SEÇÃO TEMÁTICAPALOMBINI, A. <strong>de</strong> L. Os estigmas em nós.O PORTADOR: INSÍGNIA DA DIFERENÇASob este título foi apresentado painel sobre o tema da inclusão escolar,com a participação <strong>de</strong> Analice Palombini, Denise Teresinha daRosa Quintão e Clarisse Trombka. A inclusão escolar implica buscar,<strong>para</strong> cada criança, a sua forma própria <strong>de</strong> inclusão, a que lhe permitetomar lugar no mundo como sujeito, o que produz efeitos que ultrapassam oâmbito pedagógico. No que diz respeito aos portadores <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>seducativas especiais, PNEEs, a possibilida<strong>de</strong> da sua singularização esbarrano traço que a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> porta, como insígnia da diferença que vemmarcar o modo <strong>de</strong> constituição dos laços sociais. Os educadores enfrentamaí <strong>uma</strong> situação <strong>para</strong>doxal, diante <strong>de</strong> crianças que reproduzem mo<strong>de</strong>losi<strong>de</strong>ntitários propostos pela globalização e pelos avanços tecnológicos e que,ao mesmo tempo, na sua diferença remetem a esse estranho/familiar querequer, como resposta, não a padronização dos comportamentos, mas <strong>uma</strong>atitu<strong>de</strong> que tem na reflexão ética sobre o h<strong>uma</strong>no o seu fundamento. É naarticulação entre os campos da saú<strong>de</strong> e da educação, entre cultura e subjetivida<strong>de</strong>,entre o espaço social e o mundo psíquico que propomos enfrentaras tensões que esse <strong>para</strong>doxo gera.OS ESTIGMAS EM NÓSAnalice <strong>de</strong> Lima PalombiniNas múltiplas experiências <strong>de</strong> trabalho por que já passei, em instituiçõesdiversas, e naquelas em que hoje me encontro engajada, otema da diferença se faz sempre presente, ainda que em graus variados,representado por crianças, adolescentes e adultos com necessida<strong>de</strong>sespeciais dirigidas à clínica, à escola ou à abrigagem. Mais particularmente,no trânsito entre a clínica e a escola, pu<strong>de</strong> acompanhar, por um lado, aintensa mobilização que produz, na comunida<strong>de</strong> escolar, a presença <strong>de</strong> <strong>uma</strong>criança com um transtorno grave no seu <strong>de</strong>senvolvimento, exigindo, <strong>para</strong>além da assessoria ao professor em sala <strong>de</strong> aula, também um trabalho como coletivo <strong>de</strong> professores, serviços, direção, às vezes com o grupo <strong>de</strong> pais ecom a turma <strong>de</strong> alunos – um trabalho árduo, que, muitas vezes, ressente-seda ausência <strong>de</strong> suporte dos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>para</strong> a sua realização; poroutro lado, enfrentei as limitações <strong>de</strong> um trabalho clínico que, incidindo sobreo processo mesmo <strong>de</strong> constituição psíquica da criança ou buscandoconsolidar e ampliar os seus recursos simbólicos, <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> contar com o<strong>de</strong>sdobramento e sustentação <strong>de</strong>sse trabalho no espaço social da escola eno campo das aprendizagens. Quase sempre a clínica tornava-se o únicolugar <strong>de</strong> circulação social permitido a essas crianças e jovens. A escolamesma, sem um maior suporte técnico e impotente <strong>para</strong> lidar com as dificulda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua inserção, indicava-lhes o espaço terapêutico como aquele quevinha substituir o pedagógico.A prevalência, hoje, <strong>de</strong> propostas por <strong>uma</strong> educação inclusiva, nãoevita o fato <strong>de</strong> que a dissociação entre o campo clínico e o pedagógico oumesmo a relação <strong>de</strong> exclusão estabelecida entre ambos (ou clínica ou escola)continua can<strong>de</strong>nte, tanto mais can<strong>de</strong>nte quanto mais grave o quadro apresentadopelo sujeito em questão. Alijado da escola ou alijado na escola,durante a infância e adolescência, tal sujeito se vê impedido do acesso aessa zona intermediária <strong>de</strong> sociabilização, situada entre a família e o vasto30 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. 98, jan. 2002 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. 98, jan. 200231
