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LITERATURA
37
O velório
AMÉRICO LISBOA AZEVEDO (*)
Esmeralda deliciava-se com o terno calor do
sol a a acariciar-lhe o rosto macio, com o intenso
odor das flores silvestres e das ervas bravias
a roçar-lhe as sensíveis narinas. Os seus
pés deslizavam pelo empedrado com tal leveza
que mais parecia que ela temia pisar as pedras.
Apesar disso, os seus passos eram cautelosos
e inseguros como se Esmeralda receasse encontrar
algum obstáculo que não conhecesse.
Tinha por hábito ir sentar-se num seixo junto
ao ribeiro. Ali se mantinha a escutar as águas
a correrem e a saltarem de pedregulho em pedregulho.
À sua volta havia árvores e arbustos
e um constante chilrear de pássaros inquietos.
"Como tudo isto deve ser lindo", pensava Esmeralda.
"E eu que nada mais vejo além deste
interminável vazio".
Esmeralda já há 20 anos que era cega. Assim
nascera e assim viveria todos os dias de sua
vida. O oftalmologista que desde muito cedo
acompanhara Esmeralda sempre dissera que a
medicina não tinha solução para casos como
aquele.
E as pessoas da aldeia já se tinham acostumado
à ideia que Esmeralda seria cega para
sempre.
Os rapazes e as raparigas gostavam muito dela
e não a queriam ver triste. Para eles Esmeralda
era alguém que protegiam como se ela fosse
um ser demasiado frágil. Estavam sempre
atentos se qualquer estranho se aproximava
de Esmeralda. Nada queriam que de ruim lhe
acontecesse.
Leandro era um dos seus amigos mais fieis e
ficava nervosamente a roer as unhas se via algum
outro jovem chegar perto dela. A verdade
é que Leandro amava Esmeralda em segredo,
mas nunca seria capaz de confessar o seu amor
por uma mulher que não enxergasse. Complexos
que grande parte do nosso povo ainda não
soube ultrapassar, até porque em pleno final de
século XX muita gente continua a desconhecer
as reais capacidades das pessoas cegas.
Por seu turno, Esmeralda nem sequer queria
sonhar com essas belas histórias de amor que
lia nos livros em braille. Tudo aquilo devia ser
lindo demais para ela um dia poder experimentar.
"Que homem atraente e inteligente quereria
viver ao lado duma cega como eu!?", reflectia
Esmeralda.
Mas D. Gervásia, uma anciã da aldeia, não partilhava
dessa opinião e sempre que se encontrava
com Esmeralda lhe dizia:
- Ai menina, a alegria maior que eu podia ter
antes de morrer era vê-la bem casada.
- Ora.. - corava Esmeralda - Isso é impossível.
Eu nem homem conheço. E depois, quem ia
deixar-se apaixonar por uma cega?!
- A menina é cega, mas possui os olhos do coração
que enxergam melhor que os da cara.
Além disso, é muito bonita e versada. Sabe falar
de coisas tão lindas.
Decorridas algumas semanas após esta conversa,
uma triste notícia espalhou-se pela aldeia.
E o coração de Esmeralda encheu-se
de luto. Numa manhã pardacenta, D. Gervásia
despedira-se do mundo dos vivos.
Todo o povoado chorava e lamentava a morte
da anciã e todos se juntaram para lhe prestar as
últimas homenagens na noite do velório. Esmeralda
também lá esteve e de lá não arredou pé
até os primeiros alvores começarem a clarear
o dia.
Também durante toda a noite, um dos jovens
netos da defunta não desviara o olhar de Esmeralda.
"Quem seria aquela donzela que irradiava uma
beleza ofuscante?", perguntava-se Nuno. E
mordendo-se de curiosidade, fez a pergunta a
Vicença, sua tia predilecta.
- É Esmeralda, a moça mais amada neste pedaço
de terra. E bem que merece todo o nosso
amor. Nunca conhecemos menina mais simpática.
- Tem um jeito tão estranho de nos olhar! É que
mal nos olha; é como se nem nos quisesse ver.
- observava Nuno.
Vicença pigarreou e um pouco desconfortável,
disse:
- Esmeralda é cega.
