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Prosa - Academia Brasileira de Letras

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Razão e espiritualida<strong>de</strong>: uma conversa imemorial<br />

fuzilamento. Na ultimíssima hora, quando eles já estavam amarrados a um<br />

poste, apareceu um correio do czar a galope anunciando a comutação da pena<br />

em prisão perpétua – uma espécie <strong>de</strong> teatrinho com que os po<strong>de</strong>rosos às vezes<br />

se divertem.<br />

Dostoievksi tirou dali uma primeira lição, que ele jamais esqueceria: a do<br />

valor absoluto da vida humana, que nós às vezes tratamos como uma coisa banal.<br />

Prisioneiro na Sibéria, ele passou quatro anos misturado com os piores<br />

criminosos. No começo ele se queixava disso, e das condições absurdas da vida<br />

na prisão. Depois, alguma coisa mudou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. E <strong>de</strong>sses anos <strong>de</strong> prisão<br />

surgiu o escritor que emocionou a Rússia com o Recordações da Casa dos Mortos.<br />

É um livro absolutamente extraordinário, que está na gênese <strong>de</strong> tudo o que fez<br />

o Dostoievski maduro. E ali ele conta como, nas piores condições possíveis, ele<br />

chegou a um outro modo <strong>de</strong> ver as coisas. Ele escreve a um amigo: “Na prisão, durante<br />

quatro anos, finalmente eu conheci o homem. Acredite, entre aqueles criminosos<br />

há personalida<strong>de</strong>s profundas, fortes, belas; e era uma alegria, <strong>de</strong>baixo daquela<br />

casca grossa, encontrar ouro. E não só um, nem dois, mas vários. Alguns a gente<br />

não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> respeitar, e outros são, positivamente, admiráveis.”<br />

Isso é o que a gente po<strong>de</strong>ria chamar <strong>de</strong> uma mudança do coração, uma conversão<br />

no sentido mais profundo da palavra. E isso é o que há <strong>de</strong> mais característico<br />

na filosofia cristã: se você encontra realmente o Outro, você encontra<br />

ouro, você está salvo do pecado fundamental que é o egoísmo. Esse Dostoievski<br />

da prisão, na minha opinião, está perfeitamente afinado com aquela noção<br />

confuciana do jen, o essencialmente humano, o “fator humano”, como diria<br />

Graham Greene.<br />

Essa é uma história <strong>de</strong> crescimento interior, <strong>de</strong> como você escapa da armadilha<br />

dos conceitos. Seria bom que as coisas seguissem sempre esse caminho, e<br />

que no fim da vida a gente pu<strong>de</strong>sse passar aquela impressão <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong><br />

completa, <strong>de</strong> quase iluminação, que um gran<strong>de</strong> artista como Dostoievski nos<br />

transmite.<br />

Mas essa relação entre razão e espiritualida<strong>de</strong> também tem os seus pontos<br />

cegos, os seus momentos <strong>de</strong> crise – momentos em que elas parecem se chocar<br />

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