obras<br />
do realismo socialista são toscas<br />
idealizações que retratam uma<br />
imagem, um preconceito que a<br />
burocracia governante queria<br />
apresentar de uma classe operária<br />
inexistente. Não eram pessoas<br />
reais, com contradições reais,<br />
mas ídolos e modelos artificiais<br />
que o regime burocrático<br />
pretendia impingir às massas para<br />
ocultar a gigantesca luta que a<br />
classe operária russa travava<br />
contra o atraso econômico, contra<br />
o cerco do imperialismo e<br />
contra a pressão da própria burocracia<br />
detrás de uma fachada<br />
otimista. Os criadores da grande<br />
época do realismo russo de<br />
Turgeniev a Tólsoi passando por<br />
toda a literatura populista e marxista<br />
morreriam de vergonha diante<br />
desse gênero de “realismo”.<br />
Todas as obras que tivessem um<br />
conteúdo crítico - característica<br />
indissociável das verdadeiras<br />
obras do realismo-naturalismo -<br />
que os stalinistas considerassem<br />
nocivo à perpetuação de sua dominação<br />
no aparelho do Estado,<br />
ou que mostrasse uma realidade<br />
que não fosse aquela visão fantasiosa<br />
de fartura e bonança por<br />
eles pretendida eram imediatamente<br />
censuradas e seus realizadores<br />
perseguidos, em uma<br />
gigantesca e espantosa caça às<br />
bruxas.<br />
Os artistas que se recusaram<br />
a modificar suas linhas criativas<br />
foram “afastados”, e muitos deles<br />
perseguidos. Foram caçados<br />
milhares e dezenas de milhares<br />
dos melhores cérebros da pátria<br />
da Revolução de Outubro. Esse<br />
foi o destino de alguns dos principais<br />
criadores do “cinema de<br />
ouro” dos anos 20.<br />
Uma multidão de plumítivos<br />
de aluguel disfarçados de teóricos<br />
da literatura como Georg<br />
Lukacs despejavam veneno contra<br />
os “traidores do socialismo”.<br />
Lev Kuleshov, por exemplo,<br />
o pioneiro das montagens, professor<br />
de Pudovkin e Eisenstein,<br />
perdeu todo o financiamento<br />
para seus filmes, abandonou o<br />
cinema e caiu no mais completo<br />
esquecimento, a ponto de a maioria<br />
de sua obra nunca mais ter<br />
sido encontrada. Até o final de<br />
sua vida ele restringiu suas atividades<br />
a dar aulas no instituto de<br />
cinema em que trabalhava. Dziga<br />
Vertov, o favorito de Lênin,<br />
com seus filmes sem roteiros,<br />
desafiava o pseudo didatismo do<br />
“realismo” stalinista, e acabou<br />
sendo também afastado nos<br />
anos 30 para funções secundárias<br />
em filmes de propaganda de<br />
produtos. O mesmo ocorreu a<br />
outros diretores da linha de frente<br />
do cinema soviético, como Pudovkin,<br />
Kozintsev e Trauberg.<br />
Mesmo Dovzhenko, que apesar<br />
de seguir uma linha expressiva<br />
já vinculada com a tradição<br />
realista, tendo chegado inclusive<br />
a atacar o vanguardismo de<br />
Eisenstein como “excessivamente<br />
intelectual”, acabou acusado<br />
pelo próprio Stalin de “nacionalismo”<br />
ucraniano, e proibido de<br />
trabalhar em seus próprios estúdios<br />
na Ucrânia. O que mostra<br />
que a estética do “realismo” stalinismo<br />
era a menor das preocupação<br />
do “pai dos povos” como<br />
Stálin era chamado pelos seus<br />
áulicos e plumitivos em todas as<br />
áreas da cultura.<br />
A maioria destes diretores teve<br />
suas carreiras praticamente encerradas<br />
devido ao censor ideológico<br />
stalinista, não conseguindo<br />
mais realizar nenhuma obra<br />
relevante, com exceção de Eisenstein.<br />
Mesmo ele chegou a<br />
tentar, como último recurso, trabalhar<br />
em Hollywood, mas constatou<br />
logo a seguir o despreparo<br />
da indústria imperialista em digerir<br />
sua obra. Preferiu, por fim,<br />
ficar em seu País e enfrentar a<br />
burocracia stalinista. Após intensos<br />
conflitos e discussões, acabou<br />
tendo que se adaptar à nova<br />
estética para continuar na ativa.<br />
Acompanhando sua carreira,<br />
pode-se testemunhar suas sucessivas<br />
tentativas de denunciar<br />
o governo contra-revolucionário<br />
de Stálin.<br />
