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STORYTELLER<br />
Dylan <strong>de</strong> Jonge/Unsplash<br />
Picadinho<br />
Fui a pé <strong>de</strong> Ipanema até Cosme Velho,<br />
com o livro que eu fatalmente ganharia,<br />
amaldiçoando Ziraldo, o Menino Maluquinho<br />
LuLa Vieira<br />
e certa forma, a ausência <strong>de</strong> emoção<br />
“D<strong>de</strong> Vossa Majesta<strong>de</strong> é uma bênção.<br />
Ninguém precisa <strong>de</strong> histeria num chefe<br />
<strong>de</strong> Estado”. Harold Wilson para a Rainha<br />
Elizabeth II, que lamentava não conseguir<br />
chorar em público.<br />
***<br />
Era um sábado na hora do almoço. Encontrei-me<br />
com Nelsinho Batista, na época<br />
diretor da Rádio Jornal do Brasil. Após<br />
os abraços e comentários sobre o tempo,<br />
ele me convidou para almoçar. Respondi<br />
que não tinha tempo, pois minha mulher<br />
havia pedido que eu fosse até uma loja <strong>de</strong><br />
móveis para comprar um banco daqueles<br />
que se colocam aos pés da cama. Nelsinho<br />
respon<strong>de</strong>u: eu tenho um lindo, dou para<br />
você, esquece isso e vamos almoçar. Claro<br />
que achei um absurdo total, mas a vida é<br />
assim. Fomos almoçar. Enquanto isso chegava,<br />
sem que eu soubesse, um banco <strong>de</strong><br />
veludo cinza em casa, provi<strong>de</strong>nciado pelo<br />
Nelsinho. No meio da tar<strong>de</strong> minha mulher<br />
telefonou. Eu já estava inventando uma<br />
<strong>de</strong>sculpa, quando ela elogiou minha eficiência.<br />
Tinha adorado o banco e a rapi<strong>de</strong>z.<br />
Aproveitei e man<strong>de</strong>i vir mais uma garrafa.<br />
Depois mais uma. Quase que naquela noite<br />
tive <strong>de</strong> dormir no banco <strong>de</strong> veludo cinza.<br />
***<br />
Houve uma reunião do Clube <strong>de</strong> Criação<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro na cobertura <strong>de</strong> um edifício<br />
com uma livraria no térreo. Dispensei<br />
o motorista da agência e com ele minha<br />
pasta, com a carteira <strong>de</strong> dinheiro e os cartões<br />
<strong>de</strong> crédito. Separei uma graninha para<br />
o táxi e fiquei nos trabalhos <strong>de</strong> salvação da<br />
publicida<strong>de</strong> pátria, o que incluía dar um<br />
trato em uma garrafa <strong>de</strong> uísque, como <strong>de</strong><br />
praxe na época. E foi com algumas doses na<br />
cabeça que <strong>de</strong>sci do elevador e saí por engano<br />
na livraria on<strong>de</strong> Ziraldo, primo <strong>de</strong> minha<br />
mulher, estava autografando o Menino<br />
Maluquinho. Ziraldo me saudou com entusiasmo:<br />
“Que bom que você veio!”. Covar<strong>de</strong><br />
que sou, além <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> porre, garanti que<br />
jamais <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> estar presente. Gastei o<br />
dinheiro que tinha comprando o livro e ganhei<br />
um magnífico autógrafo com um textão,<br />
para meus filhos. E fui a pé <strong>de</strong> Ipanema<br />
até Cosme Velho, com o livro que eu fatalmente<br />
ganharia, amaldiçoando Ziraldo, o<br />
Menino Maluquinho, as noites <strong>de</strong> autógrafo<br />
em geral, o álcool e o Clube <strong>de</strong> Criação do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro em particular.<br />
***<br />
Nossa agência, a V&S atendia a conta da<br />
Rádio Jornal do Brasil. O gran<strong>de</strong> jornal popular<br />
na época era o O Dia, que vendia mais<br />
que O Globo e fazia uma concorrência bastante<br />
aguerrida na área <strong>de</strong> classificados com<br />
o JB. Vai daí que, numa concorrência muito<br />
disputada, ganhamos a conta <strong>de</strong> O Dia, que<br />
(sauda<strong>de</strong>!) significava um gran<strong>de</strong> faturamento.<br />
Sergio do Rego Monteiro, diretorzão<br />
do Grupo JB, ao saber disso me chamou para<br />
uma reunião, tirou a nossa conta, pediu<br />
meu crachá <strong>de</strong> volta e, dramaticamente, o<br />
fez em pedacinhos. Quando consegui acalmá-lo,<br />
expliquei que eu tinha a conta da rádio<br />
e não do jornal e era uma injustiça eu<br />
não po<strong>de</strong>r aten<strong>de</strong>r O Dia e A Rádio Jornal do<br />
Brasil, uma vez que não eram concorrentes.<br />
Sergio achou que – vá lá – eu tinha alguma<br />
razão e resolveu <strong>de</strong>sfazer a or<strong>de</strong>m. E eu pedi<br />
um novo crachá. Minutos <strong>de</strong>pois estávamos<br />
em reunião e entrou um funcionário da segurança<br />
perguntando qual seria a data <strong>de</strong><br />
valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu novo documento. Sérgio<br />
respon<strong>de</strong>u com toda a serieda<strong>de</strong>: “Escreva<br />
aí – até a próxima cagada...”<br />
***<br />
Na inauguração <strong>de</strong> uma das empresas<br />
do Grupo Ibope, o velho Montenegro me<br />
encomendou o discurso para a solenida<strong>de</strong><br />
em São Paulo. Segundo sua orientação, preparei<br />
três laudas e ao final escrevi: “não se<br />
esqueça <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer”. Eu queria lembrá-lo<br />
que ele <strong>de</strong>veria saudar as personalida<strong>de</strong>s<br />
presentes. Mas o recado ficou assim curtinho.<br />
Montenegro era um gênio, mas não<br />
gostava <strong>de</strong> fazer discursos. Leu comportadamente<br />
o texto e encerrou, conforme eu<br />
tinha sugerido: “Obrigado, Lula!”<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
24 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark