Marzia Bruno A ITALIANA CUJA PAIXÃO PELA LUSOFONIA LEVOU AO TARRAFAL Marzia Bruno fez a licenciatura em Escultura na Academia de Belas Artes de Florença, mas trocou a cidade de Botticelli, Leonardo da Vinci e Michelangelo (vivia entre a Galleria degli Uffizi e a Galleria dell’Accademia) pela instituição onde se formaram Soares dos Reis, Júlio Resende, Nadir Afonso, entre outros… Desta paixão pelo país e pela língua de Camões nasce um doutoramento em História da Arte Portuguesa, sobre identidade lusófona, na FL<strong>UP</strong>. Juntou-lhe um conceito itinerante e criou um projeto de curadoria com exposições que passaram por Aveiro, Porto e Cidade Velha, em Cabo Verde. Pelo caminho entrou no Campo do Tarrafal e saiu de lá com um “Lampejo de liberdade”, projeto que lhe valeu um prémio internacional. “A M Í L C A R.” É sonoridade que lhe causa alguma estranheza. Movimentos de boca para os quais a língua de Dante não a preparou. Mas habituou-se. Afinal, é o nome do companheiro que conheceu em Portugal e já lá vão mais de dez anos. Também foi nome que se entremeou nas histórias que ia ouvindo em Cabo Verde, de chinelo de dedo, a caminho da praia do Tarrafal. “Sempre gostei do Tarrafal. Da praia, das cores, das luzes. Passava muitas vezes pelo Campo. O pai do Amílcar, meu companheiro, foi lá prisioneiro”. Quem o diz é a investigadora e curadora italiana Marzia Bruno, que, de saia feita de capulana (pano tradicionalmente usado pelas mulheres moçambicanas), viaja entre Florença, Porto, Aveiro e Cidade Velha. Modelo seu, entregue às mãos de uma costureira cabo-verdiana. A memória das histórias prevalece até hoje, como aquela em que a avó Angelina (avó do namorado) foi ter com Amílcar Cabral ao barco atracado no porto de Dakar (Senegal, colónia francesa na altura), vindo da Guiné Conacri, e lhe deu roupas para que ele, disfarçado de mulher, pudesse circular e desenvolver os seus esforços revolucionários sem dar nas vistas. De resto, o nome que foi dado ao companheiro deve-se a esta proximidade com aquele que foi um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). A última vez que enfrentou o Campo que dizem ser de “morte lenta” foi no Natal de 2015. “É árido. A boca seca quando se está lá dentro. Fiz diversas fotos. Eu, o Amílcar e o irmão. E lá estavam as fotos do pai deles. Que ainda está vivo. Fui dar uma volta e começaram a surgir as ideias”. Criada pelo Estado Novo, a Colónia Penal do Tarrafal, no lugar de Chão Bom, na ilha de Santiago (Cabo Verde), recebeu os primeiros presos políticos portugueses em outubro de 1936 – ano em que rebentou a Guerra Civil em Espanha e a Alemanha realizou, em Berlim, os Jogos Olímpicos de verão. O prisioneiro mais jovem tinha 17 anos. Edmundo Pedro esteve dez anos à espera de julgamento e, no final, foi condenado a 22 meses de prisão. O Campo fechou em 1954 para reabrir, em 1961, como Campo de Trabalho de Chão Bom. Até 1974 funcionou como penitenciária para militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Por lá passaram mais de 340 portugueses e 230 africanos. Da má alimentação aos trabalhos forçados, do paludismo aos espancamentos, além das semanas passadas na “frigideira” (caixa retangular de cimento com placa de betão no teto e porta de ferro), nas contas do jornalista cabo-verdiano José Vicente Lopes ali morreram 37 pessoas. Trinta e dois eram portugueses. “O espaço é arrepiante e é, ainda, uma ferida aberta”, reconhece Marzia Bruno. Foi depois da última visita ao Campo do Tarrafal que nasceu “A Glimmer of Freedom”, nome do projeto que venceu o apexart International Franchise Program 2016-17. A apexart é uma associação artística norte-americana sem fins lucrativos que visa dar a curadores independentes e artistas a oportunidade de proporem e produzirem uma exposição a acontecer em qualquer lugar do mundo. Entre 423 candidaturas enviadas por 53 países, foi o seu projeto para o Campo do Tarrafal que arrecadou o primeiro prémio. Através da música, dança, pintura, artes performativas e vídeo mapping, vários artistas locais vão trabalhar questões como o património, a história e as vivências do local. O “Lampejo de Liberdade” vai envolver escolas, com quem Marzia Bruno irá desenvolver atividades educativas, como também antigos prisioneiros, com quem irá realizar entrevistais e palestras. O espaço já foi cedido pelo Instituto do Património da Cultura de Cabo Verde. Todas as instalações vão ser produzidas com recurso a materiais locais. mundus Texto Anabela Santos Fotos Egídio Santos 38 <strong>Campus</strong> <strong>UP</strong> 0.indd 38 06/01/17 16:02
39 campus 000 <strong>Campus</strong> <strong>UP</strong> 0.indd 39 06/01/17 16:02