O realismo socialista e<br />
o cinema sonoro<br />
Apesar do estrito campo de<br />
atuação em que os diretores tiveram<br />
de trabalhar, ainda assim<br />
grandes obras puderam ser realizadas.<br />
Ao mesmo tempo em que<br />
pareciam os primeiros filmes<br />
sonorizados, uma grande onda<br />
de produções procurou adaptarse<br />
a esse novo e revolucionário<br />
recurso de comunicação. Em um<br />
país onde quase 90% da população<br />
era analfabeta, o advento<br />
do cinema falado foi recebido<br />
como o verdadeiro e monumental<br />
progresso que realmente é, e<br />
imediatamente estimulado por<br />
toda a indústria. Sempre vanguardistas,<br />
sempre pioneiros Eisenstein,<br />
Pudovkin e Dovzhenko,<br />
entusiasmados, uniram-se em<br />
1928 e redigiram o famoso “Manifesto<br />
do Som” que teve repercussão<br />
internacional em sua época.<br />
Apenas no final de 1927, a<br />
Warner Brothers lançava o primeiro<br />
filme falado, O cantor de<br />
jazz, com Al Jolson no papel principal.<br />
A primeira obra relevante do<br />
cinema falado surgiu, porém,<br />
apenas em 1931. Era “O Caminho<br />
da Vida”, de Nicolai Ekk. O<br />
jovem diretor seguia já naturalmente<br />
os preceitos realistas nos<br />
novos tempos, de maneira que<br />
realizou esse filme sem dificuldades,<br />
com intenções sociais e<br />
didáticas extremamente leves e<br />
vivazes. O filme conta a história<br />
de alguns jovens delinqüentes<br />
que são recolhidos pela Comissão<br />
para a Infância do Comitê<br />
Central Executivo, que começa<br />
a se mobilizar para acabar com<br />
o problema dos jovens abandonados<br />
no País. Os garotos são<br />
inseridos dentro de uma comuna<br />
operária onde exercem trabalhos<br />
e procuram começar uma<br />
vida nova fora da criminalidade.<br />
As vezes, porém o passado ressurge,<br />
com um dos marginais<br />
que procura recuperar a influência<br />
sobre os garotos. O filme<br />
é um retrato da eficiência das<br />
novas políticas públicas colocadas<br />
nas mãos da população e<br />
como ela conseguia resolver de<br />
maneira efetiva seus problemas<br />
sociais. Usando o ‘realismo’<br />
como recurso, Ekk conseguiu<br />
explorá-lo no ele tinha de mais<br />
vigoroso e exuberante.<br />
A retomada do herói<br />
individual<br />
Durante todo o período do<br />
cinema mudo nos anos 20, a<br />
evocação dos momentos históricos<br />
recentes, como a Primeira<br />
Guerra e as revoluções, de 1905<br />
e 1917, eram realizados num<br />
espírito de síntese, com audaciosos<br />
experimentos formais. Na<br />
etapa realista dos anos 30 a coisa<br />
acontecia de maneira diversa.<br />
Em “Okraina”, de 1933, apesar<br />
da existência do personagem<br />
coletivo e do internacionalismo<br />
revolucionário, o diretor Boris<br />
Barnet, consegue dar um tratamento<br />
íntimo e repleto de anotações<br />
psicológicas para seu filme,<br />
que descreve o reflexo dos grandes<br />
acontecimentos da história<br />
russa em um afastado vilarejo<br />
nos confins do País.<br />
Um tratamento similar ocorre<br />
em diversos filmes históricos<br />
do período. Muitos deles conseguem<br />
fazer uma síntese eficiente<br />
entre o personagem coletivo<br />
e a utilização de um herói<br />
central, que seria o foco da expressividade<br />
do realismo socialista<br />
dos anos posteriores. As<br />
principais realizações dessa<br />
transição são filmes como<br />
“Tchapaiev”, de 1934, dos irmãos<br />
Vassiliev; “Os Marinheiros<br />
de Kronstadt”, de 1936, de<br />
E. Dzigan; e “Homem com o<br />
Fuzil”, de 1938, de S. Yutkevitch.<br />
Em todos esses filmes,<br />
chama a atenção o herói bolchevique<br />
que trabalha em conjunto<br />
com outros heróis ‘independentes’,<br />
geralmente operários, camponeses<br />
ou soldados comuns,<br />
que se unem em torno da luta<br />
por seus direitos políticos e acabam<br />
por descobrir a necessidade<br />
de uma rígida disciplina revolucionária.<br />
Este recurso, os filmes realistas<br />
utilizariam até a exaustão,<br />
terminando por substituir completamente<br />
