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DEZEMBRO_2020

DEZEMBRO 2020 - Edição nº 271 Órgão informativo do Centro Lusitano de Zurique

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CRÓNICA

23

Sebastião Alba - Poeta insubmisso

Dir-me-eis: mas o Nuno Nozelos e o Sebastião

Alba[*] não nasceram, propriamente,

em Torre de Dona Chama.

Então, o que há nisto tudo de fascinante e

arrebatador?

TERESA A. FERREIRA

Quem é este poeta que tanto me

apaixona?

Poderia começar por debitar o que, facilmente,

ireis encontrar vertido por todo o

lado em páginas públicas na Internet. Deixo-vos

esse gozo da descoberta.

Resta-me, então, falar do que não está

escrito, da emoção que sinto quando toco

neste nome maior: Sebastião Alba, pseudónimo

do Dinis Albano Carneiro Gonçalves

(Braga 1940-2000).

Estareis neste momento a questionar - o

que é que me liga a ele?

Quando há dias escrevi o poema NASCI

EM TERRA DE POETAS estava a pensar

no Nuno Nozelos, no Sebastião Alba, no

Ernesto Rodrigues e na Ana Bárbara de

Santo António e, no aconchego de berço

que Torre de Dona Chama tem.

Para quando um Parque dos Poetas na

nossa Torre?

E estais cobertos de razão. Ser da Torre

não advém da condição de nascimento,

mas do amor que se tem pela terra.

É preciso sentir o fervor crescente do

encanto quando se chega à Torre, o

cheiro que a natureza emana, o colorido

da paisagem, o silêncio, o sossego,

a ausência do bulício da cidade. É o reflorescer

de emoções despoletadas a

cada regresso. É a magia de sentir tudo

fresco e novo como se fosse candura

divina. É o impensável e indescritível a

percorrer as veias mantendo a alma em

resplendor. É ser-se genuíno e simples

abraçando os seus com clamor.

Tanto o Nuno como o Sebastião, a seu

pedido, jazem no cemitério da Torre.

Quereis prova maior!?

Hoje, quero centrar-me no Sebastião

Alba, o nosso Dinis, filho de gente da

Torre.

Quanto mais procuro saber sobre ele,

mais cresce a vontade de abraçar a

alma deste Grande Poeta e Homem.

Não é apenas a obra que nos deixou e

que me traz em desassossego, é o facto

de eu sentir que tenho de ir ao encontro

do Homem, conhecê-lo nas diversas faces

e camadas para o compreender, para

me aproximar, para saber a cada dia um

pouco mais, para lhe tocar na aura e descer

à essência.

Descobri um homem sensível, inteligente,

cultíssimo, de uma memória extraordinária,

um ser inebriante, um nómada que tinha

por casa a mortalha, insubmisso aos

homens, às leis, às regras, à sociedade,

um anarca.

Estareis por esta altura a levantar a ponta

do dedo para me lembrar de que este

homem vivia como um sem-abrigo, era um

ser errante despojado de bens, quando

até tinha família; dormia ao relento; andava

sempre acompanhado de um rádio sintonizado

na Antena 2; trazia no bolso a harmónica

de beiços que tocava divinamente;

uma garrafa de vinho escondida dentro de

um saco de plástico; trazia a roupa do corpo

e nada mais; passava fome e algumas

pessoas davam-lhe de comer; escrevia divinamente,

o que a mente lhe ditava, em

qualquer pedaço de papel; deixava pequenos

escritos como bilhetes, aqui e acolá,

pelas pessoas a quem queria bem. Alguns

que se aproximavam, sentiam repulsa pelo

cheiro e o modo rude como ele às vezes os

tratava. Só os verdadeiros amigos ficavam.

Ah, se pudesse voltar no tempo, ao tempo

em que ele deambulava por Torre de Dona

Chama, aquando das visitas à terra, à família

e aos amigos! Tentaria aproximar-me

dele, pouco a pouco, para o ir conhecendo,

matando a minha sede na sua imensa

sapiência, humanismo e sensibilidade.

Quem sabe, não nos entenderíamos e trocaríamos

papeizinhos escritos com algum

poema, quem sabe!?

Descobri alguns pontos comuns que nos

teriam aproximado, julgo eu. Ambos amamos

a liberdade, os pássaros e seu canto,

o voo livre, o ser humano enquanto frágil,

por exemplo: as crianças e os idosos, a

música, a literatura, a poesia, o amor romântico,

o mar.

Estudei sempre fora e por longe fiquei a trabalhar.

No pouco tempo que passei na Torre,

nunca tive a sorte de me cruzar com ele.

Dinis viveu além do limite humano e excedeu-se

na poesia. Poeta de extraordinária

qualidade; Ser Humano a estudar no seu

todo.

Deixo-vos, para deleite, com uma poesia

sua...

Na sua primordial existência…

Na sua primordial existência

a poesia deixar-me-á da ternura

só o que é defensável

e à margem do papel em que escrevi

as cidades e os campos

através dos quais me acenou

apartará do meu paladar

o sabor do sagrado

com que ainda a nomeie

já não buscarei nos ensaios que cerco lhe moviam!

e nos ideais por que alheada

roçagou

que da janela eu não deslinde

de um cão em paz

a visagem ancestral

e a minha emoção seja enfim sedentária

e recém-chegada a noite finde

sem dar acordo de si.

Sebastião Alba

Teresa A. Ferreira, 28-11-2020,

in Diário de Trás os Montes

(*) Sebastião Alba, pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves, foi um escritor português, nasceu a 11 de Março de

1940 em Braga. A 14 de Outubro de 2000, Sebastião Alba vítima de atropelamento morre também em Braga. A 7 de Outubro,

quase como pressentimento, escreveu um bilhete dirigido ao seu irmão: “Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o

espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá”.

Dezembro 2020 | Lusitano de Zurique | WWW.CLDZ.EU

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