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o silêncio das sereias: tempo, direito e violência ... - Domínio Público

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geral, trata do <strong>tempo</strong> da salvação, enquanto a tradição pagã dos gregos não apresenta esta<br />

noção em sua historiografia 44 . Outro desdobramento dessa concepção está na perspectiva do<br />

<strong>tempo</strong> dentro do cristianismo 45 . A concepção linear, escatológica e cristã da história acabou<br />

por imprimir um registro profundo na história <strong>das</strong> ideias ao ponto de ser possível considerar<br />

esse <strong>tempo</strong> como o <strong>tempo</strong> natural, obscurecendo outras manifestações culturais da percepção<br />

do <strong>tempo</strong>. Segundo afirma Goody: “As datas <strong>das</strong> quais a história depende são medi<strong>das</strong> antes e<br />

depois do nascimento de Cristo [...] A monopolização do <strong>tempo</strong> não ocorre somente com a era<br />

que tudo inclui, definida pelo nascimento de Cristo, mas também com a contagem cotidiana<br />

de anos, meses e semanas. 46 ”.<br />

Pode-se observar que um conceito que procure descrever o <strong>tempo</strong> se bifurca em dois<br />

aspectos: de um lado, fala-se do <strong>tempo</strong> em si mesmo, que pode ser visto como uma linha<br />

<strong>tempo</strong>ral contínua, com direção e métrica, com sua unidade centralizada no decorrer <strong>das</strong><br />

ações; por outro lado, há um <strong>tempo</strong> <strong>das</strong> coisas, que remete a uma universalidade, que se<br />

realizaria apenas no plano físico, cósmico, e que poderia ser concebida como sincronia do<br />

transcurso do cosmos.<br />

Essa universalidade não habilita a reflexão em que o <strong>tempo</strong> de cada coisa seja um<br />

fragmento do <strong>tempo</strong> universal – como idealizado na filosofia kantiana –, pois o caráter<br />

<strong>tempo</strong>ral de cada transcorrer possui sua própria <strong>tempo</strong>ralidade. Para García: “O único <strong>tempo</strong><br />

verdadeiro e real é, então, o <strong>tempo</strong> relativo ou respectivo. Concepção que nos permite dizer<br />

44 O que já foi observado por Whitrow: “Independentemente do papel preciso da linearidade na noção hebraica<br />

do <strong>tempo</strong>, supôs-se por longo período que a natureza escatológica desse conceito influenciara profundamente,<br />

através do cristianismo, o desenvolvimento de nossa idéia moderna da natureza unidirecional e não-cíclica do<br />

<strong>tempo</strong>.” (WHITROW, G. J. O <strong>tempo</strong> na história. p. 69).<br />

45 Explica Whitrow que: “Em virtude do modo como começou, o cristianismo herdou a visão do <strong>tempo</strong> peculiar<br />

dos judeus, com sua esperança de redenção de sucessivos opressores. De início, os cristãos viam o Jesus<br />

ressuscitado como o Messias cujo retorno, visto como iminente, daria fim à ordem existente no mundo.<br />

Gradualmente, à medida que o <strong>tempo</strong> passava sem que tal retorno ocorresse, os cristãos tiveram de se haver com<br />

um mundo que continuava a existir, ficando seu fim adiado para um futuro indefinido. Se Jesus era o Messias,<br />

então ele já viera, e uma nova interpretação era necessária. O nascimento de Jesus passou assim a ser encarado<br />

como um divisor do <strong>tempo</strong> em duas partes, pois encerrava a primeira fase do desígnio divino e iniciava a<br />

segunda.” (WHITROW, G. J. O <strong>tempo</strong> na história. p. 72). Para além da contagem histórica pautada pelo a.C. e o<br />

d.C., pode-se observar no Canto IV da Divina Comédia, em que Dante chega ao Primeiro Círculo do Inferno,<br />

uma conseqüência desta forma de datação: “Despertado por um trovão, Dante se acha no Primeiro Círculo do<br />

Inferno, onde estão as almas de crianças e adultos que não foram batizados. Também vê os sábios da<br />

Antiguidade, que tiveram vida virtuosa, mesmo sendo pagãos. [...] „Não queres saber‟, disse meu bom Mestre,<br />

„que espíritos são esses que agora vês padecendo? Antes que vás em frente, convém saberes que não pecaram;<br />

porém, mesmo tendo realizado boas obras, estão aqui porque lhes falta o batismo, portal da fé, no qual acreditas<br />

e és ditoso por isso. Viveram no <strong>tempo</strong> que antecedeu ao Cristianismo, e jamais prestaram culto a Deus: eu, que<br />

venho do paganismo, sou um deles. Por tal defeito – outros não nos mancharam – somos torturados com o<br />

castigo de ter nossos desejos para sempre frustrados.” (ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Porto Alegre:<br />

L&PM, 2004. pp. 21-22).<br />

46 GOODY, J. O roubo da história. pp. 24-25. No mesmo sentido pode ser observada a crítica de Whitrow: “...<br />

embora haja diferenças entre a ordem objetiva do <strong>tempo</strong> físico e o <strong>tempo</strong> individual da experiência pessoal,<br />

somos compelidos cada vez mais a relacionar nosso „agora‟ pessoal ao cronograma determinado pelo relógio e o<br />

calendário.” (WHITROW, G. J. O <strong>tempo</strong> na história. p. 31).<br />

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