a multidão revolucionária<br />
pelo personagem individualizado<br />
que encarnava não só<br />
o partido bolchevique como<br />
também a própria revolução.<br />
Entre os diversos filmes a utilizarem<br />
esse recurso dramático,<br />
a “Trilogia de Máximo”, dirigido<br />
em parceria por Grigori Kozintsev<br />
e Leonid Trauberg, é um<br />
dos mais bem sucedidos.<br />
Realizada entre 1935 e 1937<br />
a trilogia é composta pelos filmes<br />
“A Juventude de Máximo”,<br />
“A Volta de Máximo” e “O Bairro<br />
de Vyborg”, que narram o<br />
processo de tomada de uma<br />
consciência revolucionária por<br />
Máximo, um jovem de um longínquo<br />
vilarejo russo.<br />
Esta guinada do herói coletivo<br />
para o herói individual expressa<br />
o registro na consciência<br />
dos artistas do refluxo da<br />
classe operária, única verdadeira<br />
força revolucionária, substituída<br />
pela miragem e pela ilusão<br />
do papel dos grandes homens e<br />
grandes líderes.<br />
A era do “culto à<br />
personalidade”<br />
Um traço característico da<br />
era stalinista era o uso indiscriminado<br />
de imagens das lideranças<br />
da burocracia. Juntamente<br />
com isso, uma vez que todo clero<br />
necessita de um santo, vinha<br />
a canonização do grande Lênin,<br />
por sua autoridade incontestável<br />
como líder da revolução,<br />
como ponto culminante da cultura<br />
política e intelectual russa,<br />
figura incomoda da qual o stalinismo<br />
não conseguia se desfazer.<br />
Sua imagem foi incansavelmente<br />
explorada e associada à<br />
imagem de Stálin na tentativa do<br />
infame pigmeu de mostrar-se<br />
como legítimo sucessor do antigo<br />
líder bolchevique no poder.<br />
Essa operação foi acompanhada<br />
também por outra transformação<br />
no formato dos filmes.<br />
Os heróis, que antes eram encarnados<br />
por militantes do partido<br />
que se confundiam com<br />
operários comuns, nesta segunda<br />
etapa passam a ser representados<br />
pelas próprias lideranças<br />
bolcheviques, sobretudo Lênin<br />
e Stalin. Um número impressionante<br />
de filmes nesses moldes<br />
foram realizados em finais dos<br />
anos 30. Uma peculiaridade desses<br />
filmes era o fato de serem<br />
produzidos sempre segundo a<br />
historiografia oficial do momento,<br />
sendo modificados ao longo<br />
dos anos conforme a conveniência<br />
da burocracia. Desta maneira,<br />
foi completamente suprimida<br />
a participação de Trótski,<br />
figura de proa da revolução, sua<br />
imagem sendo substituída, freqüentemente,<br />
pela do próprio<br />
Stálin, de escasso protaganismo.<br />
Nesses moldes é relevante<br />
citar os filmes de M. Romm, o<br />
grande sucesso “Lênin em Outubro”,<br />
e o posterior “Lênin em<br />
1918”.<br />
Esta nova concepção dos heróis<br />
soviéticos teve sua expressão<br />
derradeira nas obras monumentais<br />
de Mark Donskoy e de<br />
Serguei Eisenstein.<br />
Donskoy é hoje lembrado<br />
principalmente pela realização de<br />
sua trilogia épica sobre a vida<br />
de um dos mais populares escritores<br />
da União Soviética:<br />
Máximo Gorki. Sua série de três<br />
filmes sobre a vida do escritor<br />
recebeu o título de “Trilogia de<br />
Gorki”, e foi concebida em apenas<br />
dois anos, entre 1937 e<br />
1938. A descrição da brutal e<br />
comovente vida do escritor foi<br />
dividida entre os filmes “A Infância<br />
de Gorki”, “Ganhando o<br />
meu Pão” e “Minhas Universidades”,<br />
todos baseados nos escritos<br />
auto-biográficos desse<br />
que foi o principal expoente da<br />
transição do realismo literário<br />
para a literatura do século XX<br />
na Rússia.<br />
A contra-revolução nas<br />
telas<br />
Com “Alexandre Nevsky”,<br />
Eisenstein iniciou-se também<br />
neste terreno particularmente<br />
novo para ele. Até então, o autor<br />
de “Outubro” só havia realizado<br />
filmes com personagens<br />
coletivos, propagandistas da revolução<br />
mundial. Fazia já quase<br />
uma década que o cineasta não<br />
conseguia concluir nenhum filme.<br />
