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JANEIRO-2020 - edição nº 260

Cento Lusitano de Zurique

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CRÓNICA

A universidade dos

quadradinhos

ALICE VIEIRA

Existe neste nosso mundo

uma universidade popular

e livre que, à margem

dos ensinos oficiais

e programados, enche

de uma especial sabedoria

as mais diversas

camadas da população.

Não dá diploma, não

assegura emprego nem

reforma—mas dá ao rosto

de quem a possui um

halo de beatitude que geralmente

só transpira do

coração dos iluminados.

Para além de, como afirma

a minha psicóloga,

dar uma grande serenidade

a quem está à procura

dela.

Refiro-me à sabedoria

das palavras cruzadas.

As pessoas que me vêem

a saudar um velho amigo,

que faz palavras cruzadas

para tudo o que é jornal,

abrem a boca de espanto

quando nos ouvem

dizer: “então, osculinhos

e amplexos”.

Estamos apenas a dizer

“beijinhos e abraços”

Com alguns meses de

prática, qualquer pessoa

ficará perfeitamente apta

a saber que ”arala” é novilha

de dois anos, que

“finfar” é vestir bem, que

“aru” é sapo do Amazonas

(não confundir com

”uro”, que é toiro bravo),

que “uta” é joeirar, e

“ciar” é remar para trás.

Com um pouco mais

de prática, conseguirá

em breve discernir entre

“Aar” (rio da Suíça), “aas”

(duna na Suécia) e “aal”

(antiga porcelana do

oriente) - coisas importantíssimas

para o seu

dia a dia.

(Aqui queria apenas recordar

a manhã em que,

estava eu na Suíça e passeava

com uma amiga

pelas ruas de Berna, à

espera de horas para ir

com ela à escola que me

esperava — e, de repente,

fico com cara de parva

a olhar para a pequena

placa sobre a ponte do

rio que passava ao nosso

lado.

“Aar??? Rio Aar??? Olha,

existe mesmo…”

Sim, porque apesar de

preenchermos tudo rapidinho,

uma coisa é ver no

papel, outra coisa é ver a

sério…)

Nos cafés que ainda não

fecharam, ainda vão aparecendo

alguns velhotes

maluquinhos que, dando

uns minutos de folga ao

telemóvel, abrem um jornal

e lá se vão movimentando

pelo labirinto dos

quadradinhos, rapidamente

escrevendo “cró”

em “nome de jogo”, “cós”

em “mealheiro”, “io” em

satélite de Júpiter, “tas”

em bigorna, ou “raer” em

“varrer o forno depois de

aquecido”.

Um cruzadista ferrenho

pode desconhecer o

“rosa-rosae” dos velhos

tempos do liceu, mas

sabe na ponta da língua

que “ea” é “a palavra latina

por que começam

muitos documentos de

interesse para Portugal”

(embora ignore que documentos

são esses…).

E uma dona de casa

pode ignorar a açorda de

coentros alentejana, mas

sabe que “apa” é “bolo

de azeite e mel feito na

Ásia”.

Num momento como este

que atravessamos, em

que o ensino anda complicado

e tanto alunos

como professores levam

as mãos à cabeça

sem saber que voltas dar

à vida, não tarda que o

ministro da Educação

se lembre desta nova

escola , capaz de suprir

muitas das deficiências

existentes—e que não vai

pesar no orçamento geral

do Estado.

O tipo de conhecimento é

capaz de não ser lá muito

aprofundado, pois não,

mas sempre se podem

ganhar uns euritos valentes

nos concursos da

televisão.

E de resto, digam-me:

há lá coisa mais útil para

o nosso dia-a-dia – em

casa, no trabalho, com

os amigos – do que saber

o símbolo químico do

césio, do bário ou do praseodímio?

Janeiro 2020 | Lusitano de Zurique | www.cldz.eu

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