Alkantara FestivalO coraçãodo <strong>mundo</strong>bate aquiCapaVamos tratar-nos <strong>pelo</strong> primeiro nomeporque está é uma relação <strong>de</strong> iguais.Maria tem a voz cristalina e coloca<strong>da</strong>como só as locutoras <strong>de</strong> rádio conseguemter, mesmo aos 77 anos. Nestaemissão <strong>da</strong> Rádio Moxico, grava<strong>da</strong> noCentro Social <strong>da</strong> Sé, em <strong>Lisboa</strong>, Mariaapresentará discos pedidos e leituras<strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> sol<strong>da</strong>dos às suas madrinhas<strong>de</strong> guerra. Gonçalo pe<strong>de</strong>-lhepara ler como se estivesse “lá, na rádioMoxico – afinal, a Maria é a locutorafavorita dos nossos ouvintes”. O“jingle” é o genérico <strong>da</strong> série “Bonanza”,e, quando a música sobe no ar,Natalina, 80 anos, e Otília, 77, estalamos <strong>de</strong>dos em silêncio e encolhem osombros ao ritmo do trote dos cavalos<strong>da</strong> família Cartwright. Por momentos,apesar <strong>de</strong> estamos num edifício nocentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> com Tejo em fundo,também estamos no Oeste Americano,e no Moxico, uma <strong>da</strong>s mais remotasregiões <strong>de</strong> Angola, a Norte <strong>da</strong>sterras do fim do <strong>mundo</strong>.Apesar <strong>de</strong> não haver sobrenomes,as i<strong>da</strong><strong>de</strong>s são relevantes. Gonçalo temi<strong>da</strong><strong>de</strong> (33) para ser neto <strong>de</strong> Maria. Assimcomo as Anas, a Susana, a Raquel,o Fre<strong>de</strong>rico, o Pedro, a Íris e o Romeutêm i<strong>da</strong><strong>de</strong> para ser netos <strong>de</strong> Otília, Natalina,Joaquim, Germano, Helena,Eugénia e Emília. No entanto, a relaçãoque aqui, no Centro Social <strong>da</strong> Sé,se estabeleceu entre estes jovens (artistas,criadores) e estes idosos (reformados<strong>de</strong> um qualquer passado) vaipara além <strong>da</strong>s i<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os <strong>de</strong>fineme <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s que os separam. Juntos,trabalham (alguns <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Julho <strong>de</strong>2009) para criar “Centro <strong>de</strong> Dia”, umdos espectáculos <strong>da</strong> terceira ediçãodo Alkantara Festival, que começahoje em <strong>Lisboa</strong> (este ano com umaextensão ao Porto) e se prolonga até9 <strong>de</strong> Junho.Gonçalo explica, sem querer estragara surpresa <strong>da</strong> estreia, que “Centro<strong>de</strong> Dia” é um projecto <strong>da</strong> Dona Vlassova,“senhora com mais <strong>de</strong> 50 anos,que gosta <strong>de</strong> se divertir em festas, e<strong>de</strong> estar com amigos <strong>de</strong> várias i<strong>da</strong><strong>de</strong>s”.Vlassova convidou este grupo<strong>de</strong> artistas para trabalhar “num projectoque envolvesse uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>”,continua Gonçalo. À parti<strong>da</strong>,este po<strong>de</strong>ria parecer um espectáculosobre a terceira i<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma vez queboa parte do elenco é constituí<strong>da</strong> <strong>pelo</strong>sidosos acima mencionados – e outrosque se lhes queiram juntar. Mas,diz Gonçalo, “é também um espectáculosobre uma instituição <strong>de</strong> acolhimento,sobre o Portugal dos últimos40 anos”: “Um espectáculo sobre nóspróprios, que chegámos aqui e nos<strong>de</strong>parámos com aquilo que se costumadizer que é o processo artísticonormal <strong>de</strong> um documentarista, ouque trabalha perto do documental”.Um olhar documental sobre as pessoasreais é, admite Thomas Walgrave,director do festival, uma <strong>da</strong>s características<strong>da</strong> criação contemporânea, e<strong>da</strong>s artes performativas, em particular.