Medicina e Religião - História da Medicina
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combate, “o doente que segue o médico e executa<br />
as suas ordens torna-se aliado deste e inimigo <strong>da</strong><br />
doença”.<br />
Mais à frente, Amato aconselha que, “caso o médico<br />
desconheça <strong>da</strong> doença, atenue o regimen, como<br />
man<strong>da</strong> Avicena, visto que a doença se descobrirá”.<br />
Ou como Hipócrates ordena “dê o médico ao doente<br />
um remédio fraco e não poderoso: se não conheces a<br />
doença, <strong>da</strong>rás a tomar um remédio não forte”.<br />
Muito interessante um comentário acerca <strong>da</strong>s crises,<br />
em que afirma que “é natural que os leigos se<br />
espantem com as perturbações que sobrevêm antes<br />
do julgamento aos continuamente febris, isto é,<br />
ansie<strong>da</strong>des, insónias, delírios, dor de cabeça,<br />
inquietação do pescoço e do estômago, zoeira dos<br />
ouvidos, lágrimas involuntárias, tremor dos lábios, novo<br />
colapso violento...”. Mas “os médicos cautelosos e<br />
entendidos predizam o salvamento do lastimado,<br />
sabedores de que, antes do dia crítico, sobrevém a<br />
maior ansie<strong>da</strong>de e perturbação”.<br />
Outro texto fun<strong>da</strong>mental é o juramento de Amato<br />
(traduzido nomea<strong>da</strong>mente por Rocha Brito) com que<br />
finalizava a 7ª. Centúria, a comparar com o juramento<br />
de Hipócrates. São especialmente significativos os<br />
trechos em que Amato assevera que “na minha clínica<br />
na<strong>da</strong> tive mais a peito do que promover que a fé intacta<br />
<strong>da</strong>s cousas chegasse ao conhecimento dos vindouros”<br />
ou que “para tratar os doentes jamais curei de saber<br />
se eram hebreus, cristãos ou sequazes <strong>da</strong> lei<br />
maometana” ou ain<strong>da</strong> quando afirma que “nem o<br />
prejuízo dos interesses particulares, nem as viagens<br />
por mar, nem as minhas frequentes deambulações<br />
por terra, nem por fim o próprio exílio, me abalaram a<br />
alma, como convém ao homem sábio”.<br />
Se analisarmos comparativamente os Juramentos,<br />
parece claro que embora na linhagem de Hipócrates,<br />
o juramento Amatiano tem já preocupações no campo<br />
<strong>da</strong> Justiça, e também sociais e no horizonte <strong>da</strong><br />
Humani<strong>da</strong>de com uma elevação e exigência ética<br />
muito mais intensa. Como Deontologista, emparceira<br />
assim com Mestre Jerónimo de Miran<strong>da</strong> (Diálogo <strong>da</strong><br />
perfeição...), com Henrique Jorge Henriques (Retrato<br />
do perfeito médico), e com Rodrigo de Castro<br />
(Medicus Politicus).<br />
É claro que os princípios <strong>da</strong> Beneficência e<br />
Não-Maleficência são os básicos desde a tradição<br />
hipocrática. Beneficência - que exige fazer o bem,<br />
segundo os critérios de bem do possível beneficiado<br />
(o paciente), e representá-lo quando este não o possa<br />
fazer. Não-Maleficência - obriga a não causar <strong>da</strong>no<br />
(primum non nocere) e portanto a realizar correctamente<br />
o trabalho profissional.<br />
Repare-se que na Bioética contemporânea há mais<br />
dois princípios fun<strong>da</strong>mentais, de incorporação muito<br />
recente (Justiça e Autonomia).<br />
Justiça - que obriga a proporcionar a todos as<br />
mesmas oportuni<strong>da</strong>des na ordem do social, não<br />
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descriminando ou marginalizando.<br />
Autonomia - que exige reconhecer que to<strong>da</strong>s as<br />
pessoas, até prova em contrário, são capazes de<br />
tomar decisões e dispor livremente de si mesmas. É<br />
este princípio, direito do doente, que pode em certos<br />
casos contrapor-se aos outros princípios, e portanto<br />
o consentimento informado passou a ser necessário.<br />
Podemos dizer em linguagem actual que a estrutura<br />
<strong>da</strong> Relação Médico/Doente foi até há poucos anos a<br />
Paternalista, guia<strong>da</strong> pelos primeiros princípios atrás<br />
definidos, exercendo o médico um papel activo,<br />
man<strong>da</strong>ndo com autori<strong>da</strong>de e o bom doente era o que<br />
devia obediência. É óbvia a relação deste tipo em<br />
vários exemplos <strong>da</strong>s Centúrias. É claro que a relação<br />
paternalista funcionava geralmente no sentido <strong>da</strong><br />
defesa do interesse do doente, o que não quer dizer<br />
que não tenha havido ao longo dos tempos exemplos<br />
(como hoje há) em que a relação paternalista sofreu<br />
perversões.<br />
Alguns temas particulares <strong>da</strong> relação Médico-Doente<br />
já foram focados em jorna<strong>da</strong>s anteriores:<br />
1.° - A relação com os doentes incuráveis e<br />
moribundos por António Lourenço Marques, com<br />
diversos exemplos. Apenas quero salientar a 6ª.<br />
Centúria, cura 73, que termina “apresentado o<br />
diagnóstico de que em breve morreria, como todos<br />
observaram ter acontecido dois dias depois, pedi<strong>da</strong><br />
desculpa retirámo-nos, apoiados no conselho de<br />
Hipócrates - que só com os prognósticos se devem<br />
deixar os lamentados. To<strong>da</strong>via, para não parecermos<br />
insensíveis, se formos chamados de novo a ver os<br />
que assim estão lamentavelmente perdidos, é nossa<br />
obrigação visitá-los para que eles próprios não caiam<br />
no desespero, pois na profissão médica não raramente<br />
acontecem coisas extraordinárias”. Há aqui um<br />
esboço de abor<strong>da</strong>gem do doente moribundo, e<br />
também a aceitação dum princípio de incerteza. O