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STORYTELLER<br />
Gilaxia/iStock<br />
Vinhos e chutes<br />
Quando saio com amigos, alguns,<br />
para impressionar, pe<strong>de</strong>m vinhos que<br />
significam meio mês <strong>de</strong> salário-mínimo<br />
Lula Vieira<br />
Durante as inúmeras festas <strong>de</strong> fim <strong>de</strong><br />
ano, mais uma vez tive <strong>de</strong> fingir que<br />
entendo alguma coisa sobre vinhos. E, para<br />
minha <strong>de</strong>sgraça, entrou na moda a cerveja<br />
artesanal, assunto cuja minha ignorância é<br />
verda<strong>de</strong>iramente abissal. Entre um chope<br />
vagabundo <strong>de</strong> pé sujo e uma cerveja feita<br />
por um ex-operador do mercado financeiro<br />
que mistura água, malte e lúpulo mais<br />
especiarias vindas do Oriente Médio, meu<br />
cansado paladar teima em não saber exatamente<br />
a diferença entre um e outro. Mas<br />
voltemos à enologia. Confesso que sou totalmente<br />
incapaz <strong>de</strong> reconhecer as diferenças<br />
entre os vinhos <strong>de</strong> preço médio dos<br />
absurdamente caros. Claro que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
passar uma vida bebendo vinho, consigo<br />
perceber a diferença entre um vinho ver<strong>de</strong><br />
e um Barolo. Eventualmente, antes <strong>de</strong><br />
começar a beber, posso até mesmo distinguir<br />
um Malbec <strong>de</strong> um Camernere. Claro<br />
que também consigo reconhecer, antes da<br />
azia, a diferença entre uma zurrapa e um<br />
vinho <strong>de</strong> categoria mediana, produzido por<br />
uma vinícula <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Mas não<br />
passo muito disso. Não chego a afirmar que<br />
todas as pessoas que <strong>de</strong>itam falação sobre<br />
as sutis referências olfato-gustativas entre<br />
um produto e outro estão chutando. Longe<br />
<strong>de</strong> mim. Sou um crédulo <strong>de</strong> nascença e não<br />
duvido que existam papilas educadas capazes<br />
<strong>de</strong> perceber um fugidio traço <strong>de</strong> sela<br />
velha com pitadas <strong>de</strong> amoras orvalhadas<br />
num único gole <strong>de</strong> vinho.<br />
Não só acredito como tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
aplaudir <strong>de</strong> pé, como na ópera. Entre os talentos<br />
que invejo, não existe outro. Seria<br />
eu um homem extremamente feliz se numa<br />
<strong>de</strong>gustação pu<strong>de</strong>sse extrair <strong>de</strong> uma taça<br />
tantas sensações. O melhor exemplo <strong>de</strong><br />
orgasmo múltiplo para mim é exatamente<br />
esse: fazer <strong>de</strong> uma coisa boa, uma coisa infinitamente<br />
boa. Pois bem, a BBC acaba <strong>de</strong><br />
divulgar uma pesquisa realizada durante<br />
o Festival <strong>de</strong> Ciência <strong>de</strong> Edimburgo, pelos<br />
pesquisadores da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hertfordshire,<br />
que prova, com números indiscutíveis,<br />
que a maioria das pessoas tem esta<br />
mesma limitação sensorial. Eles fizeram<br />
um teste com 578 pessoas apreciadoras <strong>de</strong><br />
vinho. Pediram para que elas separassem<br />
os vinhos que experimentavam num teste<br />
cego entre produtos baratos e caros. Eram<br />
consi<strong>de</strong>rados baratos os vinhos com preço<br />
abaixo <strong>de</strong> 5 libras (R$ 13) e caros entre 10<br />
e 30 libras (R$ 26 e R$ 78). Ou seja: garrafas<br />
que num supermercado são vendidas a<br />
R$ 20 (os baratos) e entre R$ 50 e R$ 100<br />
(os caros). Por consequência, algo em torno<br />
<strong>de</strong> R$ 60 na categoria barato e <strong>de</strong> R$<br />
100 a R$ 300 num restaurante médio. Claro<br />
que entre duas opções, as pessoas têm<br />
50% <strong>de</strong> chance <strong>de</strong> errar e 50% <strong>de</strong> acertar e<br />
isso foi levado em conta. Vai daí que a absoluta<br />
maioria das pessoas não conseguiu<br />
distinguir as diferenças dos vinhos por esse<br />
critério. Neguinho precisava <strong>de</strong> rótulo,<br />
garrafa e ambiente para saber a diferença<br />
<strong>de</strong> preço entre os vinhos que tomava.<br />
O psicólogo Richard Wiseman, que conduziu<br />
o estudo, disse que no momento<br />
<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s econômicas que estamos<br />
vivendo (ele se referia à Europa), ter consciência<br />
da enorme influência que fatores<br />
externos tem sobre a apreciação <strong>de</strong> um<br />
vinho po<strong>de</strong> ser importante. Fico muito<br />
feliz em saber disso. Quando saio com<br />
amigos, alguns, para impressionar, pe<strong>de</strong>m<br />
vinhos que significam meio mês <strong>de</strong><br />
salário-mínimo. Fico constrangido em<br />
sugerir baixar a bola, e acabo tendo <strong>de</strong><br />
engolir os olhares <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo <strong>de</strong> minha<br />
mulher (que, aliás, ganha mais do que eu)<br />
pela minha fraqueza. Nos últimos tempos<br />
<strong>de</strong>senvolvi uma técnica. Quando saio<br />
com algum perdulário <strong>de</strong>sse tipo, tomo<br />
a iniciativa. Peço a carta <strong>de</strong> vinho, passo<br />
uma eternida<strong>de</strong> estudando, chamo o<br />
maître e aponto para um vinho <strong>de</strong> preço<br />
intermediário. E sentencio: “este é um<br />
Malbec que está fazendo o maior sucesso,<br />
pois traz toda a característica da uva, mas<br />
seu tempo <strong>de</strong> permanência na ma<strong>de</strong>ira<br />
lhe empresta uma consistência raríssima,<br />
principalmente num vinho jovem. É bem<br />
verda<strong>de</strong> que esta safra foi boa na região<br />
inteira, mas esses caras da Finca Guason<br />
Del Retiro acertaram em tudo!” Um dia me<br />
pegam, mas não vou fazer isso com quem<br />
realmente conhece. No dia que jantar com<br />
Robert Paker não pretendo abrir a boca para<br />
falar <strong>de</strong> vinhos.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />
Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />
radialista, escritor, editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
20 <strong>15</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark