Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
opinião<br />
Nastco/iStock<br />
o problema é o valet<br />
Flávio Waiteman<br />
Era uma vez, num país muito distante,<br />
um restaurante diferente. Nele você não<br />
pagava o prato que comia. Nem o vinho que<br />
bebia. Pagava apenas o estacionamento. O<br />
valet.<br />
E, até por falta <strong>de</strong> opção, esse restaurante<br />
fez muito sucesso. Apesar <strong>de</strong> esquisito, o<br />
restaurante não cobrava a comida, apenas o<br />
valet. Aquilo se espalhou por todo o mercado<br />
<strong>de</strong> alimentação daquele longínquo país.<br />
Com o tempo, outros restaurantes seguiram<br />
o mesmo mo<strong>de</strong>lo e, então, logo <strong>de</strong>pois,<br />
só era possível jantar em um restaurante se<br />
pu<strong>de</strong>sse pagar o valet.<br />
Alguns até criaram uma lei para validar<br />
isso. Mesmo que você chegasse a pé ao restaurante,<br />
era necessário pagar o<br />
valet, se quisesse comer. Para os<br />
cozinheiros, esse sistema era estranho.<br />
Eles perceberam que a<br />
qualida<strong>de</strong> da comida quase não<br />
importava, pois todos os restaurantes<br />
só cobravam o valet. Por<br />
outro lado, os cozinheiros eram<br />
mestres em fazer um prato só <strong>de</strong><br />
carne, um só <strong>de</strong> massa e apenas<br />
uma sobremesa. No máximo<br />
uma entradinha.<br />
“ApesAr <strong>de</strong><br />
esquisito, o<br />
restAurAnte<br />
não cobrAvA<br />
A comidA,<br />
ApenAs o<br />
vAlet”<br />
Mas o tempo passou e chegaram novas<br />
tecnologias, novas formas <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r comida.<br />
Alguns restaurantes abriram com<br />
tapas, sem valet. Outros só serviam sanduíches.<br />
E outros apenas comida vegetariana.<br />
Mas essa novida<strong>de</strong> toda guardava um<br />
segredo: todos eles sonhavam em ter um<br />
valet, pois, na verda<strong>de</strong>, ele é quem trazia<br />
muito dinheiro. Muito mais do que ven<strong>de</strong>r<br />
um bom prato. Isso causou uma tremenda<br />
confusão.<br />
Os restaurantes dos valets passaram<br />
também a servir tapas, saladas e, a cada semana,<br />
inventavam algo novo, mas só pensando<br />
no dinheiro do valet. Por isso, o que<br />
os clientes dos restaurantes queriam pouco<br />
importava. Estava lá a importância do valet<br />
a reger a indústria gastronômica do país.<br />
Chegou-se à bizarrice, <strong>de</strong>vido à extrema<br />
competição entre os restaurantes, em<br />
dar <strong>de</strong>scontos nos valets. Devolviam aos<br />
clientes que iam ao restaurante uma parte<br />
do valor do valet. Não é preciso dizer que a<br />
qualida<strong>de</strong> da comida piorou muito. E ainda,<br />
se fosse sempre ao mesmo restaurante,<br />
<strong>de</strong>volvia ainda mais, numa progressão <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sconto que trouxe incerteza à indústria<br />
da alimentação.<br />
Os clientes <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> confiar nos restaurantes.<br />
Isso abriu espaço para todo tipo<br />
<strong>de</strong> aventureiro. Os agricultores começaram<br />
a ven<strong>de</strong>r pratos, os contabilistas dos restaurantes<br />
começaram a ven<strong>de</strong>r pratos. Os<br />
advogados dos clientes começaram a ven<strong>de</strong>r<br />
pratos e até mesmo alguns valets<br />
vendiam umas quentinhas <strong>de</strong><br />
vez em quando.<br />
Isso tirou o movimento dos restaurantes,<br />
porém eles continuavam<br />
a <strong>de</strong>sejar o valet. E todos os<br />
outros aventureiros também. Era o<br />
valet que pagava as contas dos restaurantes<br />
que já haviam sido vendidos<br />
para gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s. Mas nem<br />
tudo estava bem nessa história. Ao<br />
final, os chefs que se <strong>de</strong>dicavam à<br />
culinária se perguntavam: por que não fazer<br />
um restaurante que venda pratos bem<br />
feitos, com ingredientes frescos, e a pessoa<br />
que estacione on<strong>de</strong> quiser?<br />
Eles acharam uma boa i<strong>de</strong>ia. Aboliram<br />
o valet. Não chamaram os advogados e<br />
contabilistas. Fizeram uma agenda dos<br />
melhores produtores <strong>de</strong> ingredientes. Fizeram<br />
também algo impensado naquele<br />
país. Uma placa. Apenas uma placa: “Aqui<br />
cobra-se o prato que você consumir”. E<br />
passaram, então, a fazer naquele mercado<br />
<strong>de</strong> alimentação uma coisa impensável e<br />
completamente inovadora. Alguns diziam<br />
que era pura loucura um restaurante fazer<br />
culinária.<br />
Flávio Waiteman é publicitário<br />
flaviowaiteman@mac.com<br />
jornal propmark - <strong>13</strong> <strong>de</strong> <strong>fevereiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2017</strong> 35