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Setembro <strong>2015</strong> Língua Lusitano de Zurique 23 Acordo Ortográfico de 1990: o regresso das falácias convenientes FRANCISCO MIGUEL VALADA (*) Os próprios poderes públicos que estão na génese do AO90 demonstram a falácia da “ortografia comum”. …é confundir a arca do dilúvio com uma pipa apocalíptica GNR, O Paciente (Psicopátria, 1986) Em debate na TVI moderado por Fátima Lopes – e com António Chagas Baptista a atacar de forma muito competente o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) –, João Malaca Casteleiro apresentou três “razões essenciais” para justificar a pertinência do instrumento em apreço: razão histórica, razão linguística e razão política. São razões facilmente rebatidas em meia dúzia de linhas: do ponto de vista histórico, a demanda do Preste João ou andar aos gambozinos (citando J. M. Casteleiro: “conseguir chegar a uma ortografia comum”) nunca significou que o reino do Preste ou os gambozinos existissem e, do ponto de vista político, está por provar o benefício para a língua portuguesa da criação em Portugal da palavra ‘perspetiva’ (sic), substituta da ‘perspectiva’ mantida no Brasil. J. M. Casteleiro considera que agora existe uma “ortografia comum”. Em Outubro do ano passado, introduzi no conversor Lince do ILTEC os programas políticos dos três candidatos à presidência do Brasil e obtive, entre outros, os seguintes resultados: “aspecto convertido para aspeto”; “concepção convertido para conceção”; “confecções convertido para confeções”; “excepcionais convertido para excecionais”; “facções convertido para fações”; “infecciosas convertido para infeciosas”; “percepção convertido para perceção”; “perspectiva convertido para perspetiva”; “recepção convertido para receção”; “receptiva convertido para recetiva”; “receptividade convertido para recetividade”; “receptor convertido para recetor”; “respectivamente convertido para respetivamente”; “respectivas convertido para respetivas”; “ruptura convertido para rutura”. Ou seja, se quiser escrever ‘aspecto’, ‘concepção’, ‘confecções’, ‘excepcionais’, ‘facções’, ‘infecciosas’, ‘percepção’, ‘perspectiva’, ‘recepção’, ‘receptiva’, ‘receptividade’, ‘receptor’, ‘respectivamente’ ou ‘ruptura’, o AO90 não me permite tais veleidades, porque sou falante e escrevente de português europeu, mas um falante e escrevente de português do Brasil pode continuar a fazê-lo. Um dos resultados tangíveis da “ortografia comum” anunciada por J. M. Casteleiro encontra-se patente em dois textos publicados recentemente e com inegável importância política. No prefácio do livro Roteiros IX, Cavaco Silva escreve “perspetiva de ligação”, “aspetos essenciais” e “respetivos líderes políticos”. Contudo, na Mensagem ao Congresso Nacional (o documento que inaugura oficialmente o ano legislativo no Brasil), podemos ler “perspectiva de redução de custos”, “diversos aspectos da previdência complementar” e “respectivos sistemas estaduais de cultura”. Efectivamente, os próprios poderes públicos que estão na génese do AO90 demonstram a falácia da “ortografia comum”. Interpelado por Chagas Baptista acerca da incongruência Egito (sic)/ egípcio, J. M. Casteleiro retorquiu com um “já nós tínhamos antes, por exemplo (…), cativo sem pê, captor e captura com pê, apocalítico [sic] sem pê, apocalipse com pê”. Apocalíptico sem pê? Apocalítico (sic)? Não, não tínhamos. Como é sabido, pelo menos desde a epígrafe deste artigo, apocalítico (sic) não é um “tínhamos antes”, é um claro “temos agora, mas dispensamos”. Quanto ao ‘cativo’/’captor’ e ‘captura’ (como ‘assunção’ e ‘assumptivo’; ‘assunto’ e ‘assumpto’, ‘dicionário’ e ‘dicção’; ‘vitória’ e ‘victrice’), no texto de 1945, estas grafias são consagradas, remetendo-se para a divergência “nas condições em que entraram e se fixaram no português”. Por seu turno, a Nota Explicativa do AO90 diz que a “justificação da grafia com base na pronúncia é tão nobre como aquela razão”. Não é. Aquilo que a NE do AO90 refere como “a pronúncia” não é critério de espécie alguma (quando muito, seria “a pronunciação”). Além disso, é sabido há muitos anos que as ortografias de base alfabética não pretendem captar o nível fonético da língua: aquilo que se pretende é a criação de uma abstracção útil e geral. Caso J. M. Casteleiro esteja interessado nas referências, poderei facultá-las. (*) Francisco Miguel Valada nasceu no Porto e vive actualmente em Bruxelas. É intérprete de conferência.