STORYTELLER imantsu/iStock Como estás, viejo? Ele era um argentino engraçadíssimo, um doido completo, tremendo bom caráter LuLa Vieira Deu-me uma imensa sauda<strong>de</strong> do meu ex- -dupla na Lintas, o Fernando Gerardó. Ele era um argentino engraçadíssimo, um doido completo, tremendo bom caráter e algumas vezes completamente mal-humorado e teimoso, como todo bom portenho. Já beirando os setenta, andava <strong>de</strong> moto, praticava esportes radicais e tentava namorar qualquer ser humano que se encaixasse na categoria sexo feminino. Nessa hora apelava para os golpes mais baixos, como <strong>de</strong>monstrar <strong>de</strong>slavado amor à natureza, aos animais, gostar <strong>de</strong> música romântica, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o feminismo radical, discutir tendências da moda, achar o machismo abjeto ou qualquer outra atitu<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse facilitar o caminho em direção ao coração das incautas. Pelo amor <strong>de</strong> Deus, não o consi<strong>de</strong>rem um machista logo <strong>de</strong> saída. Eram outros tempos. O Fernando era um feminista radical. Mas um conquistador <strong>de</strong>votado. Contraditório? Não. Fernando Gerardó. Outro amor que ele tinha era o Rio <strong>de</strong> Janeiro. Conhecia o Rio e seus recantos muito mais do que qualquer historiador nativo, além <strong>de</strong> frequentar botequins perdidos pela Zona Norte, restaurantes típicos <strong>de</strong> subúrbio e praias distantes. Um dos dias mais felizes <strong>de</strong> sua vida foi receber o título <strong>de</strong> Cidadão Carioca, já bem velhinho e às vésperas da morte, numa noite comovente on<strong>de</strong>, com voz trêmula e mal <strong>de</strong> Parkinson, conseguiu relembrar <strong>de</strong> muitas aventuras <strong>de</strong> sua vida intensa, inclusive algumas bobagens que fizemos juntos quando eu era um garoto <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> 20 anos e ele já um senhor, muito mais disposto e atlético do que eu. Uma das suas aventuras mais engraçadas foi quando ele resolveu testar uma geringonça ainda <strong>de</strong>sconhecida por aqui, um pára-quedas que, puxado por uma lancha, erguia-se a muitos metros <strong>de</strong> altura e virava um reboque alado. Deu para enten<strong>de</strong>r? Uma asa-<strong>de</strong>lta puxada por uma corda. Coisa <strong>de</strong> maluco. Exatamente o que o Fernando gostava. O problema é que ele resolveu testar o engenho na Lagoa Rodrigo <strong>de</strong> Freitas, sem o auxílio <strong>de</strong> alguém que já tivesse praticado o esporte. Pediu para um amigo que pilotasse a lancha, colocou a trapisonga às costas e mandou ver. A lancha ganhou velocida<strong>de</strong> e, subitamente, Fernando se viu voando a uns 30 metros <strong>de</strong> altura. Segundo ele, a Lagoa parecia um pires <strong>de</strong> água, on<strong>de</strong> um pontinho minúsculo era a lancha que o rebocava. O encanto levou uns poucos instantes, pois o Fernando, quando viu a lancha ir em direção às margens da Lagoa, intuiu a imensa cagada. Ela po<strong>de</strong>ria dar a volta, mas Fernando iria continuar a trajetória até a tensão mudar para o outro sentido. Foi exatamente o que aconteceu. O amigo piloto da lancha virou a embarcação junto à margem e o Fernando seguiu em frente. Ultrapassou a avenida que margeia a Lagoa e entrou pela janela <strong>de</strong> um apartamento do terceiro andar <strong>de</strong> um prédio, arrebentando vidros, esquadrias <strong>de</strong> alumínio e a mesa <strong>de</strong> almoço da família que compartilhava uma alegre refeição <strong>de</strong> sábado à tar<strong>de</strong>. Instaurou-se o caos. Entre cacos <strong>de</strong> vidros, carne assada, maionese, cordas e garrafas <strong>de</strong> vinho saiu um argentino muito magro e barbudo, meio ensanguentado que, com curvaturas humil<strong>de</strong>s, dizia: “perdón, perdón señora, perdón señor”. Tudo já seria uma enorme <strong>de</strong> uma confusão, se o animal do Fernando não tivesse visto que <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma toalha <strong>de</strong> mesa estava uma mocinha <strong>de</strong> seus 20 anos, <strong>de</strong> camisetinha justa, toda molhadinha <strong>de</strong> molho <strong>de</strong> salada, olhar assustado. Ele, galantemente, oferece-lhe a mão para levantar e não per<strong>de</strong> o ritmo: “mira, mas que niña guapa!” O dono da casa achou que já era <strong>de</strong>mais. Entrar pela janela, <strong>de</strong>struir a sala, arruinar o almoço, vá lá. Mas cantar a filha na cara <strong>de</strong> pau já era <strong>de</strong>mais. Quase <strong>de</strong>volveu o Fernando pelo mesmo caminho que ele tinha entrado. Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor lulavieira.luvi@gmail.com 24 <strong>12</strong> <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark
Novas coNtas, agêNcias, prêmios e teNdêNcias do mercado Fique por <strong>de</strong>ntro. Assine o PROPMARK impresso e digital. Ligue: 11 2065-0738 • E- mail: assinatura@editorareferencia.com.br • www.propmark.com.br