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JANEIRO-2020 - edição nº 260

Cento Lusitano de Zurique

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LITERATURA

37

O velório

AMÉRICO LISBOA AZEVEDO (*)

Esmeralda deliciava-se com o terno calor do

sol a a acariciar-lhe o rosto macio, com o intenso

odor das flores silvestres e das ervas bravias

a roçar-lhe as sensíveis narinas. Os seus

pés deslizavam pelo empedrado com tal leveza

que mais parecia que ela temia pisar as pedras.

Apesar disso, os seus passos eram cautelosos

e inseguros como se Esmeralda receasse encontrar

algum obstáculo que não conhecesse.

Tinha por hábito ir sentar-se num seixo junto

ao ribeiro. Ali se mantinha a escutar as águas

a correrem e a saltarem de pedregulho em pedregulho.

À sua volta havia árvores e arbustos

e um constante chilrear de pássaros inquietos.

"Como tudo isto deve ser lindo", pensava Esmeralda.

"E eu que nada mais vejo além deste

interminável vazio".

Esmeralda já há 20 anos que era cega. Assim

nascera e assim viveria todos os dias de sua

vida. O oftalmologista que desde muito cedo

acompanhara Esmeralda sempre dissera que a

medicina não tinha solução para casos como

aquele.

E as pessoas da aldeia já se tinham acostumado

à ideia que Esmeralda seria cega para

sempre.

Os rapazes e as raparigas gostavam muito dela

e não a queriam ver triste. Para eles Esmeralda

era alguém que protegiam como se ela fosse

um ser demasiado frágil. Estavam sempre

atentos se qualquer estranho se aproximava

de Esmeralda. Nada queriam que de ruim lhe

acontecesse.

Leandro era um dos seus amigos mais fieis e

ficava nervosamente a roer as unhas se via algum

outro jovem chegar perto dela. A verdade

é que Leandro amava Esmeralda em segredo,

mas nunca seria capaz de confessar o seu amor

por uma mulher que não enxergasse. Complexos

que grande parte do nosso povo ainda não

soube ultrapassar, até porque em pleno final de

século XX muita gente continua a desconhecer

as reais capacidades das pessoas cegas.

Por seu turno, Esmeralda nem sequer queria

sonhar com essas belas histórias de amor que

lia nos livros em braille. Tudo aquilo devia ser

lindo demais para ela um dia poder experimentar.

"Que homem atraente e inteligente quereria

viver ao lado duma cega como eu!?", reflectia

Esmeralda.

Mas D. Gervásia, uma anciã da aldeia, não partilhava

dessa opinião e sempre que se encontrava

com Esmeralda lhe dizia:

- Ai menina, a alegria maior que eu podia ter

antes de morrer era vê-la bem casada.

- Ora.. - corava Esmeralda - Isso é impossível.

Eu nem homem conheço. E depois, quem ia

deixar-se apaixonar por uma cega?!

- A menina é cega, mas possui os olhos do coração

que enxergam melhor que os da cara.

Além disso, é muito bonita e versada. Sabe falar

de coisas tão lindas.

Decorridas algumas semanas após esta conversa,

uma triste notícia espalhou-se pela aldeia.

E o coração de Esmeralda encheu-se

de luto. Numa manhã pardacenta, D. Gervásia

despedira-se do mundo dos vivos.

Todo o povoado chorava e lamentava a morte

da anciã e todos se juntaram para lhe prestar as

últimas homenagens na noite do velório. Esmeralda

também lá esteve e de lá não arredou pé

até os primeiros alvores começarem a clarear

o dia.

Também durante toda a noite, um dos jovens

netos da defunta não desviara o olhar de Esmeralda.

"Quem seria aquela donzela que irradiava uma

beleza ofuscante?", perguntava-se Nuno. E

mordendo-se de curiosidade, fez a pergunta a

Vicença, sua tia predilecta.

- É Esmeralda, a moça mais amada neste pedaço

de terra. E bem que merece todo o nosso

amor. Nunca conhecemos menina mais simpática.

- Tem um jeito tão estranho de nos olhar! É que

mal nos olha; é como se nem nos quisesse ver.

- observava Nuno.

Vicença pigarreou e um pouco desconfortável,

disse:

- Esmeralda é cega.

