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Medicina e Religião - História da Medicina

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Ai<strong>da</strong>r chamou Amato. Bom conhecedor <strong>da</strong> cultura<br />

muçulmana, Amato justifica e interpreta o chamamento<br />

de Ai<strong>da</strong>r com estas palavras: “por causa do seu estado<br />

de espírito mandou-me ir estar com ele”. E assim<br />

descreve este encontro:<br />

“Com modos bárbaros mas com uma atitude régia<br />

diz-me: «Gostava de verificar se são de algum modo<br />

ver<strong>da</strong>deiras as coisas que tenho ouvido a respeito <strong>da</strong><br />

tua ciência. Assim, agora desejo que me indiques de<br />

que doença corporal estou padecendo”.<br />

Sofria Ai<strong>da</strong>r de uma grave infecção nas virilhas. A<br />

inflamação era antiga. Declarara-se há mais de vinte<br />

anos e por vezes, a infecção atingia proporções<br />

dolorosamente agu<strong>da</strong>s. Debelar uma doença que se<br />

tornara crónica era tarefa complexa. Avaliando a<br />

situação, Amato optou por remédios suaves,<br />

complementados por um saudável regime alimentar.<br />

E justifica a sua opção de um modo onde sobressai a<br />

consciência dos perigos que o cruzamento de<br />

fronteiras culturais por vezes arrasta:<br />

“Estávamos a li<strong>da</strong>r com um homem importante e<br />

velho, com os pés para a cova, sobretudo um bárbaro<br />

turco que, se deixasse de viver, isso <strong>da</strong>ria grande <strong>da</strong>no<br />

e perigo sem dúvi<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong> de quem o tratava”.<br />

E esclarece:<br />

“Com efeito os selvagens criados dele atribuiriam<br />

ao médico a morte, atirando-se ferozmente contra ele”.<br />

No entanto, tal não aconteceu. Amato Lusitano<br />

curou o velho eunuco.<br />

Mas se Amato ultrapassou em Ragusa fronteiras<br />

culturais, étnicas, políticas, religiosas, parece-me ter<br />

sido ele também um precursor do rompimento de fronteiras<br />

dentro <strong>da</strong> própria medicina. Como afirmou<br />

Claudine Rueff, <strong>da</strong> Organização Mundial de Saúde, “a<br />

nova visão do mundo decorrente <strong>da</strong>s descobertas <strong>da</strong><br />

chama<strong>da</strong> nova Física (quantas, relativi<strong>da</strong>de, termodinâmica),<br />

onde tudo é concebido em termos de interacção,<br />

conduziu a medicina ocidental ao abandono<br />

<strong>da</strong> concepção do «homem máquina» e fez emergir a<br />

necessi<strong>da</strong>de de se cui<strong>da</strong>r do homem total”.<br />

Segundo, pois, esta linha de pensamento, um modelo<br />

médico que se não interesse apenas pela doença,<br />

mas que aten<strong>da</strong> à saúde em geral e aos factores psicológicos<br />

e culturais dos quais ela, em grande parte,<br />

depende ganhou progressivamente terreno nos últimos<br />

anos do século XX.<br />

Visão inovadora forja<strong>da</strong> pelo rompimento de fronteiras<br />

de tudo aquilo que toca o Homem e a doença.<br />

Ora, esta mesma visão encontrâmo-la já em Amato<br />

Lusitano. Escreveu ele nos comentários à Cura 60 <strong>da</strong><br />

I Centúria:<br />

“O médico prudente, ponderando cui<strong>da</strong>dosamente,<br />

varia os remédios, atendendo à natureza do doente,<br />

ao sítio, à i<strong>da</strong>de, tempo e cousas semelhantes, não<br />

como fazem os imperitos que tudo curam com o<br />

mesmo remédio, como se todos houvessem de calçarse<br />

pela mesma fôrma”.<br />

Sem sombra de dúvi<strong>da</strong> que estas palavras, escritas<br />

no século XVI, encerram todo o multifacetado entrelaçar<br />

de factores que o rompimento de fronteiras no<br />

modo de encarar o doente e a doença transporta<br />

consigo.<br />

* Geógrafa. Investigadora.<br />

24<br />

Notas e Bibliografia<br />

- Amato Lusitano, V Centúria de Curas <strong>Medicina</strong>is,<br />

vol. IV, Edição Universi<strong>da</strong>de Nova de Lisboa. Tradução<br />

de Firmino Crespo.<br />

- Les Memoires de I’Europe, vol. II «Le Renoveau<br />

Européen (1455-1600)»», dir. Jean-Piere Vivet , Paris,<br />

Robert Laffont, 1971. «Charles Quinte Discourse» p.<br />

338; «Relations des ambassadeurs Vénitien», 399.

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