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distanciamentos, pelos quais aspectos da subjetivação dos pretos-velhos se mantiveram, por<br />
meio da bricolagem e releituras. Essa condição é específica da religiosida<strong>de</strong> afro-brasileira.<br />
De fato, as religiões africanas em si mesmas não têm nessas figuras como elemento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>voção e culto. De fato, no que tange à África subsaariana, diferentemente da influência<br />
islâmica e da cultura egípcia antiga, as religiões tribais tem nos orixás, sejam familiares ou<br />
tribais, suas referências mítico-religiosas, relacionadas às forças da natureza, seus ritos e<br />
xamanismo peculiares, além <strong>de</strong> uma constituição mítica seguindo sua própria lógica e<br />
padrões.<br />
Na tradição popular católica, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>screver um preto-velho conforme os seguintes<br />
traços: sentado num tronco embaixo <strong>de</strong> alguma árvore, vestido com roupas simples, talvez<br />
brancas, fumando seu cachimbo ou fumo <strong>de</strong> rolo. Sua pele muito negra, “negro preto”. Seu<br />
nome? João, José, Joaquim, Cipriano, etc., cansado da lida na roça, contador <strong>de</strong> histórias,<br />
prepara chás, ervas e outros benzimentos para ajudar curar alguém que procura sua ajuda. A<br />
voz rouca, com um linguajar brejeiro, coluna curvada, ritmo lento e portador <strong>de</strong> uma<br />
sabedoria que não prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> livros e estudos. Comumente chamado <strong>de</strong> pai ou vovô, tem<br />
um caráter resignado, benevolente, astuto, conciliador e conselheiro. É um homem típico <strong>de</strong><br />
norte a sul do país, escravo resignado em sua condição (SANTOS, 2007).<br />
Até adquirir essa conotação religiosa, a socieda<strong>de</strong> brasileira, nos afirma Santos (2007)<br />
tratava a cor da pele em várias superposições classificatórias, <strong>de</strong>ntre elas os mais “pretos”<br />
eram tidos como pessoas <strong>de</strong> má reputação, má vida, <strong>de</strong> conotações muito negativas ratificadas<br />
pela cultura judaico-cristã que opunha o branco a tudo o que é bom e o preto a tudo que é<br />
mau.<br />
Nessa oposição, o folclore popular o absorveu dando sempre um caráter <strong>de</strong>preciativo e<br />
estereotipado do “negro preto”. Fenômeno relacionado ao permanente branqueamento que a<br />
socieda<strong>de</strong> faz como consequência do etnocentrismo e aceitação social. Nesse sentido, “a<br />
superstição da cor preta, a que também se ligam as imagens do Preto Velho, é revestida <strong>de</strong> um<br />
forte sentido religioso que fun<strong>de</strong> o negro ao <strong>de</strong>mônio e à malda<strong>de</strong>, e a cor branca à beleza e à<br />
bonda<strong>de</strong>” (SANTOS, 2007, p. 164).<br />
Somente mais tar<strong>de</strong>, a “alma” <strong>de</strong>sses pretos é “branqueada” surgindo, por exemplo, o<br />
mito <strong>de</strong> Pai João, na sua passivida<strong>de</strong> frente à escravização, afetivida<strong>de</strong> e respeito aos valores<br />
culturais do branco, em consonância com o sistema colonial (SANTOS, 2007). Ramos 5<br />
(1954) apud Santos (2007, p. 165) nos dá uma breve <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>ssa simbologia enquanto<br />
mistura <strong>de</strong> várias personagens como “o griot das selvas africanas, guardador e transmissor da<br />
tradição, o velho escravo conhecedor das crônicas <strong>de</strong> família, o bardo, o músico cantador <strong>de</strong><br />
melopeias nostálgicas”, <strong>de</strong>ntre outros.<br />
5<br />
RAMOS, Arthur. O Folclore Negro do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed Carioca, 1954.