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edição de 15 de janeiro de 2018

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STORYTELLER<br />

Gilaxia/iStock<br />

Vinhos e chutes<br />

Quando saio com amigos, alguns,<br />

para impressionar, pe<strong>de</strong>m vinhos que<br />

significam meio mês <strong>de</strong> salário-mínimo<br />

Lula Vieira<br />

Durante as inúmeras festas <strong>de</strong> fim <strong>de</strong><br />

ano, mais uma vez tive <strong>de</strong> fingir que<br />

entendo alguma coisa sobre vinhos. E, para<br />

minha <strong>de</strong>sgraça, entrou na moda a cerveja<br />

artesanal, assunto cuja minha ignorância é<br />

verda<strong>de</strong>iramente abissal. Entre um chope<br />

vagabundo <strong>de</strong> pé sujo e uma cerveja feita<br />

por um ex-operador do mercado financeiro<br />

que mistura água, malte e lúpulo mais<br />

especiarias vindas do Oriente Médio, meu<br />

cansado paladar teima em não saber exatamente<br />

a diferença entre um e outro. Mas<br />

voltemos à enologia. Confesso que sou totalmente<br />

incapaz <strong>de</strong> reconhecer as diferenças<br />

entre os vinhos <strong>de</strong> preço médio dos<br />

absurdamente caros. Claro que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

passar uma vida bebendo vinho, consigo<br />

perceber a diferença entre um vinho ver<strong>de</strong><br />

e um Barolo. Eventualmente, antes <strong>de</strong><br />

começar a beber, posso até mesmo distinguir<br />

um Malbec <strong>de</strong> um Camernere. Claro<br />

que também consigo reconhecer, antes da<br />

azia, a diferença entre uma zurrapa e um<br />

vinho <strong>de</strong> categoria mediana, produzido por<br />

uma vinícula <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Mas não<br />

passo muito disso. Não chego a afirmar que<br />

todas as pessoas que <strong>de</strong>itam falação sobre<br />

as sutis referências olfato-gustativas entre<br />

um produto e outro estão chutando. Longe<br />

<strong>de</strong> mim. Sou um crédulo <strong>de</strong> nascença e não<br />

duvido que existam papilas educadas capazes<br />

<strong>de</strong> perceber um fugidio traço <strong>de</strong> sela<br />

velha com pitadas <strong>de</strong> amoras orvalhadas<br />

num único gole <strong>de</strong> vinho.<br />

Não só acredito como tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

aplaudir <strong>de</strong> pé, como na ópera. Entre os talentos<br />

que invejo, não existe outro. Seria<br />

eu um homem extremamente feliz se numa<br />

<strong>de</strong>gustação pu<strong>de</strong>sse extrair <strong>de</strong> uma taça<br />

tantas sensações. O melhor exemplo <strong>de</strong><br />

orgasmo múltiplo para mim é exatamente<br />

esse: fazer <strong>de</strong> uma coisa boa, uma coisa infinitamente<br />

boa. Pois bem, a BBC acaba <strong>de</strong><br />

divulgar uma pesquisa realizada durante<br />

o Festival <strong>de</strong> Ciência <strong>de</strong> Edimburgo, pelos<br />

pesquisadores da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hertfordshire,<br />

que prova, com números indiscutíveis,<br />

que a maioria das pessoas tem esta<br />

mesma limitação sensorial. Eles fizeram<br />

um teste com 578 pessoas apreciadoras <strong>de</strong><br />

vinho. Pediram para que elas separassem<br />

os vinhos que experimentavam num teste<br />

cego entre produtos baratos e caros. Eram<br />

consi<strong>de</strong>rados baratos os vinhos com preço<br />

abaixo <strong>de</strong> 5 libras (R$ 13) e caros entre 10<br />

e 30 libras (R$ 26 e R$ 78). Ou seja: garrafas<br />

que num supermercado são vendidas a<br />

R$ 20 (os baratos) e entre R$ 50 e R$ 100<br />

(os caros). Por consequência, algo em torno<br />

<strong>de</strong> R$ 60 na categoria barato e <strong>de</strong> R$<br />

100 a R$ 300 num restaurante médio. Claro<br />

que entre duas opções, as pessoas têm<br />

50% <strong>de</strong> chance <strong>de</strong> errar e 50% <strong>de</strong> acertar e<br />

isso foi levado em conta. Vai daí que a absoluta<br />

maioria das pessoas não conseguiu<br />

distinguir as diferenças dos vinhos por esse<br />

critério. Neguinho precisava <strong>de</strong> rótulo,<br />

garrafa e ambiente para saber a diferença<br />

<strong>de</strong> preço entre os vinhos que tomava.<br />

O psicólogo Richard Wiseman, que conduziu<br />

o estudo, disse que no momento<br />

<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s econômicas que estamos<br />

vivendo (ele se referia à Europa), ter consciência<br />

da enorme influência que fatores<br />

externos tem sobre a apreciação <strong>de</strong> um<br />

vinho po<strong>de</strong> ser importante. Fico muito<br />

feliz em saber disso. Quando saio com<br />

amigos, alguns, para impressionar, pe<strong>de</strong>m<br />

vinhos que significam meio mês <strong>de</strong><br />

salário-mínimo. Fico constrangido em<br />

sugerir baixar a bola, e acabo tendo <strong>de</strong><br />

engolir os olhares <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo <strong>de</strong> minha<br />

mulher (que, aliás, ganha mais do que eu)<br />

pela minha fraqueza. Nos últimos tempos<br />

<strong>de</strong>senvolvi uma técnica. Quando saio<br />

com algum perdulário <strong>de</strong>sse tipo, tomo<br />

a iniciativa. Peço a carta <strong>de</strong> vinho, passo<br />

uma eternida<strong>de</strong> estudando, chamo o<br />

maître e aponto para um vinho <strong>de</strong> preço<br />

intermediário. E sentencio: “este é um<br />

Malbec que está fazendo o maior sucesso,<br />

pois traz toda a característica da uva, mas<br />

seu tempo <strong>de</strong> permanência na ma<strong>de</strong>ira<br />

lhe empresta uma consistência raríssima,<br />

principalmente num vinho jovem. É bem<br />

verda<strong>de</strong> que esta safra foi boa na região<br />

inteira, mas esses caras da Finca Guason<br />

Del Retiro acertaram em tudo!” Um dia me<br />

pegam, mas não vou fazer isso com quem<br />

realmente conhece. No dia que jantar com<br />

Robert Paker não pretendo abrir a boca para<br />

falar <strong>de</strong> vinhos.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />

Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />

radialista, escritor, editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

20 <strong>15</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark

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