o silêncio das sereias: tempo, direito e violência ... - Domínio Público
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se entender, a partir disso, que tanto o <strong>tempo</strong> – em sua dimensão social – como o <strong>direito</strong><br />
formam mediações pelas quais as condutas humanas podem vir a ser orienta<strong>das</strong>.<br />
A <strong>violência</strong> também constitui uma característica em comum, eis que, enquanto o<br />
<strong>tempo</strong> possui um substrato regulador com uma margem coercitiva – o descumprimento de um<br />
prazo pode levar à perda de um <strong>direito</strong> –, o <strong>direito</strong> não se desvincula (nem na teoria nem na<br />
prática) de sua fundamentação calcada na <strong>violência</strong> 58 . Outro ponto em comum entre o <strong>tempo</strong><br />
sociológico e o <strong>direito</strong> pode ser esboçado no campo simbólico, pois, além de regularem<br />
condutas, o simbolismo que deflui <strong>das</strong> duas categorias pode exercer, simultaneamente,<br />
diversas funções como a coordenação, a integração e a padronização de culturas.<br />
Uma perspectiva que compreende o <strong>tempo</strong> como absoluto, verdadeiro, matemático,<br />
que flui de modo uniforme, acaba por se aproximar da noção cotidiana do <strong>tempo</strong>, em seu<br />
sentido comum 59 . Mas esta não deixa de ser fictícia, pois supõe sua própria existência com<br />
independência dos fenômenos e processos que, antes de ocorrer no fluxo <strong>tempo</strong>ral desse<br />
<strong>tempo</strong> absoluto, são eles próprios <strong>tempo</strong>rais.<br />
Contudo, para além dessa concepção de <strong>tempo</strong>, formulam-se outros <strong>tempo</strong>s, que não<br />
deixam de ser cotidianos, mas que não são medidos, não fluem de maneira homogênea como<br />
previsto nos calendários e relógios. É o exemplo da nostalgia, da recordação, da concentração,<br />
<strong>tempo</strong>s silenciosos, opostos ao <strong>tempo</strong> domesticado – da domesticação – da urgência. Limitar<br />
as experiências <strong>tempo</strong>rais subjetivas e objetivas a uma perspectiva absolutizante, que procura<br />
fechar as portas conceituais para outros meios de percepção <strong>tempo</strong>ral, acaba por expor a<br />
fragilidade e a insuficiência desta percepção para corresponder às deman<strong>das</strong> de uma<br />
sociedade complexa.<br />
No sentido de alargar a semântica do <strong>tempo</strong>, García propõe duas dimensões <strong>tempo</strong>rais,<br />
dois <strong>tempo</strong>s que tratam do agora – momento <strong>tempo</strong>ral dos seres humanos:<br />
[...] o agora horizontal que situado na linha de sucessão aparece como um fio<br />
delgado ou um colar de contas; o outro, o agora vertical que se aprofunda em uma<br />
densidade <strong>tempo</strong>ral que se amplia para engrossar o presente com outros <strong>tempo</strong>s, o<br />
passado e o futuro, sejam estes últimos <strong>tempo</strong>s próprios ou alheios, vividos ou<br />
imaginados por nós ou recobrados como memórias coletivas ou como futuros<br />
possíveis. 60<br />
58 Seja por se fundamentar no Estado de Direito, que concentra em si o uso da <strong>violência</strong> legítima, ou no contrato<br />
fundador deste Estado, com a alienação da <strong>violência</strong> ao ¨Leviatã¨. Este tema será desenvolvido nos capítulos da<br />
seção III.<br />
59 No mesmo sentido pode ser observada a crítica de Whitrow: “... embora haja diferenças entre a ordem objetiva<br />
do <strong>tempo</strong> físico e o <strong>tempo</strong> individual da experiência pessoal, somos compelidos cada vez mais a relacionar nosso<br />
„agora‟ pessoal ao cronograma determinado pelo relógio e o calendário.” (WHITROW, G. J. O <strong>tempo</strong> na<br />
história. p. 31).<br />
60 GARCÍA, G. V. Entre cronos y Kairós. p. 62. Tradução livre.<br />
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