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edição de 2 de dezembro de 2019

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STORYTELLER<br />

Dylan <strong>de</strong> Jonge/Unsplash<br />

Picadinho<br />

Fui a pé <strong>de</strong> Ipanema até Cosme Velho,<br />

com o livro que eu fatalmente ganharia,<br />

amaldiçoando Ziraldo, o Menino Maluquinho<br />

LuLa Vieira<br />

e certa forma, a ausência <strong>de</strong> emoção<br />

“D<strong>de</strong> Vossa Majesta<strong>de</strong> é uma bênção.<br />

Ninguém precisa <strong>de</strong> histeria num chefe<br />

<strong>de</strong> Estado”. Harold Wilson para a Rainha<br />

Elizabeth II, que lamentava não conseguir<br />

chorar em público.<br />

***<br />

Era um sábado na hora do almoço. Encontrei-me<br />

com Nelsinho Batista, na época<br />

diretor da Rádio Jornal do Brasil. Após<br />

os abraços e comentários sobre o tempo,<br />

ele me convidou para almoçar. Respondi<br />

que não tinha tempo, pois minha mulher<br />

havia pedido que eu fosse até uma loja <strong>de</strong><br />

móveis para comprar um banco daqueles<br />

que se colocam aos pés da cama. Nelsinho<br />

respon<strong>de</strong>u: eu tenho um lindo, dou para<br />

você, esquece isso e vamos almoçar. Claro<br />

que achei um absurdo total, mas a vida é<br />

assim. Fomos almoçar. Enquanto isso chegava,<br />

sem que eu soubesse, um banco <strong>de</strong><br />

veludo cinza em casa, provi<strong>de</strong>nciado pelo<br />

Nelsinho. No meio da tar<strong>de</strong> minha mulher<br />

telefonou. Eu já estava inventando uma<br />

<strong>de</strong>sculpa, quando ela elogiou minha eficiência.<br />

Tinha adorado o banco e a rapi<strong>de</strong>z.<br />

Aproveitei e man<strong>de</strong>i vir mais uma garrafa.<br />

Depois mais uma. Quase que naquela noite<br />

tive <strong>de</strong> dormir no banco <strong>de</strong> veludo cinza.<br />

***<br />

Houve uma reunião do Clube <strong>de</strong> Criação<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro na cobertura <strong>de</strong> um edifício<br />

com uma livraria no térreo. Dispensei<br />

o motorista da agência e com ele minha<br />

pasta, com a carteira <strong>de</strong> dinheiro e os cartões<br />

<strong>de</strong> crédito. Separei uma graninha para<br />

o táxi e fiquei nos trabalhos <strong>de</strong> salvação da<br />

publicida<strong>de</strong> pátria, o que incluía dar um<br />

trato em uma garrafa <strong>de</strong> uísque, como <strong>de</strong><br />

praxe na época. E foi com algumas doses na<br />

cabeça que <strong>de</strong>sci do elevador e saí por engano<br />

na livraria on<strong>de</strong> Ziraldo, primo <strong>de</strong> minha<br />

mulher, estava autografando o Menino<br />

Maluquinho. Ziraldo me saudou com entusiasmo:<br />

“Que bom que você veio!”. Covar<strong>de</strong><br />

que sou, além <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> porre, garanti que<br />

jamais <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> estar presente. Gastei o<br />

dinheiro que tinha comprando o livro e ganhei<br />

um magnífico autógrafo com um textão,<br />

para meus filhos. E fui a pé <strong>de</strong> Ipanema<br />

até Cosme Velho, com o livro que eu fatalmente<br />

ganharia, amaldiçoando Ziraldo, o<br />

Menino Maluquinho, as noites <strong>de</strong> autógrafo<br />

em geral, o álcool e o Clube <strong>de</strong> Criação do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro em particular.<br />

***<br />

Nossa agência, a V&S atendia a conta da<br />

Rádio Jornal do Brasil. O gran<strong>de</strong> jornal popular<br />

na época era o O Dia, que vendia mais<br />

que O Globo e fazia uma concorrência bastante<br />

aguerrida na área <strong>de</strong> classificados com<br />

o JB. Vai daí que, numa concorrência muito<br />

disputada, ganhamos a conta <strong>de</strong> O Dia, que<br />

(sauda<strong>de</strong>!) significava um gran<strong>de</strong> faturamento.<br />

Sergio do Rego Monteiro, diretorzão<br />

do Grupo JB, ao saber disso me chamou para<br />

uma reunião, tirou a nossa conta, pediu<br />

meu crachá <strong>de</strong> volta e, dramaticamente, o<br />

fez em pedacinhos. Quando consegui acalmá-lo,<br />

expliquei que eu tinha a conta da rádio<br />

e não do jornal e era uma injustiça eu<br />

não po<strong>de</strong>r aten<strong>de</strong>r O Dia e A Rádio Jornal do<br />

Brasil, uma vez que não eram concorrentes.<br />

Sergio achou que – vá lá – eu tinha alguma<br />

razão e resolveu <strong>de</strong>sfazer a or<strong>de</strong>m. E eu pedi<br />

um novo crachá. Minutos <strong>de</strong>pois estávamos<br />

em reunião e entrou um funcionário da segurança<br />

perguntando qual seria a data <strong>de</strong><br />

valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu novo documento. Sérgio<br />

respon<strong>de</strong>u com toda a serieda<strong>de</strong>: “Escreva<br />

aí – até a próxima cagada...”<br />

***<br />

Na inauguração <strong>de</strong> uma das empresas<br />

do Grupo Ibope, o velho Montenegro me<br />

encomendou o discurso para a solenida<strong>de</strong><br />

em São Paulo. Segundo sua orientação, preparei<br />

três laudas e ao final escrevi: “não se<br />

esqueça <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer”. Eu queria lembrá-lo<br />

que ele <strong>de</strong>veria saudar as personalida<strong>de</strong>s<br />

presentes. Mas o recado ficou assim curtinho.<br />

Montenegro era um gênio, mas não<br />

gostava <strong>de</strong> fazer discursos. Leu comportadamente<br />

o texto e encerrou, conforme eu<br />

tinha sugerido: “Obrigado, Lula!”<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

24 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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