Todos eles interditados por<br />
ordens expressas de Stálin, incluindo<br />
seu “Prado de Bejin”,<br />
sob alegação que este não se enquadrava<br />
nos preceitos do realismo<br />
socialista.<br />
Já “Alexandre Nevski”, encomendado<br />
por Stálin em pessoa,<br />
foi acompanhado de perto<br />
por agentes policiais stalinistas,<br />
destacados especialmente para<br />
supervisionar a produção do filme<br />
e evitar “deslizes desnecessários”.<br />
O filme seria utilizado como<br />
uma peça de propaganda antinazista,<br />
visando preparar os ânimos<br />
da população para a guerra<br />
que se armava sob a ameaça<br />
de Hitler.<br />
O filme foi concluído em<br />
1938. O lançamento, entretanto,<br />
demorou ainda cerca de três<br />
anos para acontecer. O motivo<br />
era a política de ziguezague da<br />
burocracia, que suspendeu seu<br />
lançamento ao ser firmado o<br />
pacto Hitler-Stalin que entregava<br />
a Polônia ao monstro nazista.<br />
Mudanças substanciais apareciam<br />
nessa película e correspondiam<br />
às radicais transformações<br />
ocorridas nos rumos da revolução<br />
e o correspondente<br />
amadurecimento da burocracia<br />
soviética.<br />
O filme é de uma impressionante<br />
beleza plástica, e teve a<br />
trilha sonora composta pelo<br />
grande compositor Serguei<br />
Prokofiev. Mas ao contrário do<br />
que se esperaria de um filme do<br />
realismo “proletário” e “socialista”,<br />
ao invés de terem idealizado<br />
uma película antinazista e<br />
proletária, os brilhantes consultores<br />
políticos de Stalin acabaram<br />
por realizar uma peça antialemã<br />
e rasteiramente nacionalista,<br />
de exaltação à Grande<br />
“Mãe” Rússia, ao pior estilo<br />
burguês-feudal. Além destes<br />
componentes, todo o filme é<br />
centrado na figura do “glorioso<br />
capitão” Alexandre Nevsky, herói<br />
nacional das Orígens do estado<br />
autocrático russo. Haveria<br />
personagens melhores a escolher...<br />
Por outro lado, a parte que<br />
dependeu do brilhantismo de Eisenstein<br />
não decepciona de maneira<br />
alguma, já que o diretor<br />
colocou em prática, com grande<br />
êxito, todas suas teorias sobre<br />
a articulação do som no cinema,<br />
em contraponto com a<br />
imagem.<br />
Seu último filme, encomendado<br />
pelo “camarada timoneiro”<br />
é também um brado de revolta.<br />
O grandioso épico “Ivan,<br />
O Terrível”, concebido para ter<br />
três partes.<br />
Após ser ovacionado com o<br />
lançamento da parte um do filme,<br />
o segundo acabou sendo<br />
retido pelos sensores stalinistas,<br />
que obrigaram o diretor a se retratar<br />
pessoalmente perante o<br />
partido. Nessa segunda parte de<br />
seu longa, Eisenstein pintava<br />
Ivan como um facínora, obcecado<br />
pelo poder, megalômano<br />
e paranóico, num paralelo óbvio<br />
com o líder soviético. Até<br />
certo ponto, uma injustiça com<br />
o obcecado Ivan.<br />
Mas a verdadeira cartada final<br />
da megalomania de Stalin ainda<br />
estava por se revelar. Antes<br />
do início da refilmagem da segunda<br />
parte de Ivan, Stalin comunicou<br />
a Eisenstein sua próxima<br />
encomenda oficial. A realização<br />
da epopéia definitiva,<br />
intitulada “Cáucaso, Moscou,<br />
Vitória”, que contaria os miraculosos<br />
feitos políticos do<br />
“grande pai” do povo russo, o<br />
próprio Joseph Stálin.<br />
Pouco tempo depois, antes<br />
de mesmo de retornar ao trabalho,<br />
Eisenstein teve um enfarte<br />
fulminante e morreu.<br />
Era já 1948, um dos períodos<br />
mais penosos de toda a existência<br />
do cinema soviético. Havia<br />
uma luta intensa contra o<br />
chamado “cosmopolitismo”.<br />
Um termo incerto que podia<br />
adquirir diferentes significados,<br />
mas que se referia a tudo o que<br />
a burocracia estatal pudesse<br />
definir como novas diretrizes<br />
para o cinema. Esses enfrentamentos<br />
criaram um clima de<br />
temor e perseguição que desorganizou<br />
por algum tempo toda<br />
a indústria, e só pode se restabelecer<br />
de fato, após a morte<br />
de Stalin, em 1953.