De súbito, Nuno lembrou-se de outros cegos
que conhecia na cidade e de como lhes admirava
a alegria de viver e o espírito de inter-ajuda.
Em todo o tempo em que Nuno estivera de
olhos postos em Esmeralda sobressaíra-lhe a
extraordinária discrição das suas atitudes e serenidade
das suas feições.
Após um longo período duma pertinente hesitação,
Nuno decidiu abordar Esmeralda:
- Olá, Esmeralda.
- Olá. Quem está aí? - perguntou ela, ligeiramente
sobressaltada.
- Sou Nuno, o neto da falecida.
- Sinto muito a morte da tua avó. Foi uma grande
mulher.
- Vejo que gostavas muito da minha avó. Já
quase todos se recolheram a suas casas e apesar
dos primeiros alvores tingirem já a longa
noite, tu não arredas pé.
- Sim, malgrado a grande diferença de idades
entre as duas, éramos grandes amigas. D. Gervásia
compreendia bem a juventude.
E continuaram a falar disto e daquilo e quando
estavam prestes a se separarem, Nuno indagou:
- Onde te poderei encontrar?
- Vou sentar-me todas as tardes num dos seixos
da margem do ribeiro.
- Amanhã vou lá ter contigo.
- Mas não tens que regressar à cidade?
- Mesmo que a minha avó não morresse, estava
previsto vir para cá passar um período de
férias.
E a partir dessa altura, Esmeralda passou a ter
a companhia de Nuno nas tardes junto do ribeiro.
Os laços afectivos depressa se estreitaram entre
ambos.
- Esmeralda, como é que tu imaginas o meu
rosto?
Esmeralda nem sequer pensou duas vezes.
Tacteou-lhe as faces, a cabeça, os ombros.
- És muito elegante.
- E as tuas mãos parecem de veludo.
- Gostava de poder ver os teus olhos. - disse
Esmeralda.
- Muitíssimo mais belos são os teus
- Mas falta-lhes a luz do sol.
- No entanto, transmitem u calor da vida. - explicou
Nuno.
- A tua avó dizia-me o mesmo.
- Como vês não exagero.
De repente fizeram um curto silêncio.
- Porque me olhas assim? - perguntou Esmeralda.
- Como sabes que estou a olhar para ti? - sobressaltou-se
Nuno.
- Nem eu te sei explicar. São coisas que sinto.
A tua avó dizia que eu vejo com os olhos do
coração.
- E que mais conseguem ver os olhos do teu
coração?
Esmeralda baixou a cabeça. Tinha vontade de
lhe dizer que já descobrira que Nuno a amava
e que ela também o amava. Porém, temia que
Nuno a considerasse ridícula e troçasse dela.
Afinal, era cega e na tal cidade haveria por certo
moças mais graciosas e prendadas e que
fariam a felicidade dus homens que as elegessem
para suas esposas.
"Não, Nuno não pode sequer sonhar que o
amo. É melhor que me vá embora e que nas
próximas tardes eu deixe de vir aqui.", reflectia
Esmeralda.
- Não te estás a sentir bem? - reparou Nuno.
- É uma ligeira indisposição. É melhor que...
- Julgo ter o remédio para essa indisposição.
- e dizendo isto, Nuno procurou-lhe os lábios.
Esmeralda ainda tentou resistir, mas o seu esforço
era em vão, porque depressa perdeu o
domínio. Porque havia de negar que estava
cega de desejo!
Quando o beijo terminou e Esmeralda pôde
pensar de novo, ficou muito nervosa e insegura
e gritou:
- Vai-te embora! Vai-te embora, para sempre!
Porém, Nuno estava dono da situação:
- Agora já é tarde. Nunca mais ficarei longe de
ti.
- Sou cega!
- Nunca ninguém ficou famoso por amar com
os olhos. - tentou Nuno gracejar.
Esmeralda estava confusa. Realmente, Nuno
tinha razão. Ninguém precisava dos olhos para
amar.
- Esmeralda, unamos as nossas vidas. Juntos
veremos melhor. Eu serei a luz dos teus olhos
e tu serás um bom guia para o meu coração.
(*) https://www.facebook.com/jorge.tomas.3975
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