SEÇÃO TEMÁTICAPALOMBINI, A. <strong>de</strong> L. Os estigmas em nós.sindrômicos que, nesse momento, passam a ser distinguidos em categoriaspróprias.Em nosso século, a psicanálise, embora tendo origem nessa ciênciamédica positivista, ao instituir a escuta em substituição ao olhar como métodoclínico, transforma a relação ética estabelecida com a loucura, resgatandoa tradição do Renascimento, que a interpreta como modo <strong>de</strong> o sujeitodizer a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo. Mas a exclusão, o internamento, segue sendoa prática corrente no tratamento da doença mental, compulsória e vitalícia.É na década <strong>de</strong> cinqüenta, com a aceleração industrial e o surgimen<strong>todos</strong> primeiros psicofármacos, que tem início <strong>uma</strong> transformação no locus <strong>de</strong>vida daquelas pessoas intituladas <strong>de</strong> doentes mentais, impulsionada pelosmovimentos político-sociais. Segue sendo um <strong>de</strong>safio, porém, a efetiva consolidação<strong>de</strong> práticas substitutivas aos manicômios, capazes <strong>de</strong> oferecerreferências, possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratamento e perspectivas <strong>de</strong> vida aos ditosdoentes mentais, levando em conta o sujeito psíquico aí implicado, mastranspondo o âmbito restrito dos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e lançando-se no espaçoaberto do urbano.O <strong>de</strong>safio é o mesmo quando se toma a questão da diferença inscritaenquanto dano orgânico, como marca que se carrega no corpo, como <strong>de</strong>sempenhoque não alcança o esperado. Pois os processos <strong>de</strong> exclusãoinci<strong>de</strong>m sobre os <strong>de</strong>ficientes da mesma forma que sobre a loucura. Já noséculo XVII, o saber jurídico elabora alg<strong>uma</strong>s categorias <strong>de</strong> <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> mental<strong>de</strong> acordo com a adaptação ou o rendimento social, no interesse <strong>de</strong>assinalar aos seus portadores <strong>uma</strong> situação jurídica, com o intuito <strong>de</strong> salvaguardarbens <strong>de</strong> família. Essas categorias, mais tar<strong>de</strong>, são retomadas pelamedicina.Escreve Maud Mannoni (1983; p.201):Quando o adulto se encontra em face <strong>de</strong> um semelhante que não é àimagem do que ele crê po<strong>de</strong>r esperar, oscila entre <strong>uma</strong> atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> rejeição e<strong>de</strong> carida<strong>de</strong>. O problema não se coloca ao nível das boas intenções, mas aomuito mais obscuro que as sustém. Todo ser h<strong>uma</strong>no que, por seu estado,torna impossíveis certas projeções provoca no outro um mal-estar – malmundo,que, no entanto, constitui <strong>uma</strong> experiência tão fundamental na vida<strong>de</strong> cada criança e <strong>de</strong> seus pais.Se nós tomarmos, porém, a figura do louco como <strong>para</strong>digma da diferençana relação com o outro, veremos, com Michel Foucault (1978), queessa experiência foi exuberante e polimorfa até meados do século XVII, tendo,até essa época, circulado <strong>de</strong> modo livre, fazendo parte do cenário e dalinguagem cotidiana. É certo que a valorização do físico, na Grécia Antiga,levava ao sacrifício dos mutilados do corpo, lançados do alto <strong>de</strong> penhascos,tão logo eram nascidos. É certo também que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a medicina grega, alg<strong>uma</strong>sformas <strong>de</strong> loucura eram tomadas como patologias e submetidas a práticas<strong>de</strong> cura. Mas restava ainda <strong>uma</strong> ampla extensão do campo da loucurafora do domínio médico (Foucault, 1975). Uma extensão cujos contornos evalor vão sofrer variações conforme as épocas, mas on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacarduas vertentes: <strong>uma</strong>, que atravessa a Ida<strong>de</strong> Antiga e Média, é a concepçãoda loucura como manifestação dos <strong>de</strong>uses, como graça ou castigo, <strong>para</strong> obem ou <strong>para</strong> o mal, possessão divina ou <strong>de</strong>moníaca; outra vertente, própriaao renascimento, em que experiência da loucura é tomada ou como expressão<strong>de</strong> forças da natureza, do in<strong>uma</strong>no, revelando a verda<strong>de</strong> e os mistériosdo mundo, ou como o h<strong>uma</strong>no naquilo que é o seu limiar, a razão em seunecessário avesso, <strong>uma</strong> das suas formas, enfim, carregada <strong>de</strong> secreta verda<strong>de</strong>.A situação altera-se radicalmente a partir do século XVII, quando omundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. E é o contexto asilar,então, social e juridicamente <strong>de</strong>terminado, que vem dar nascimento e circunscrevero espaço da clínica, da pesquisa e da produção teórica no campoda psiquiatria e da psicopatologia, num amálgama em que vão confundir-sepráticas médicas e sanções morais. No século XIX, a loucura vê-se incorporadaà noção <strong>de</strong> doença mental, como objeto da ciência positiva, num esforçoclassificatório em que o semelhante é reunido ao semelhante, em que oburburinho e a complexida<strong>de</strong> da vida são evitados, on<strong>de</strong> as variáveis sãocontroladas. O louco, <strong>de</strong>signado como doente mental, vê ser suprimido ovalor <strong>de</strong> sua palavra, sendo-lhe imposto o silêncio dos pacientes (Cunha,apud A Casa, 1991). Igualmente são silenciados os lesionados, <strong>de</strong>ficientes,32 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. 98, jan. 2002 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. 98, jan. 200233