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CRÓNICA
A universidade dos
quadradinhos
ALICE VIEIRA
Existe neste nosso mundo
uma universidade popular
e livre que, à margem
dos ensinos oficiais
e programados, enche
de uma especial sabedoria
as mais diversas
camadas da população.
Não dá diploma, não
assegura emprego nem
reforma—mas dá ao rosto
de quem a possui um
halo de beatitude que geralmente
só transpira do
coração dos iluminados.
Para além de, como afirma
a minha psicóloga,
dar uma grande serenidade
a quem está à procura
dela.
Refiro-me à sabedoria
das palavras cruzadas.
As pessoas que me vêem
a saudar um velho amigo,
que faz palavras cruzadas
para tudo o que é jornal,
abrem a boca de espanto
quando nos ouvem
dizer: “então, osculinhos
e amplexos”.
Estamos apenas a dizer
“beijinhos e abraços”
Com alguns meses de
prática, qualquer pessoa
ficará perfeitamente apta
a saber que ”arala” é novilha
de dois anos, que
“finfar” é vestir bem, que
“aru” é sapo do Amazonas
(não confundir com
”uro”, que é toiro bravo),
que “uta” é joeirar, e
“ciar” é remar para trás.
Com um pouco mais
de prática, conseguirá
em breve discernir entre
“Aar” (rio da Suíça), “aas”
(duna na Suécia) e “aal”
(antiga porcelana do
oriente) - coisas importantíssimas
para o seu
dia a dia.
(Aqui queria apenas recordar
a manhã em que,
estava eu na Suíça e passeava
com uma amiga
pelas ruas de Berna, à
espera de horas para ir
com ela à escola que me
esperava — e, de repente,
fico com cara de parva
a olhar para a pequena
placa sobre a ponte do
rio que passava ao nosso
lado.
“Aar??? Rio Aar??? Olha,
existe mesmo…”
Sim, porque apesar de
preenchermos tudo rapidinho,
uma coisa é ver no
papel, outra coisa é ver a
sério…)
Nos cafés que ainda não
fecharam, ainda vão aparecendo
alguns velhotes
maluquinhos que, dando
uns minutos de folga ao
telemóvel, abrem um jornal
e lá se vão movimentando
pelo labirinto dos
quadradinhos, rapidamente
escrevendo “cró”
em “nome de jogo”, “cós”
em “mealheiro”, “io” em
satélite de Júpiter, “tas”
em bigorna, ou “raer” em
“varrer o forno depois de
aquecido”.
Um cruzadista ferrenho
pode desconhecer o
“rosa-rosae” dos velhos
tempos do liceu, mas
sabe na ponta da língua
que “ea” é “a palavra latina
por que começam
muitos documentos de
interesse para Portugal”
(embora ignore que documentos
são esses…).
E uma dona de casa
pode ignorar a açorda de
coentros alentejana, mas
sabe que “apa” é “bolo
de azeite e mel feito na
Ásia”.
Num momento como este
que atravessamos, em
que o ensino anda complicado
e tanto alunos
como professores levam
as mãos à cabeça
sem saber que voltas dar
à vida, não tarda que o
ministro da Educação
se lembre desta nova
escola , capaz de suprir
muitas das deficiências
existentes—e que não vai
pesar no orçamento geral
do Estado.
O tipo de conhecimento é
capaz de não ser lá muito
aprofundado, pois não,
mas sempre se podem
ganhar uns euritos valentes
nos concursos da
televisão.
E de resto, digam-me:
há lá coisa mais útil para
o nosso dia-a-dia – em
casa, no trabalho, com
os amigos – do que saber
o símbolo químico do
césio, do bário ou do praseodímio?
Janeiro 2020 | Lusitano de Zurique | www.cldz.eu