“Há uma tendência mais para areali<strong>da</strong><strong>de</strong> do que para a ficção.” Masé também uma <strong>da</strong>s singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s doAlkantara. Muitos <strong>de</strong>stes espectáculosmostram-nos que as pessoas reais têmalgo <strong>de</strong> especial. Contam-nos históriasque ain<strong>da</strong> não ouvimos. Falam línguasque não enten<strong>de</strong>mos. E esperam <strong>de</strong>nós, audiência, o <strong>de</strong>sconforto próprio<strong>de</strong> quem acabou <strong>de</strong> levar um soco <strong>de</strong>crua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (Walgrave irá explicarRadio MuezzinDe Stefan Kaegi. Pelos Rimini Protokoll. Encenação<strong>de</strong> Stefan Kaegi<strong>Lisboa</strong>. São Luiz Teatro <strong>Municipal</strong>. R. António Maria Cardoso, 38.De 21/05 a 22/05. 6ª e Sáb. às 21h. Tel.: 213257650. 5€ a 12€.Porto. Teatro Carlos Alberto. R. Oliveiras, 43. De 26/05 a 27/05.4ª e 5ª às 21h30. Tel.: 223401905. 5€ a 15€.Prosseguindo uma linha próxima do teatro documental,esta pequena peça assina<strong>da</strong> por um dos elementos docolectivo suíço Rimini Protokoll, Stefan Kaegi, explora oimpacto do progresso na vi<strong>da</strong> dos “muezzin”,responsáveis pelas orações transmiti<strong>da</strong>s <strong>pelo</strong>saltifalantes <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s muçulmanas. A suasubstituição por gravações e a uniformização <strong>da</strong>mensagem, contrariando uma prática <strong>de</strong> déca<strong>da</strong>s,<strong>de</strong>gra<strong>da</strong> o grau <strong>de</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fiéis com as suasmesquitas. Kaegi, num gesto <strong>de</strong> humil<strong>da</strong><strong>de</strong> que não<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser fascínio oci<strong>de</strong>ntal, coloca em cena quatrohomens e quatro visões <strong>de</strong> um <strong>mundo</strong> pleno <strong>de</strong> regras.Peça exploratória e sensível, impressiona pela clareza,pela sugestão <strong>de</strong> pistas <strong>de</strong> reflexão e <strong>pelo</strong> modo comocria pontes entre a presença <strong>da</strong> fé e a sua resistência, ecapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>da</strong>ptação, à vi<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rna. TiagoBartolomeu Costaem breve on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> a beleza <strong>de</strong> tudoisto). Estes espectáculos “trazem-nosuma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que normalmente nãovemos e que não faz parte <strong>da</strong>s notícias,<strong>da</strong> visão quadra<strong>da</strong> do <strong>mundo</strong> àsoito <strong>da</strong> noite, que é, no fundo, a nossaporção <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do dia: estas pessoasnão chegam lá.”A programação <strong>de</strong>ste ano tem tudopara fazer justiça ao slogan “<strong>mundo</strong>sem palco”, que é a assinatura do festival.Tem “muezzin” do Cairo (“RadioMuezzin”), idosos <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong>dia na Sé lisboeta (“Centro <strong>de</strong> Dia”),imigrantes chineses em Amester-Na terceira edição do Alkantara, que hoje começa em Ldo palco. Do Cairo a Buenos Aires, dos imigrantes cdia <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, o festival conta-nos histórias que aUm soco <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, até 9 d6 • Sexta-feira 21 Maio 2010 • Ípsilon
Em “Radio Muezzin”, StefanKaegi assume <strong>pelo</strong> menos cincoposições sobre o Islão: asposições dos seus cincoprotagonistas, homens do Cairo<strong>Lisboa</strong> e no Porto, as pessoas reais são a matéria-primachineses em Amesterdão aos idosos num centro <strong>de</strong>ain<strong>da</strong> não ouvimos e fala línguas que não enten<strong>de</strong>mos.<strong>de</strong> Junho. Raquel RibeiroÍpsilon • Sexta-feira 21 Maio 2010 • 7