Medicina e Religião - História da Medicina
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sobrinho do famoso Deão Boavi<strong>da</strong>), e de D. Maria <strong>da</strong>s<br />
Dores Matos Dias <strong>da</strong> Cruz Boavi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> Orca, senhores<br />
<strong>da</strong> Casa Grande <strong>da</strong> Orca e proprietários de muitos<br />
outros bens em Alpedrinha e na região. Aí recebia os<br />
clientes, que pouco a pouco se tornaram numerosos,<br />
pois que provinham não só <strong>da</strong> vila e seu aro, como de<br />
to<strong>da</strong>s as aldeias em redor. E frequentemente era ele<br />
próprio a deslocar-se às terras, a chama<strong>da</strong>s urgentes<br />
de pacientes, que requeriam os seus serviços para<br />
todo o tipo de problemas. Aqui fazia de obstetra, ali<br />
de ortopedista, acolá atacava uma infecção grave ou<br />
uma doença desconheci<strong>da</strong>. Era assim, qual “João<br />
Semana”, o médico de aldeia <strong>da</strong>queles tempos...<br />
Foram muitos os relatos que fomos ouvindo de<br />
pessoas diversas, alguns impressionantes pelo realismo<br />
<strong>da</strong>s situações, a reflectirem um tempo gravoso,<br />
de muitas provações e privações; mas, no íntimo,<br />
registámos sobretudo os de familiares mais próximos,<br />
aqueles que ver<strong>da</strong>deiramente mais nos tocaram. À<br />
tia Rosa tirou do ventre uma menina morta; à mãe<br />
curou-a <strong>da</strong> mordedura de um bicho venenoso no<br />
campo, fazendo-lhe uma raspagem num pé, e tratou<br />
de lhe «alimpar a boca» substituindo-lhe a dentição<br />
to<strong>da</strong> caria<strong>da</strong> por uma nova de porcelana, pelo preço<br />
de «onze notas»; e ao pai atendeu-o muitas vezes no<br />
seu consultório, sobretudo por via <strong>da</strong>s maleitas ou<br />
sezões contraí<strong>da</strong>s em Cabo Verde no tempo <strong>da</strong> II<br />
Guerra Mundial. Tinha fama de ser um pouco<br />
“carniceiro” e “descarado”... mas bom médico, sabedor<br />
e eficaz, que era afinal o que mais importava a quem<br />
padecia, quando as rezas e mezinhas já não<br />
resultavam e não havia mais ninguém a quem recorrer.<br />
Seria, no entanto, como estomatologista que viria a<br />
especializar-se e a tornar-se mais conhecido.<br />
Colaborou em diversos órgãos <strong>da</strong> imprensa regional.<br />
Escrevia muito bem. E publicou um livrinho, de 20<br />
páginas e ilustrado: A Quinta do Anjo <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> em<br />
Alpedrinha - A sua obra. O que é. O que poderá vir a<br />
ser, Tipografia do Jornal do Fundão, Fundão, 1960.<br />
Foi dedicado à filha, também médica, Maria Fernan<strong>da</strong><br />
Matos de Sá Pereira, no dia do seu casamento. O<br />
exemplar que fomos encontrar na Biblioteca Geral <strong>da</strong><br />
55<br />
Universi<strong>da</strong>de de Coimbra tem a seguinte dedicatória<br />
autografa<strong>da</strong>: «À Biblioteca <strong>da</strong> U. Coimbra, oferece um<br />
velho aluno, o seu testamento aberto. Alpedrinha,<br />
14.10.1965». No interior explicava que o “parque<br />
recreativo” do Anjo <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong>, mais que uma obra<br />
turística, assistencial e agrícola, era «uma lição de<br />
boa vontade». Fazia depois a descrição do projecto,<br />
que não era apenas a piscina: dispunha de um parque<br />
de campismo, campo de ténis, o campo de patinagem<br />
“Luís António” (em homenagem ao filho então estu<strong>da</strong>nte<br />
de <strong>Medicina</strong> e jogador de hóquei <strong>da</strong> AAC-Associação<br />
Académica de Coimbra), o parque infantil “Maria<br />
Fernan<strong>da</strong>” (homenagem à filha), um pavilhão de<br />
Assistência, a “Clínica dos Irmãos Sá Pereira”, um<br />
salão de chá e a “obra agrícola”.<br />
Obra de grande fôlego, saudável em todos os<br />
sentidos, esta Quinta/parque foi também o Querer de<br />
um homem sonhador de Alpedrinha; mesmo contra<br />
ventos e marés desfavoráveis. Por isso, zurzia no final<br />
do opúsculo os incrédulos - e sobretudo o Governo<br />
de então -, que não foi capaz de lhe <strong>da</strong>r a mão quando<br />
precisou: «E ain<strong>da</strong> que o Estado, por via dos seus<br />
serventuários, continue a desconhecer esta obra e<br />
até a hostilizá-la, mesmo assim ela continuará, até<br />
ao momento em que o seu proprietário tombar para<br />
sempre.». Era de fibra granítica o médico Francisco<br />
de Sá Pereira. Só que, nesta frase enganou-se; porque<br />
a sua expectativa foi ultrapassa<strong>da</strong>: essa obra por ele<br />
ergui<strong>da</strong> continuou para além <strong>da</strong> sua morte.<br />
Felizmente.<br />
Segundo o seu assento de óbito, faleceu com 88<br />
anos, «de senili<strong>da</strong>de», pelas 15 horas do dia 19 de<br />
Abril de 1990. Já então se encontrava aposentado,<br />
mas a notícia do seu passamento não deixou de<br />
constituir uma geral e senti<strong>da</strong> manifestação de pesar,<br />
mormente de quantos o conheceram.<br />
Da secção necrológica do Jornal do Fundão, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong><br />
de 4.5.1990, p. 29, respigamos:<br />
«Desde a sua vin<strong>da</strong> para Alpedrinha, há mais de<br />
sessenta anos, deno<strong>da</strong><strong>da</strong>mente lutou pelo progresso<br />
<strong>da</strong> região, quer em defesa dos produtores agrícolas,<br />
quer do turismo, quer principalmente <strong>da</strong> saúde pública.<br />
Eram difíceis os tempos para aclarar questões de interesse<br />
geral, mas em vários jornais que no Fundão<br />
existiram, O Fundão, Gardunha e neste semanário, o<br />
Dr. Francisco Sá Pereira expôs com clareza, coragem<br />
e inteligência problemas que, em muitos casos,<br />
continuam sem solução.v»<br />
«...o Dr. Sá Pereira realizou uma obra notável de<br />
promoção e desenvolvimento <strong>da</strong>quela vila (...) Em finais<br />
de 50, num tempo em que os equipamentos desportivos<br />
e de lazer estavam longe de ser prioritá-rios,<br />
o Dr. Francisco de Sá Pereira dotou Alpedrinha de<br />
uma piscina que contribuiu decisivamente para a sua<br />
promoção turística.» (...) Feita «inteiramente à sua<br />
custa, é e será uma importante demonstração <strong>da</strong> sua<br />
capaci<strong>da</strong>de realizadora e dedicação ao bem comum.»