De súbito, Nuno lembrou-se de outros cegos

que conhecia na cidade e de como lhes admirava

a alegria de viver e o espírito de inter-ajuda.

Em todo o tempo em que Nuno estivera de

olhos postos em Esmeralda sobressaíra-lhe a

extraordinária discrição das suas atitudes e serenidade

das suas feições.

Após um longo período duma pertinente hesitação,

Nuno decidiu abordar Esmeralda:

- Olá, Esmeralda.

- Olá. Quem está aí? - perguntou ela, ligeiramente

sobressaltada.

- Sou Nuno, o neto da falecida.

- Sinto muito a morte da tua avó. Foi uma grande

mulher.

- Vejo que gostavas muito da minha avó. Já

quase todos se recolheram a suas casas e apesar

dos primeiros alvores tingirem já a longa

noite, tu não arredas pé.

- Sim, malgrado a grande diferença de idades

entre as duas, éramos grandes amigas. D. Gervásia

compreendia bem a juventude.

E continuaram a falar disto e daquilo e quando

estavam prestes a se separarem, Nuno indagou:

- Onde te poderei encontrar?

- Vou sentar-me todas as tardes num dos seixos

da margem do ribeiro.

- Amanhã vou lá ter contigo.

- Mas não tens que regressar à cidade?

- Mesmo que a minha avó não morresse, estava

previsto vir para cá passar um período de

férias.

E a partir dessa altura, Esmeralda passou a ter

a companhia de Nuno nas tardes junto do ribeiro.

Os laços afectivos depressa se estreitaram entre

ambos.

- Esmeralda, como é que tu imaginas o meu

rosto?

Esmeralda nem sequer pensou duas vezes.

Tacteou-lhe as faces, a cabeça, os ombros.

- És muito elegante.

- E as tuas mãos parecem de veludo.

- Gostava de poder ver os teus olhos. - disse

Esmeralda.

- Muitíssimo mais belos são os teus

- Mas falta-lhes a luz do sol.

- No entanto, transmitem u calor da vida. - explicou

Nuno.

- A tua avó dizia-me o mesmo.

- Como vês não exagero.

De repente fizeram um curto silêncio.

- Porque me olhas assim? - perguntou Esmeralda.

- Como sabes que estou a olhar para ti? - sobressaltou-se

Nuno.

- Nem eu te sei explicar. São coisas que sinto.

A tua avó dizia que eu vejo com os olhos do

coração.

- E que mais conseguem ver os olhos do teu

coração?

Esmeralda baixou a cabeça. Tinha vontade de

lhe dizer que já descobrira que Nuno a amava

e que ela também o amava. Porém, temia que

Nuno a considerasse ridícula e troçasse dela.

Afinal, era cega e na tal cidade haveria por certo

moças mais graciosas e prendadas e que

fariam a felicidade dus homens que as elegessem

para suas esposas.

"Não, Nuno não pode sequer sonhar que o

amo. É melhor que me vá embora e que nas

próximas tardes eu deixe de vir aqui.", reflectia

Esmeralda.

- Não te estás a sentir bem? - reparou Nuno.

- É uma ligeira indisposição. É melhor que...

- Julgo ter o remédio para essa indisposição.

- e dizendo isto, Nuno procurou-lhe os lábios.

Esmeralda ainda tentou resistir, mas o seu esforço

era em vão, porque depressa perdeu o

domínio. Porque havia de negar que estava

cega de desejo!

Quando o beijo terminou e Esmeralda pôde

pensar de novo, ficou muito nervosa e insegura

e gritou:

- Vai-te embora! Vai-te embora, para sempre!

Porém, Nuno estava dono da situação:

- Agora já é tarde. Nunca mais ficarei longe de

ti.

- Sou cega!

- Nunca ninguém ficou famoso por amar com

os olhos. - tentou Nuno gracejar.

Esmeralda estava confusa. Realmente, Nuno

tinha razão. Ninguém precisava dos olhos para

amar.

- Esmeralda, unamos as nossas vidas. Juntos

veremos melhor. Eu serei a luz dos teus olhos

e tu serás um bom guia para o meu coração.

(*) https://www.facebook.com/jorge.tomas.3975

Janeiro 2020 | Lusitano de Zurique | www.cldz.eu

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