13.07.2015 Views

O mundo pelo buraco da fechadura - Fonoteca Municipal de Lisboa

O mundo pelo buraco da fechadura - Fonoteca Municipal de Lisboa

O mundo pelo buraco da fechadura - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

No lar <strong>de</strong> valter hugo mãe“A FelizI<strong>da</strong><strong>de</strong>”<strong>de</strong>safiouum grupo <strong>de</strong>idosos entreos 60 e os 87anos a recuarà infância:aparecerampirolitos,pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong>carvalhoe vestidos<strong>de</strong> noiva“Entrado”, que se apresenta a partir <strong>de</strong> quarta-feirano Estabelecimento Prisional <strong>de</strong> Custóias, parte <strong>da</strong>s histórias<strong>de</strong> reclusão dos próprios prisioneiros“A Laura morreu, pegaram emmim e puseram-me aqui no larcom dois sacos <strong>de</strong> roupa e umálbum <strong>de</strong> fotografias”. O senhorSilva está em cima <strong>da</strong> mesa dolar <strong>de</strong> idosos. Acaba <strong>de</strong> ficarviúvo e só. “Só na velhice a mesafica repleta <strong>de</strong> ausências, Só navelhice o vento não ressuscita”.As frases são repeti<strong>da</strong>s <strong>pelo</strong>snovos companheiros. “O lar <strong>da</strong>feliz i<strong>da</strong><strong>de</strong>, assim se chama estematadouro”. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> nua e“[Nos ensaios]falámos <strong>de</strong> comoo <strong>mundo</strong> estádiferente e as famíliasmu<strong>da</strong>ram”Anna Stigsgaard,encenadoracrua. Os resi<strong>de</strong>ntes apresentamse.César Santos encarna osenhor inconformado, quequestiona, que abre o álbum <strong>de</strong>memórias, que não quer morrer.É um dos actores <strong>de</strong> “A FelizI<strong>da</strong><strong>de</strong>”, uma <strong>da</strong>s encomen<strong>da</strong>s<strong>de</strong>ste Imaginarius. Foi <strong>de</strong>safiadoa partilhar memórias, a recuarà infância. “Não sabia que ascoisas que tinha escrito podiamter valor”, confessa. Trouxe umpirolito para lembrar a meninicee um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> carvalho que lherecor<strong>da</strong> o cheiro <strong>da</strong>s cascatasque se faziam na rua.Anna Stigsgaard, <strong>da</strong>companhia dinamarquesaOdin Theatre, pediu o nomeemprestado a valter hugo mãe echamou ao lar e ao espectáculo“A Feliz I<strong>da</strong><strong>de</strong>”. O resultadodo trabalho <strong>de</strong> um ano e meioem residência é apresentadonos claustros do Convento dosLóios, dias 27, 28 e 29, com umgrupo <strong>de</strong> idosos dos 60 aos87 anos, crianças e jovens <strong>de</strong>escolas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, famíliasoriun<strong>da</strong>s <strong>de</strong> bairros sociais ealunos <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Hotelaria eTurismo. Ao longo do processo, aencenadora <strong>de</strong>pressa percebeuque os mais velhos não selimitavam a falar <strong>da</strong> infância.“Falavam <strong>de</strong> como o <strong>mundo</strong> estádiferente, <strong>de</strong> como as maçãsficam a apodrecer nas árvorese ninguém as come, <strong>de</strong> como aestrutura <strong>da</strong>s famílias mudou”,conta. Re<strong>de</strong>finiu o trabalho.“É necessário pensar como searmazenam as pessoas <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s europeias. Seráque alguém pára para pensarse esta é a melhor solução?”,questiona. O espectáculo <strong>de</strong>dicauma parte às memórias, àsbrinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> crianças, aosvestidos <strong>de</strong> noiva. No final, háum baile no convento, com opúblico a ser convi<strong>da</strong>do para<strong>da</strong>nçar e comer uma sopaservi<strong>da</strong> por 25 empregados <strong>de</strong>mesa vestidos a preceito. S.D.O.para o Teatro e Artes <strong>de</strong> Rua, que agoraassume a direcção artística do festival,e o estabelecimento prisionalestão juntos neste projecto. Não houve“casting”, apareceu quem quis, ea história acabou por ser escolhi<strong>da</strong><strong>pelo</strong>s próprios reclusos. Quiseramolhar para <strong>de</strong>ntro. Mastigar a culpa eo perdão.Tudo começa à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> prisão.Quatro reclusos segre<strong>da</strong>m ao ouvidodo público as frases que se murmuramquando alguém entra na prisão.“Vais sair <strong>da</strong>qui um homem”. “Estáscá porquê?”. “Quem és?”. “Precisas<strong>de</strong> ligar para alguém?”. “Estás porminha conta”. “Bem-vindo”. A ban<strong>da</strong><strong>da</strong> prisão entra em cena para interpretaruma versão mais pesa<strong>da</strong> <strong>de</strong>António Variações, aquela do corpoque paga quando a cabeça não temjuízo. Os reclusos divertem-se, atéque as sentenças são pronuncia<strong>da</strong>s.“Con<strong>de</strong>nado a três anos e quatro mesesnúmero 874”.Os actores, <strong>de</strong> fato <strong>de</strong> trabalho, t-shirt branca justa ao corpo, calçasazuis escuras, sucumbem ao peso <strong>da</strong>scon<strong>de</strong>nações. Caminham resistentespara a revista. Encostam-se à pare<strong>de</strong>,braços no ar, pernas afasta<strong>da</strong>s. O feirante,o homem que representa osistema, entra com o megafone namão, a balbuciar coisas que não seenten<strong>de</strong>m. Usa a caneta para escrevero número nas mãos dos presos. Maisà frente, escuta-se o som do acor<strong>de</strong>ão,ouve-se um tango. Dois grupos<strong>de</strong> reclusos enfrentam-se, cruzamolhares <strong>de</strong> ameaça e agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Momentos tensos, <strong>da</strong> escolha do grupo,do clã <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> prisão. Entra-seno corredor principal, e há pequenasperformances a acontecer. Um homemdobra camisas na lavan<strong>da</strong>ria erecita Shakespeare: “Como fe<strong>de</strong> omeu crime, o seu cheiro chega até aocéu”. Na biblioteca, constroem-sepássaros <strong>de</strong> papel (e mil pássaros sãonecessários para pedir a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>).Na capela só po<strong>de</strong>m entrar os pe-maginariusRua <strong>de</strong> Santa Maria <strong>da</strong> Feira, haverá presoss árvores e ciganos a apo<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong> Shakespeare.s Oliveira (texto) e Paulo Pimenta (fotos)Ípsilon • Sexta-feira 21 Maio 2010 • 13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!